Publicado 24/01/2018 00:02
Como diz o prof. Juarez Cirino dos Santos, “as garantias fundamentais de proteção do cidadão contra o poder repressivo do Estado podem ser assim enunciadas: se existe prova da materialidade de um crime, a Polícia deve instaurar uma investigação para identificar sua autoria; se existe prova da materialidade de um crime e indícios suficientes da autoria, o Ministério Público deve iniciar a ação penal; se, finalmente, além de qualquer dúvida razoável, existe prova do crime e indicações suficientes de sua autoria, o juiz pode condenar o acusado, observado o devido processo legal, com o contraditório processual, a ampla defesa, a presunção de inocência e outras garantias”.
Ainda nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, “ o caso aqui envolve a violação de todos esses direitos. A investigação foi feita com base em suspeita de autoria de fatos indeterminados, sem, portanto, a prova da materialidade, que se buscou obter por meio das colaborações premiadas e conduções coercitivas ilegais; a denúncia foi apresentada sem nenhuma prova de materialidade de fato imputado, com imaginários indícios de autoria que ficaram sintetizados naquela célebre frase: “não temos prova, mas temos convicção”.
E a sentença condenatória é totalmente desviante dos próprios termos trazidos na denúncia do Ministério Público Federal que afirma que os recursos que deram origem à obtenção do famoso tríplex do Guarujá derivaram de 3 (três) contratos com a Petrobras mantidos por consórcios integrados pela construtora OAS, sendo um para obras na refinaria Getúlio Vargas – REPAR e outro para a Refinaria Abreu e Lima – PE. Em síntese, Lula seria o dono oculto do apartamento, que teria origem em dinheiro de propina, não se ele era “chefe máximo do petrolão” ou coisa que o valha. Todavia, na sentença que condenou o ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, somando 9 anos e 6 meses de reclusão, o juiz Sérgio Moro não demonstra os vínculos entre os contratos para essas obras e o apartamento do Guarujá.
Carece de comprovações os saltos entre esquemas de corrupção da Petrobras – propinas da OAS – corrupção passiva de Lula – lavagem de dinheiro pela posse/ocultação do tríplex.
Um exemplo dessa incoerência está na p. 213 da sentença condenatória, item 863, quando argumenta o juiz Sérgio Moro sobre a possibilidade de existir crime de corrupção sem a prática de ato de ofício ilegal do réu, já que no caso Lula teria recebido a vantagem quatro anos depois de ter deixado a Presidência, e cita o direito norte-americano como fundamento, como no item 865 da sentença.
Ocorre que Sergio Moro neste ponto ignorou, como bem lembrou o cientista político Leonardo Avritzer, a decisão da Suprema Corte americana a partir da apelação do ex-Governador da Virgínia Robert McDonell, de 27 de junho de 2016, no chamado caso McDonnell v. United States, em que a Corte derrubou as possibilidades de condenações por corrupção sem ato de ofício.
As decisões trazidas por Moro como fundamentação da desnecessidade de ato de ofício vão na contramão do argumento do juiz, especificamente US x DiMasi pois elas explicitam a necessidade do ato de ofício, ao contrário do que diz o magistrado. Como disse Janio de Freitas em texto de recente publicado na Folha de São Paulo, Lula foi condenado por “ato de ofício indeterminado”, ou seja, inexistente.
Curiosamente, na decisão em que recebe a apelação decorrente da sentença, o próprio juiz deixa claro: “este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para o pagamento do ex-Presidente.”
Temos algumas conclusões possíveis: o princípio do juiz natural não foi obedecido, já que pela regra do art. 70 do CPP a competência para será em regra determinada pelo lugar em que se consumou a infração, que em tese seria o local do imóvel supostamente oculto do patrimônio do ex-presidente (SP). A condenação é decorrente unicamente da colaboração premiada de Leo Pinheiro e a declaração de Moro acima transcrita deixa claro que não houve prova do alegado pelo Ministério Público Federal, e existe total falta de conexão entre a sentença e a linha de raciocínio da denúncia do Ministério Público.
O problema é que o argumento de que “o Juízo jamais afirmou que os valores obtidos pela OAS foram utilizados para o pagamento do ex-Presidente” diverge do teor da denúncia. Além disso, se o caso do tríplex do Guarujá não viria diretamente de contratos com a Petrobras, ela não estaria ligada à operação Lava-Jato, o que poderia suscitar, a despeito da decisão do Min. Zavascki sobre o tema, a incompetência do Juízo da causa para o processamento e julgamento.
*Alexandre da Maia é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE