FMI: eleições e democracia são problema
O “mercado”, basicamente o agrupamento dos ricos nas sociedades, cansou da brincadeira de democracia do século XX. Mais e mais seus representantes deixam claro que a presença dos pobres na cena política é inadmissível e acenam com o retorno à plutocracia –o governo exclusivamente dos ricos. É a “quase ditadura”, na definição do filósofo Giorgio Agamben.
Por Mauro Lopes
Publicado 29/01/2018 13:38
O Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um relatório nesta quinta (25), sob responsabilidade de Alejandro Werner, diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental, decretando que os processos eleitorais na América Latina são um transtorno: “As eleições programadas em muitos países criam incertezas econômicas e políticas para o próximo ano”. No caso do Brasil, o relatório praticamente pede que o fantasma Lula seja interditado: um “desfecho incerto das eleições gerais de 2018 pode afetar o crescimento econômico”.
A cada dia, o “mercado” este ente que nada mais é que o agrupamento dos ricos nas sociedades, deixa claro que a experiência de democracia do século XX e que chegou a fronteiras “perigosas” na América Latina na virada do século precisa ser encerrada. Pois ela é um risco à “economia” –eufemismo criado para os investimentos dos rentistas.
Vale tudo no jogo pesado das instituições internacionais que representam o “mercado” no combate à democracia. Dois dias atrás renunciou o economista-chefe do Banco Mundial, Paul Romer, depois que a organização falsificou dados para prejudicar o Chile e especificamente o governo da socialista Michelle Bachelet num ranking de competitividade internacional. O mesmo Banco Mundial havia, em novembro, um relatório sobre o Brasil determinando o que o país deveria fazer em sua economia.
Armínio Fraga, praticamente nomeado ministro da Fazenda do governo Aécio Neves em 2014 –se os pobres não tivessem dado a vitória a Dilma- tem recorrentemente atacado os processos eleitorais. Por diversas vezes nos últimos meses, Fraga, que é dono de uma dessas butiques de investimentos, a Gávea, investiu contra o pleito de 2018. A última vez foi em dezembro, e sempre com o mesmo bordão: as eleições representam uma ameaça concreta de eleger um “candidato populista” –o que significa, na linguagem dos acadêmicos alinhados aos ricos, um candidato vinculado aos pobres. Ele chegou a insinuar, já em agosto passado, que os ricos não admitem que Lula seja candidato: “Se Lula for candidato, vai voltar ao mesmo padrão de mentiras e promessas de antes”.
Houve uma mudança significativa no polo dos ricos a partir da virada do século, especialmente a partir da crise de 2008, com uma financeirização sem precedentes. Os ricos, hoje, raríssimas exceções (se é que existem) incrementam suas fortunas com base em juros e operações de engenharia financeira que, ao fim e ao cabo, estão estruturadas a partir das taxas de juros e seus derivativos. O poder de Estado –e o golpe no Brasil é o exemplo mais cabal disso- deve estar a serviço deste sistema, desta máquina. Isso criou um conflito mortal: “Se a política econômica dos governos é fortemente favorável aos interesses financeiros, ela não poderá ser legitimada na democracia formal realmente existente. Pois entra em confronto com o interesse da maioria da população que não ganha e nem vive de juros” afirmou em entrevista o professor Eleutério F. S. Prado, livre docente aposentado na FEA-USP.
Mais ainda, “a própria normatividade neoliberal requer um forte esvaziamento da substância da democracia, a qual então passa a existir como uma casca sem miolo ou com um miolo que lhe é estranho. Eis que o neoliberalismo quer suprimir os direitos conquistados historicamente pelos trabalhadores. Requer o enfraquecimento das instituições de proteção dos mais pobres. Pretende proteger as instituições econômicas das ingerências políticas. Enfim, a democracia pressupõe o cidadão, mas o neoliberalismo quer transformar o humano em mero agente econômico. E este apenas compete dentro de regras que não cria e, por isso, não se junta a outros na luta pelo comum”.
Como pontuou o economista José Luís Fevereiro, da direção nacional do PSOL, “para o atual estágio do capitalismo, a democracia, tal como os países ocidentais a conheceram na segunda metade do século XX, tornou-se disfuncional” e precisa ser moldada aos interesses dos ricos.
Assistimos de fato ao colapso da democracia. As eleições precisam ser esterilizadas para evitar qualquer risco. Se não o forem, logo mais deixarão de existir, pois o sistema, que afirma estruturar-se a partir do risco, em verdade não admite risco algum –o afastamento de Lula da disputa presidencial no Brasil é a comprovação de que não há limites.
O Papa Francisco indicou esta condição de crise profunda do sistema democrático, no histórico discurso no III Encontro Mundial dos Movimentos Populares realizado ao final de 2016 na Bolívia: “Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca.”
Vivemos esta “espiral descendente” que o filósofo italiano Giorgio Agamben qualificou como “estado de exceção” num livro profético lançado em 2003[1]. Nele, vale a lógica da necessidade (no caso, da necessidade dos ricos) que tem dois sentidos aparentemente opostos : “a necessidade não reconhece nenhuma lei e a necessidade cria sua própria lei” (40). Isso leva a esta situação paradoxal que vivemos no Brasil e foi tipificada por Agamben: “As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (11/12).
É um estado de “vazio jurídico” no qual aos magistrados (eles mesmos ricos e representantes dos ricos) têm “poder ilimitado” não porque haja propriamente uma ditadura, mas uma nova condição, de “quase ditadura”, na qual convive um estatuto constitucional ao lado de uma segunda estrutura, o poder de fato dos juízes ricos alicerçado em leituras e interpretações ao seu sabor: “Por um lado, o vazio jurídico de que se trata no estado de exceção parece absolutamente impensável pelo direito; por outro lado, esse impensável se reveste, para a ordem jurídica, de uma relevância estratégica decisiva e que, de modo algum, se pode deixar escapar”. (67-80) É “a imposição da tutela do Judiciário, o único dos três poderes que não emana do povo, mas de uma meritocracia da Casa Grande”, escreveu Fevereiro.
O que temos agora? O fim da democracia, pelo poder até o momento incontrastável dos ricos. Mas não é (pelo menos ainda não é) uma ditadura como a que experimentamos no Brasil e América Latina nos anos 1960/80. É uma “quase ditadura”, na qual eleições e participação política dos pobres são um transtorno a ser equacionado –de um jeito ou de outro.
[1] AGAMBEN, GIORGIO. Estado de exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007. 142 p.