As orquestras de mulheres no frevo de rua
Não é de hoje que as mulheres participam ativamente do frevo. Nos blocos líricos, o canto é tradicionalmente executado por um coro de mulheres. Também a organização e a administração de muitas agremiações são lideradas por elas e um exemplo é o Bloco da Saudade, que tem à frente a dedicada Izabel Bezerra, cantora e dirigente.
Por Climério de Oliveira Santos*
Publicado 12/02/2018 10:07
Diversos grupos baseados em frevo-canção têm a marca da voz feminina: Elba Ramalho e Nena Queiroga estão entre outras, não tão famosas, mas exímias cantoras de frevo. Entretanto, quando se trata do frevo de rua tocado por orquestras itinerantes, e que tem como base a música instrumental, a participação de mulheres já não é tão visível.
Aliás, não era. Atualmente, há várias orquestras de frevo que contam com mulheres nos seus quadros e algumas delas são compostas exclusivamente por mulheres. É dessa feminaria no frevo que vamos tratar aqui, sublinhando a qualidade, o impacto e a importância da múltipla participação da mulher. É importante assinalar que, nas diversas tradições musicais em Pernambuco, muitas das atividades que eram restritas aos homens ou majoritariamente masculinas estão sendo cada vez mais realizadas por mulheres; um fenômeno sintonizado com a luta feminina em sociedades globalizadas.
As primeiras orquestras femininas de frevo são criações recentes. De pouco mais de uma década para cá, mulheres vêm driblando as dificuldades, superando o machismo e construindo as suas trajetórias nesse campo tradicionalmente masculino. Os dois grupos marcantes do cenário atual são a Orquestra 100% Mulher, fundada pela maestrina Carmen Pontes, e a Orquestra Só Mulheres, com a maestrina Lourdinha Nóbrega, que exibe na própria marca o nome da mulher que a fundou e lidera.
Com inteligência, muito trabalho, garra e graça, elas criaram orquestras, modificaram as relações de gênero na cultura musical e introduziram o “x” no campo dxs fazedorxs de frevo. Não sem contrariar e incomodar músicos que, até então, não estavam habituados a disputar com mulheres os espaços no mercado. Cada uma das duas orquestras mencionadas realiza dezenas de apresentações no Carnaval e outras tantas ao longo do ano, números que superam os da maioria das orquestras de frevo de Pernambuco. E tem mais: em face da escassez de mulheres musicistas, as orquestras femininas empregam homens.
Mas, como esses grupos começaram, desenvolveram-se e como estão nos dias de hoje?
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Carmen Lúcia de Lemos Pontes nasceu em Paulista, cidade da Região Metropolitana do Recife (RMR). Quando adolescente, estudou na escola pública Cônego Jonas Taurino, no Bairro de Peixinhos (Olinda), onde frequentou um curso técnico de música, habilitou-se em clarinete e integrou o grupo musical da escola, a Banda Sinfônica Juvenil de Pernambuco. Tal iniciação nos dá uma noção da importância do ensino-aprendizagem de música nas escolas públicas.
Alguns anos depois, Carmen foi aprovada num concurso público e passou a tocar na Banda Municipal de Jaboatão dos Guararapes (RMR). Mais tarde, ingressou na Banda Sinfônica do Recife. Ela cursou Regência no Conservatório Pernambucano de Música e licenciou-se em Fonoaudiologia na UFPE. Hoje, cursa Licenciatura em Música e Pós-Graduação em Fonoaudiologia, outro campo em que atua profissionalmente. Nesse ínterim, Carmen casou-se com o trombonista Gilberto de Lemos Pontes (integrante da Spok Frevo), com quem teve dois filhos: Victor e Letícia de Lemos Pontes.
Os grupos nos quais Carmen tocava não eram baseados em frevo, embora incluíssem tal música nos seus repertórios. Ela conta que “tinha participado de um grupo de passistas, mas queria mesmo era tocar frevo” e foi visitando os ensaios de orquestras que ela teve uma impressão significativa: “Eu ficava olhando e dizendo assim: ‘por que não tem uma mulher sequer nas orquestras de frevo? Só tem homens!’”.
Carmen fundou o Quarteto Lá Menor, um grupo feminino de clarinetistas que logo entrou em dificuldades e se desfez. Em vez de desistir, ela ampliou o objetivo: passou a procurar mulheres jovens instrumentistas na capital e no interior de Pernambuco. E, assim, no ano de 2003, ela e as suas convidadas estrearam a orquestra de mulheres, ainda sem nome.
Inspiradas na canção homônima de Zé Ramalho, elas pensaram em batizar o grupo de Frevo Mulher, mas desistiram, porque não queriam se restringir ao frevo. Carmen conta – aos risos – que várias participantes ficaram tentadas pela designação TPM no Frevo, sugerida pelo músico e produtor Zé da Flauta, mas não houve consenso no grupo. Enfim, adotaram o nome Orquestra 100% Mulher. No ano de 2004, conseguiram entrar na programação de carnaval da Prefeitura do Recife e, no de 2005, foram convidadas para acompanhar o cantor Edson Cordeiro no famoso Baile dos Artistas. Desafios foram surgindo e, enfrentando-os, a Orquestra 100% Mulher foi construindo sua trajetória.
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Entre as participantes da Orquestra 100% Mulher, uma nutriu o sonho de criar sua própria orquestra: Maria de Lourdes Carneiro da Nóbrega. Muito antes disso, aos 9 anos de idade, Lourdinha tomou parte de uma fanfarra, que passaria a ser a Banda Filarmônica da Escola Estadual Candido Duarte (Recife). Mais tarde, ingressou no Conservatório Pernambucano de Música, em que se aprimorou com um clarinetista, o Prof. Jônatas Zacarias. Sucessivamente, estudou e/ou tocou em grupos de várias outras instituições. Em todos esses grupos, ela manteve contato com o frevo, o que foi intensificado quando ingressou na Orquestra Popular do Recife, dirigida pelo maestro Ademir Araújo (maestro Formiga), uma das raras orquestras de frevo que tinha mulheres no seu elenco.
O interesse de Lourdinha Nóbrega em constituir um grupo só de mulheres ocorreu desde 1999, ano em que ela criou o Pérola Negra, quarteto de saxofonistas que atua ainda hoje. A inspiração do nome revela comprometimento pessoal e político: “Criei este nome porque o quarteto é formado por mulheres e somos todas amigas fiéis de muitos anos. Então, somos pérolas umas das outras, e somos negras”.
Em 2004, Lourdinha conta que se uniu ao maestro Formiga para formarem a Banda Filarmônica 8 de Março, que reuniu mais de 30 mulheres, mas, como lamenta a maestrina, “a banda não foi adiante, pois não obteve apoio dos maridos, nem do poder público. Faltavam até passagens de ônibus para transportar as meninas, e os maridos reclamavam muito”. Lourdinha começou a tocar na Orquestra 100% Mulher em 2005. Ela concluiu a Licenciatura em Música em 2006 (UFPE), um curso que se prolongou por sete anos, devido às turnês que fazia com o grupo Comadre Florzinha e a coincidente gravidez de sua única filha.
No segundo semestre de 2006, ela decidiu sair da Orquestra 100% Mulher e montar a sua própria que, depois de várias apresentações, foi batizada de Orquestra Só Mulheres, com a maestrina Lourdinha Nóbrega. Foi um nome escolhido pelas componentes do grupo, apesar das ressalvas da maestrina acerca da semelhança que guarda com o nome da orquestra na qual ela tocara. Logo nos primeiros anos de atuação, a Orquestra Só Mulheres conquistou um espaço significativo no mercado do frevo e superou a marca de 30 apresentações num período carnavalesco.
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A organização administrativa e musical de uma orquestra envolve uma miríade de atividades e aspectos, como ocorre com a maioria dos grupos musicais. As fundadoras das orquestras femininas possuem as suas próprias empresas (produtoras), através das quais administram e organizam esse fazer musical. A administradora Carmen conta com o apoio do esposo, Gilberto Pontes, e delega algumas funções extramusicais às integrantes da 100% Mulheres; enquanto Lourdinha assinou a carteira de trabalho de três das musicistas da Só Mulheres, para que elas auxiliem permanentemente na gestão.
