Agnès Varda, Irmã das coisas fugidias
O cinema, entre muitas outras coisas, é uma arte do encontro. A prova definitiva disso, se é que faltava uma, é o adorável documentário Visages villages, de Agnès Varda e JR, em cartaz nos Brasil desde quinta-feira (25). Não só pela parceria improvável de seus realizadores e protagonistas – uma cineasta de quase 90 anos e um fotógrafo e muralista de 34 –, mas também por seu tema e seu método de construção.
Por José Geraldo Couto*
Publicado 26/01/2018 20:25
Para dizer resumidamente, os dois saem pelo interior da França na van-estúdio do artista à procura de rostos (visages) e vilarejos (villages) para fotografar. Ampliadas em grande escala, as imagens de pessoas, invariavelmente em preto e branco, são coladas sobre superfícies diversas, da fachada de uma casa à lateral de um celeiro, de um reservatório de água a muros de uma fábrica. Nesse processo, tudo acaba por se transformar, numa ressignificação permanente: as paisagens, os indivíduos e as relações entre ambos.
Permanência e transformação
Conta-se que, durante a filmagem de um western de John Ford, um dia amanheceu com chuva. O diretor de fotografia, desolado, perguntou ao cineasta o que fazer. “Vamos filmar a paisagem mais expressiva que existe”, respondeu o mestre: “o rosto humano”.
Visages villages é, de certo modo, a demonstração prática dessa ideia e ao mesmo tempo o seu desdobramento em mão dupla, uma vez que aqui não só o rosto é uma paisagem, mas esta também é um rosto – que se modifica pela presença e pela ação daqueles que nela vivem.
Juventude reencontrada
Como quem não quer nada, a diretora insere neste insólito road movie imagens e reminiscências de sua trajetória pessoal e artística, revisitando lugares e personagens que lhe são caros. Esse resgate da memória afetiva se dá sem nostalgia (e muito menos pieguice), uma vez que é temperado pela postura autoderrisória da cineasta e por sua relação ao mesmo tempo carinhosa e jocosa com o jovem JR, feita de brincadeiras e provocações mútuas.
No centro do jogo entre o passado e o presente, entre o que passa e o que permanece, está uma incontornável figura presente/ausente: Jean-Luc Godard, o flamejante líder da Nouvelle Vague, movimento do qual Agnès foi a única representante feminina. Godard é evocado desde o início, quando a diretora diz que o hábito de JR de se esconder por trás de óculos escuros lembra o de seu velho amigo cineasta. A bem da verdade, toda a figura do fotógrafo – os óculos, o chapéu preto de feltro, a postura cool – remete ao jovem Godard.
Agnès e JR chegam a reencenar parodicamente no Louvre a famosa sequência do godardiano Band à parte (1964), em que os amigos correm esfuziantes pelas galerias do museu, cena citada também em Os sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci. Mais importante: eles vão à cidadezinha suíça onde vive hoje o octogenário diretor para visitá-lo. O impactante desfecho dessa tentativa de encontro, que não vou antecipar aqui, diz muito sobre o temperamento antagônico desses dois velhos amigos distanciados, Agnès e Jean-Luc.
Se Godard, o misantropo, é a inteligência fria e implacável, não isenta de arrogância, Varda é quase o oposto: uma sensibilidade aberta ao outro, ao acaso, ao erro, que valoriza mais as relações de afeto do que uma suposta integridade da “obra”. Todo o seu cinema é poroso, permeável à vida, com seus ímpetos e imperfeições. Quem viu seu belo As cento e uma noites (1995) sabe que para ela uma amizade – e seu registro, ainda que apressado e provisório – vale mais do que um enquadramento perfeito ou uma sequência genial.
Cinema que pulsa e respira como a própria vida, efêmera e intensa. “Irmã das coisas fugidias”, chegando aos 90 anos, Agnès Varda pode dizer, como Cecilia Meireles: “Eu canto porque o instante existe. (…) E um dia sei que estarei mudo – mais nada”.
Assista ao trailer: