Publicado 07/02/2018 11:20
“Não tem idade, se tiver interesse aprende”, Raimundo Neves Ferreira, 62 anos.
“Nós somos os primeiros que chegam e os últimos que saem. Só saímos com as professoras”, Geni Rodrigues dos Santos, 77 anos.
As mãos calejadas do trabalho com a enxada, que durante anos semearam a terra no interior do Maranhão, agora têm novos desafios. Lápis e caderno são os instrumentos. Uma história diferente está sendo escrita.
O projeto de alfabetização Sim, Eu Posso, inspirado em um modelo cubano voltado para jovens, adultos e idosos, tem mudado a vida de trabalhadores urbanos, sem-terra, quilombolas e indígenas no estado que é o terceiro em número de analfabetos no Brasil.
A dona de casa Doralice dos Santos Oliveira tinha 53 anos, mais de 40 deles trabalhados na agricultura, quando foi apresentada ao mundo das letras.
“Quem não sabe ler nem escrever, vive no mundo só pra dizer que está vivendo, mas não sabe de nada. É como se estivesse no escuro, entendeu? A gente vê as coisas, mas não sabe o que é.”
Doralice, que vive no município de Itaipava do Grajaú, a cerca de 500 quilômetros da capital, São Luís, já não faz mais parte do grupo dos 840 mil maranhenses analfabetos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), esse é o número de pessoas com mais de 15 anos que não sabem ler e escrever no estado.
“A coisa que mais eu achei bom na vida foi ir pra escola. Não tenho preguiça de ir. Faço a minha janta. Às vezes nem janto, e vou para a escola.”
Filha de analfabetos, ela passou toda a vida utilizando a digital para assinar documentos. Uma necessidade que só mudou em 2016. A dona de casa é uma das 7 mil pessoas que se formaram na primeira etapa do Sim, Eu Posso, articulado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em parceria com o governo do Maranhão.
A iniciativa vem transformando, aos poucos, a realidade da educação no estado.
O Sim, Eu Posso está na segunda etapa, com mais de 20 mil alunos atendidos. As aulas são ministradas em 15 municípios, que estão entre as cidades de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado.
O projeto percorre assentamentos, aldeias e outras comunidades e alcança gente como o aposentado Raimundo Neves Ferreira, de 62 anos. Todo dia, quando cai a noite, lá está ele na sala de aula, que tem o próprio filho dele, Erasmo, como professor. Um orgulho para o aposentado, que, na mesma turma, ainda senta ao lado de outros seis membros da família. Ele conta que o ambiente serve de inspiração para o aprendizado.
“Praticamente eu não sei de nada, mas tenho a vontade de aprender. Eu não sabia escrever nome nenhum, nem número. Hoje, pelo menos o meu nome, eu já sei.”
A empolgação do aposentado é a mesma que move o coração de gente como Miguel da Conceição Nogueira, de 84 anos, e Geni Rodrigues dos Santos, de 77, o casal de alunos mais idoso do projeto.
“Eu não tive tempo de estudar quando era jovem, porque eu trabalhava com a minha mãe para a gente comer. Eu acho bonito ser estudante. E chegou o momento de eu ser estudante também. Estou estudando.”
E o marido se orgulha dos elogios que tem recebido da professora.
“Eu fico muito satisfeito, alegre. Eu digo: 'Estou animado, professora'. E ela diz: 'Muito bem, daqui a dois meses você vai estar ainda mais animado.”
Os dois relatam que, quando receberam o convite para participar do projeto, ficaram tímidos e receosos, mas resolveram se arriscar, na ânsia de realizar um dos maiores sonhos de toda a vida.
A coordenadora pedagógica Maria Zenilde conta que o medo dos alunos não resiste ao encanto da sala de aula.
“Eles têm aquela resistência de vir para a escola, mas é só até o momento que eles vêm. No dia seguinte, quando chegam, já não querem mais deixar de vir. É bom demais. A gente observa esses avanços e essas conquistas.”
O método do Sim, Eu Posso nasceu em Cuba, pelas mãos da pedagoga Leonela Rebys. A ilha comunista é reconhecida internacionalmente pela erradicação do analfabetismo ainda nos anos sessenta. Uma conquista da Revolução de 1959, como ressalta a cônsul geral de Cuba no Nordeste, Laura Pujol.
“O acesso à educação para todos tem sido uma prioridade de todos os governos revolucionários. E a Revolução Cubana tem um espírito internacionalista muito grande. Poder compartilhar o que temos com outros povos do mundo tem sido uma constante na nossa história.”