Comumente, as orquestras itinerantes empregam metais (trompetes: de 1 a 5), trombones (1 a 6) e tubas ou bombardinos (0 a 5); palhetas (saxofones: alto: 1 a 4; e tenor: 1 a 4) e percussão (surdos, caixas e pandeiros: 1 a 4 de cada). Esses números podem ser modificados em função das possibilidades do contratante. As orquestras que construíram uma destacada reputação costumam estabelecer uma quantidade mínima de instrumentistas, por exemplo, 30 musicistas. Todavia, muitas delas são flexíveis. Como ocorre com uma parte das orquestras de frevo, as femininas praticam as performances itinerante e de palco.
Carmen nos diz como faz para cumprir essa dupla performatividade: “No formato itinerante, a gente toca com um instrumento de cada; o máximo não existe, depende do contratante, eu já montei uma orquestra com 50 meninas. No Carnaval, é comum a gente levar para a rua uns 30 instrumentos. Quando não tem tuba, a gente faz sem tuba mesmo. Para o palco, são uns 15 instrumentos”.
As possibilidades acima revelam quão flexível é a Orquestra 100% Mulher. A de Lourdinha também é flexível quanto ao instrumental e pode variar circunstancialmente, mas, de praxe, o seu formato itinerante utiliza metais (de 2 a 3 trombones, 2 ou 3 trompetes), palhetas (3 ou 4 saxes alto e 2 a 4 tenor) e percussões (caixas, surdos e, às vezes, pandeiro). Para suprir a falta de tubas, Lourdinha reforça os graves com um número maior de surdos e de trombones. O formato de palco leva dois componentes de cada naipe, além de teclado, guitarra, baixo e bateria. Lourdinha costuma tocar sax-alto e, às vezes, sax-soprano.
Além do frevo, as orquestras femininas tocam outros gêneros musicais, em diferentes ocasiões ao longo do ano. Para cada ocasião e espaço, procuram adaptar a sua formação, o que nem todas as outras orquestras de frevo se propõem a fazer. Durante as festas juninas, por exemplo, Carmen Pontes pode escalar desde um trio pé de serra (sanfona, zabumba e triângulo & voz), um quinteto (sanfona, zabumba, triângulo, baixo e voz) ou, ainda, um grupo maior (sanfona, zabumba, voz & triângulo, baixo, bateria e metais).
A orquestra de Lourdinha Nóbrega se transforma na banda Forrozão Só Mulheres, inserindo na sua formação orquestral de palco um zabumba, um triângulo e – quando possível – uma sanfona. Para os bailes de formatura e casamento, a Só Mulheres utiliza, além das duas vozes, um reduzido conjunto de sopros acompanhado de teclado, guitarra, baixo e bateria. A flexibilidade do instrumental é apontada pelas maestrinas como um aspecto importante para a viabilização de suas orquestras.
Portanto, além de frevo, as orquestras femininas tocam forró, bolero, rumba, samba, funk, sertaneja e músicas pop de várias matrizes. Em síntese, elas trabalham sob demanda, principalmente nas festas privadas.
No que se refere ao frevo, quando voltados para as apresentações itinerantes, os repertórios das orquestras femininas são constituídos principalmente de “clássicos” do gênero, sendo a maior parte frevo de rua, tipo que tem o andamento mais veloz. Em menor número, elas apresentam versões instrumentais de frevos-canção (andamento intermediário) e de alguns frevos de bloco (dos três, o menos rápido), os quais, quando adaptados para as ruas, são cantarolados por aquela parte do público que conhece as letras, participação que energiza ainda mais a performance. Vale ressaltar que o público das orquestras de mulheres tem um forte componente feminino, não só na quantidade de foliãs, como no aspecto identitário entre elas e as musicistas.
O roteiro da apresentação alterna blocos de repertório constituídos dessas diferentes modalidades de frevo, podendo ser intercalados com músicas de outras tradições, como o coco e o maracatu. Nas apresentações de palco, as cantoras das orquestras marcam presença e as músicas cantadas ganham força, não obstando o frevo instrumental de continuar sendo o principal combustível da euforia do público.
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As lideranças das duas orquestras costumam escolher e reciclar o repertório junto às outras musicistas: “Eu vou conversando com as meninas, elas vão dando ideias também e a gente monta o repertório”, explica Carmen. Alteram-se poucas músicas de um ano para o outro, de modo a cumprir uma funcionalidade que seja adequada às festas, principalmente ao Carnaval.
As maestrinas compilam e, quando necessário, adaptam os arranjos às suas formações orquestrais. A maior parte desses arranjos é pinçada do conjunto de arranjos que transitam entre orquestras e que foram feitos por compositores e arranjadores de frevo, tanto os já falecidos, como os maestros vivos e atuantes e, ainda, pelas próprias lideranças das orquestras de mulheres. Entre os principais parceiros no fornecimento de arranjos, as maestrinas citam Ademir Araújo, Ivan do Espírito Santo e Spok.
As orquestras buscam identidades próprias, incluindo composições que, de alguma maneira, destacam o gênero feminino, tais como Frevo mulher (Zé Ramalho) e Cala a boca menino, um conhecido frevo-canção de Capiba, que criativamente combate a “violência contra a mulher”. As músicas inéditas ainda são minoria nos repertórios das duas orquestras. No sentido de realçar as particularidades, as maestrinas tentam “sair da mesmice”, isto é, substituir os “frevos mais batidos”, os standards, por músicas inéditas ou que não são conhecidas do grande público – este é um dos desafios que elas apontam.
Outro modo de desenhar a diferença é no visual e na interpretação. As duas orquestras femininas exibem figurinos elaborados (bem acima da média das orquestras itinerantes) e renovados a cada ano. A Só Mulheres costuma dançar tanto no palco como na rua e realiza coreografias curiosas, como ocorre quando executam a marcha junina Pra tirar coco (Messias Holanda), adaptada para frevo de rua: as musicistas dançam muito animadas e, durante o refrão, tocam girando o instrumento no sentido anti-horário.
Com o surgimento da Orquestra 100% Mulher, veio à tona uma demanda reprimida. O grande número de solicitações não permitia que a Orquestra acatasse todos os convites. Para dar conta da sobreposição de agenda, Carmen passou a recrutar mais e mais musicistas e a formar, quando necessário, duas ou mais orquestras sob a marca 100% Mulher, para o que conta com cerca de 50 mulheres instrumentistas.
Mesmo com o surgimento da Só Mulheres, a demanda não diminuiu, indo muito além do que as duas orquestras podiam ofertar. A sobreposição de agenda coincidiu com outro problema: a escassez de mulheres instrumentistas. As maestrinas nos contam como supriram a falta. “Em todo lugar, eu fui buscar meninas que tocassem, nas bandas de música do interior de Pernambuco e nas igrejas, o que causou até confusão. Mas, mesmo assim, não foi suficiente; às vezes, a gente tinha que completar a orquestra com homens”, diz Carmen. “Músicos homens têm me procurado para tocar na Orquestra, mas depende da exigência de quem contrata, da quantidade de shows e aí, se for possível, a gente inclui”, afirma Lourdinha. A escassez de mulheres instrumentistas é mais gritante quando se trata de teclado, bateria e guitarra.
As duas maestrinas afirmam que, inicialmente, a inclusão de homens nos seus grupos não foi bem-recebida por todas as mulheres e que ocorreram resistências e tensões. Segundo Carmen, “as meninas acreditam que a inclusão de homens quebra a identidade feminina do grupo e, de certo modo, elas têm razão, mas a necessidade fala mais alto, porque o grupo precisa tocar”. Na avaliação de Lourdinha, “as musicistas reclamavam porque os homens não tinham o hábito de abrir espaços para mulheres nas suas orquestras e que, portanto, não deveriam ser aceitos”. Para superar tais tensões e ressentimentos, as maestrinas contam que foi fundamental o diálogo com as musicistas, buscando o entendimento de que elas podiam dividir o espaço com alguns homens, pois isso seria benéfico para as suas orquestras e, portanto, para todxs xs participantes.