O método foi adotado em outros vários países e chegou ao Brasil por iniciativa do MST. João Pedro Stedile, da direção nacional do movimento, conta que a semente foi plantada há cerca de 15 anos.
“Os companheiros de Cuba nos procuraram como MST e disseram: 'Olha, nós temos um programa de alfabetização muito rápida. Queremos saber se vocês têm interesse, porque queremos fazer uma parceria.”
A proposta foi adaptada para o Brasil por pedagogos e militantes do movimento e o país foi o primeiro a ter o método traduzido para o português. Piauí, Maranhão, Paraná, Pará, Rio de Janeiro e Ceará são alguns dos estados que já aplicaram o Sim, Eu Posso.
O método consiste basicamente na associação entre números e letras. A combinação é uma forma de tornar o aprendizado mais fácil, uma vez que mesmo a população analfabeta tem conhecimentos básicos de matemática.
Além disso, o projeto associa o uso de cartilhas educativas ao recurso da televisão. Os ensinamentos são divididos em 65 capítulos em formato de telenovela e as aulas duram ao todo oito meses.
Entre os grupos atendidos na Jornada de Alfabetização, há um segmento especial: o dos indígenas.
Na região central do Maranhão, cerca de 1.800 deles estão matriculados nas turmas do projeto.
Na aldeia Urucu, zona rural de Itaipava do Grajaú, o entusiasmo dos alunos sobrevive às adversidades do espaço, que tem iluminação fraca e ventiladores quebrados.
O indígena Iran Costa Guajajara, de 33 anos, é um dos alunos que já ensaiam algumas palavras em português para demonstrar a empolgação.
“Estou achando bom esse programa Sim, Eu Posso. Quero aprender a escrever e ler.”
O professor e pesquisador Gersem Baniwa, da Universidade Federal do Amazonas, destaca que o domínio do português é importante para a construção da autonomia dos povos indígenas.
“Ao longo de todo o processo de colonização, esse contato foi mediado por assessores, antropólogos, missionários, aliados, porque eles dependiam da língua. Hoje, a luta para um bom domínio da língua portuguesa é também uma maneira de consolidar esse protagonismo, essa autonomia”
Não é à toa que, somente em Itaipava, mais de 300 indígenas aguardam a reabertura de matrículas para iniciar os estudos.
A procura não era projetada nem mesmo pelo governo do estado. O governador Flávio Dino avalia que a mobilização do MST em torno do programa tem favorecido o engajamento das comunidades.
“Gera uma grande aderência entre adultos e idosos, que é o principal desafio desse programa de alfabetização: gerar motivação. Porque são pessoas que trabalham o dia todo, pessoas que trabalham na roça, na agricultura, que tem realmente que encontrar uma motivação. A metodologia utilizada pelo Sim, eu Posso tem garantido isso. E o MST participando, ajudando a mobilizar, tem sido uma experiência bastante boa.”
E não são só alunos e professores que fazem o projeto ganhar vida. Trinta e seis voluntários do MST se dividem entre as ações de mobilização para atrair novos estudantes e a coordenação das atividades. Entre eles, está a voluntária Inez Pinheiro.
“Quando a gente sabe que no Maranhão há um milhão de analfabetos. Isso nos diz que temos uma tarefa. Além dessa questão da solidariedade com o outro que não teve a oportunidade de estudar na idade certa.”
Os voluntários acompanham as mais de 1,3 mil turmas da segunda etapa do projeto e se desdobram entre uma demanda e outra para não deixar faltar o que a iniciativa tem de melhor: a solidariedade.
Maria Raimunda César, por exemplo, saiu do Pará para contribuir com a jornada maranhense de alfabetização.
“O processo de luta e de resistência não tem fronteira. A importância de construir esse ato político-pedagógico, que é o processo de alfabetização no Maranhão, tem motivado e conduzido as várias ações do MST nacionalmente, nos setores e nós aqui na regional amazônica também.”
Já o músico Marquinhos Monteiro exerce uma outra função muito especial no projeto: todo dia, ele salta de turma em turma para alegrar os alunos ao som de um violão embalado por letras que cantam a sina do povo do sertão. O militante é o autor da música oficial do Sim, Eu Posso.
João Pedro Stedile afirma que o MST defende a transformação do projeto em uma política de Estado no país, para que as ações sejam permanentes.
Atualmente, o projeto tem jornadas de alfabetização no Maranhão e em Alagoas. Paralelamente, está sendo articulada mais uma experiência, desta vez em Minas Gerais.