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O aspecto relacional talvez seja o mais importante diacrítico no modo de fazer das orquestras femininas. Como qualquer grupo musical, as orquestras têm problemas internos relacionados à hierarquia, poder, disputas, desigualdade, afetividade etc. Para as duas líderes com quem conversamos, aprender a ser maestrina tem sido desenvolver a empatia, isto é, colocar-se no lugar da outra pessoa para equacionar os problemas relacionais. E, nesse aspecto, de acordo com algumas musicistas dos dois grupos, elas são “verdadeiras maestrinas”. Hoje, as duas pioneiras enfatizam o apoio às musicistas e colocam em xeque a corriqueira ideia de que as mulheres são essencialmente desunidas.
As orquestras de mulheres impactaram o mercado e o significado do frevo. As duas orquestras passaram a ocupar espaços em Pernambuco, a animar bailes nas prévias carnavalescas do Recife e Olinda, a acompanhar blocos, troças e artistas na capital e em cidades do interior, a se apresentar em festas institucionais e particulares, além de participar de eventos em outros estados brasileiros. A Orquestra 100% Mulher vem acompanhando o Galo da Madrugada e, há mais de 10 anos, o Bloco Nem Com Uma Flor (organizado pela Secretaria da Mulher, Prefeitura do Recife), que arrasta uma multidão e cujo principal objetivo é promover o combate à violência contra a mulher.
Além de gerar trabalho e renda para as integrantes, as orquestras femininas vêm possibilitando parcerias entre musicistas mulheres e homens. Quando não podem fazer uma apresentação agendada pelas orquestras das quais fazem parte, homens têm indicado colegas mulheres para substituí-los e vice-versa. A categoria sub – como vinha sendo chamado o músico substituto no mercado – agora está se tornando comum aos dois gêneros. Historicamente masculinas, as orquestras itinerantes começam a incluir mulheres nos seus quadros de musicistas.
Mas a inclusão de homens não ocasionou apenas uma resistência interna às orquestras. Como a maestrina Lourdinha Nóbrega deixa entrever na expressão “depende da exigência de quem contrata”, uma parte dos contratantes tem interesse específico em grupos estritamente femininos. Possivelmente, tal ocorrência tem a ver com o que a musicista Milla Bigio afirmou: “Eu já percebi, na prática, que quando é um grupo só de mulheres, ele provoca um grande impacto no público e em quem está tocando. E, se for tocando frevo, parece que o impacto é maior ainda”.
Ela mesma foi impactada pela referida participação: “Hoje em dia, eu me sinto mais estimulada para formar grupos de mulheres”. Milla Bigio, 24 anos, baterista e percussionista, concluiu a Licenciatura em 2015 na UFPE, em que cursa a pós-graduação em Pedagogia do Instrumento. Milla tocou na 100% mulher em 2011: “Eu ainda era uma iniciante, quando fui convidada por Carmen através de uma colega da UFPE”. Recentemente, Milla formou a Orquestra Livre, na qual incluiu homens e mulheres jovens (meio a meio). Em uma das primeiras apresentações da Orquestra Livre, o produtor de uma empresa que assistia a contratou para formar uma orquestra só de mulheres e, em poucos dias, ela já agendou várias apresentações.
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Por que grupos de mulheres tocando frevo causam impacto? O que está em jogo com a feminaria no frevo? O impacto se deve não só ao fato de que o frevo tocado por mulheres contrasta com a “tradição” do frevo que só era tocado por grupos de homens. O impacto deve-se paralelamente ao significado que a atuação coletiva das mulheres engendra atualmente nos diversos âmbitos das sociedades, nutrindo conexões entre o lugar dessa atuação e o mundo. Nesse caso, a atuação planetária se dá através da performance musical de uma orquestra de frevo. Uma quebra de paradigma (mulheres tocando frevo) aparentemente pequena – principalmente para machistas – está conectada com a quebra de um paradigma de proporção global (mulheres do mundo em luta por direitos, pela música, através da música).
Em suma, são muitos os aspectos que revelam o discutido impacto das orquestras femininas: estimulam o protagonismo musical delas e o surgimento de grupos musicais femininos geram trabalho e renda para mulheres e – mesmo que em menor medida – para homens, abrem espaços para musicistas em outras orquestras que, até então, só empregavam homens, contribuem com a equidade de gêneros, estimulam mulheres (crianças, adolescentes e adultas) a estudar música, atendem a instituições governamentais e ONGs ligadas às mulheres, ajudam a articulá-las na luta feminista dentro de Pernambuco e com os movimentos feministas do mundo. Enfim, as orquestras femininas contribuem com a construção humana de sentido.
O “preconceito contra a mulher” foi um dos problemas mais apontados por mulheres musicistas nas conversas. Nossas protagonistas perceberam muito cedo o preconceito dos meninos para com as meninas, por exemplo, uma desconfiança quanto à sua capacidade de tocar um instrumento ou uma música de execução considerada difícil, como o frevo de rua. Lourdinha conta que o preconceito que ela sofreu enquanto mulher se manifestou em todos os grupos dos quais participou, embora em menor proporção na Orquestra Popular do Recife, onde o Maestro Ademir conseguia dissipar o problema.
No frevo de rua, a função das mulheres praticamente se restringia à dança, salvas as exceções mencionadas anteriormente. Como vimos, essa situação mudou e tende a mudar mais. Mas não tem sido uma batalha fácil para as mulheres. Elas vêm enfrentando preconceitos por parte de contratantes e do público, como Carmen expressa: “O meu marido, de vez em quando, vai ver a gente tocar. Uma vez, tinha um rapaz perto dele dizendo: ‘Isso é um playback, essas meninas estão fazendo é mímica’. Aí, meu marido disse: ‘Eu escutei o que o senhor falou. Venha aqui comigo’. Subiram lá no palco e ele mostrou ao rapaz que a gente estava tocando. Para você ver que não é só dos contratantes, é da parte do público também que não acredita, tem muito preconceito.”
Lourdinha N. também não esconde as dificuldades que o preconceito impôs: “A música é um meio muito machista. A gente já sentia desde quando tocava nas outras orquestras e recebíamos cachês menores que os dos homens, uma discriminação! Ainda hoje, sempre que a gente vai vender apresentações, tem um questionamento usado para nos pagar menos. E nós queremos ser reconhecidas não só por sermos uma orquestra de mulheres, mas pela qualidade musical, que não deixa nada a desejar em relação às orquestras dos homens”.
Obviamente, dificuldades similares são enfrentadas pelas mulheres em quase todos os âmbitos da sociedade, não apenas na música. Entretanto, no frevo de rua, o preconceito sequer emergia, pois praticamente não havia mulheres participando como musicistas nessa cultura musical e o problema permanecia oculto. Além dos mencionados juízos de valor preconcebidos e sem fundamento que partem de homens, sobretudo as maestrinas e suas orquestras também são alvos do ressentimento de alguns maestros que, há anos, obtinham contratações de determinados blocos e troças carnavalescas e que viram tais contratos migrarem para as orquestras femininas.
“Há um maestro que se tornou quase um inimigo”, afirma Carmen. A migração dos contratos traduz a competência das mulheres e o interesse de contratantes e públicos, que sentem a necessidade de renovação: é a roda-viva do mercado, da sociedade, do frevo. Talvez, se as orquestras de mulheres se tornarem numerosas, uma próxima renovação poderá ser a das orquestras mistas, como a Orquestra Livre iniciada por Milla Bigio.
As lideranças das orquestras femininas foram audaciosas, corajosas e inteligentes, a ponto de manterem a mente aberta para aprenderem com homens e com outras mulheres. Elas transpuseram vários obstáculos e enfrentam novos desafios: aprimoramentos musicais e gerenciais, gravação de CDs com músicas e/ou arranjos inéditos, realização de shows em espaços prestigiados (como o polo carnavalesco do Marco Zero), alcançar remuneração condizente com a profissionalização do grupo etc. A força que essas heroínas esboçam quando falam dos seus objetivos leva a crer que elas conseguirão e que o frevo ampliará a equidade de gêneros.
*CLIMÉRIO DE OLIVEIRA SANTOS é doutor em Etnomusicologia (UNIRIO), músico, compositor, pesquisador e professor no Conservatório Pernambucano de Música. Tem três livros publicados.