Publicado 16/01/2018 15:26
A sociedade brasileira foi vítima, a partir de 2013, de um dos ataques mais insidiosos e virulentos do capitalismo financeiro internacional.
O ataque teve um sentido duplo: quebrar a nascente experiência do BRICS enquanto tentativa de inserção internacional autônoma do País e transformar o Orçamento público por meio da dívida pública – gigantesca fraude de socialização de prejuízos e privatização de lucros –, além das riquezas nacionais, em um espaço livre para a rapina econômica de uma ínfima elite.
Como as outras frações dos proprietários, incluídos o agronegócio e a indústria, retiram seu lucro maior, crescentemente, da mesma fraude, a fração financeira do capital passa a ter o comando do processo econômico e do processo político.
O capitalismo financeiro não é apenas uma nova ordem econômica mundial. Ele não muda apenas a forma e a velocidade da acumulação do capital e a forma do controle do processo de trabalho.
Também criminaliza e estigmatiza a esfera política para que esta perca qualquer autonomia e a agenda predatória financeira possa impor-se sem qualquer restrição. E, acima de tudo, deseja evitar a mediação política como expressão de interesses das classes populares.
Daí a criminalização dos movimentos populares, o ataque aos sindicatos e a estigmatização dos partidos de esquerda. Na dimensão simbólica, o ataque foi planejado há décadas pela disseminação de think tanks conservadores no mundo e pela compra e cooptação da indústria cultural e da mídia.
O núcleo duro da nova forma de poder é bifronte: o capital financeiro assalta a população e legaliza sua corrupção pela compra da política e do Judiciário. E a mídia frauda o público por meio da distorção sistemática da realidade.
Essa estratégia de manipular as mentes para assaltar o bolso dos imbecilizados tem sólida tradição no Brasil. Como mostro no meu livro mais recente (A Elite do Atraso, Leya, 2017), a elite paulistana construiu a criminalização seletiva da política, contra Getúlio Vargas e seu projeto nacional, ao cooptar a elite intelectual e fundar a imprensa elitista e venal que hoje possuímos.
A ascensão de Vargas, com o apoio da classe média “tenentista”, havia mostrado à elite a necessidade do controle da heterodoxia rebelde da classe média letrada. Se em relação à classe trabalhadora e à “ralé” de marginalizados a violência material e física era, e continua a ser, o tratamento “normal”, em relação à classe média a estratégia teria de ser outra.
Como a pequena elite precisa da classe média como sua aliada carnal no exercício diário da dominação econômica social e política, esta tem de ser seduzida e conquistada. Daí a estratégia de convencimento e não de repressão. Para “convencer” é preciso ideias e uma imprensa elitista e venal para distribuí-las.
Essa elite criou a USP como seu gigantesco think tank do liberalismo conservador brasileiro e a tornou universidade de referência nacional, que forma os professores e estipula os critérios das outras instituições de ensino superior.
Assim, temos a formação de todas as elites nacionais segundo uma referência comum, as ideias centrais de patrimonialismo e de populismo, ambas criadas e difundidas pela USP.
A primeira tese sustenta que a corrupção é só do Estado e da política para tornar invisível a corrupção do mercado, possível pela captura do poder público enfraquecido e criminalizado. Depois, ainda diz que a elite do mal está no Estado, tornando o mercado um espaço idealizado de virtudes como empreendedorismo, honestidade, trabalho duro e iniciativa individual.
O conceito de populismo serve, por sua vez, para tornar as classes populares suspeitas de burrice inata e, portanto, presas fáceis de líderes demagógicos e manipuladores. Com isso, de uma penada, pode-se mitigar o efeito do princípio da soberania popular e tornar suspeita qualquer liderança popular. São essas ideias, distribuídas desde então todos os dias, que envenenam a capacidade de reflexão da população.
Não bastasse, criou-se uma narrativa histórica de longa duração, baseada nessa visão distorcida, possibilitando uma singularidade “vira-lata”, hoje patrimônio indissociável de todo brasileiro. É que a corrupção dos tolos, só do Estado e da política, passa a ser percebida como herança portuguesa e ensinada não só nas universidades, mas a toda criança brasileira na escola.
O ridículo dessa crença, que supõe já existirem no século XIV em Portugal noções que só seriam criadas no século XVIII, entre elas a ideia moderna de bem público, que pressupõe o conceito de soberania popular, não parece ter incomodado ninguém.
O ponto decisivo, ao arrepio da verdade e da inteligência, é inverter o sentido de apropriação privada do público como atributo do Estado e da política e nunca do mercado e da elite de proprietários.
Sem o esclarecimento dessa pré-história, a conjuntura atual é incompreensível. O golpe de 2016 é uma continuidade aprofundada e mais cruel dessa grande fraude brasileira iniciada em 1930. Todos os golpes de Estado desde então tiveram exatamente o mesmo roteiro.
No mais recente, não apenas se reverberou a mentira pronta de cem anos da corrupção dos tolos e do populismo. Sob o comando da Rede Globo e da farsa da Operação Lava Jato, atacou-se o próprio princípio da igualdade social como maior valor do cristianismo e da cultura ocidental.
O ataque seletivo ao PT, entre 2013 e 2016, como “organização criminosa”, narrativa criada pela Globo e depois assumida pela própria Lava Jato, desnudando seu conluio midiático e elitista, é o principal elemento da conjuntura.
O PT, com todos os seus defeitos, foi a única verdadeira novidade da política brasileira nesses últimos cem anos. Um partido que nasceu, em grande medida, de baixo para cima, espécie de confederação de movimentos sociais e associações de trabalhadores do campo e da cidade que procurou assegurar uma pequena parte da riqueza social e do Orçamento público para a maioria carente.
Ao criminalizar tão somente o Partido dos Trabalhadores, enquanto se “fulaniza” a corrupção das demais legendas, conseguiu-se rebaixar a própria demanda por igualdade que o PT simbolizava para as classes populares, de fim moral mais alto em simples meio para um suposto saque ao Estado.
Para onde vão o ressentimento e a raiva justa que os excluídos sentem por causa da exclusão? Sem expressão racional e política possível, o ressentimento popular transforma-se em massa disforme de anseios, medos e desejos irracionais à procura de expressão. Esse é o verdadeiro pano de fundo para as eleições de 2018.
Jair Bolsonaro, como ameaça real, só é compreensível pela ação conjunta do conluio Globo-Lava Jato. Por sua vez, a imunidade parcial de Lula a uma desconstrução orquestrada é reflexo da inteligência prática das classes populares que percebem a política como o jogo dos ricos e corruptos, e querem saber unicamente o que sobra para eles. E foi Lula quem entregou algo a quem nunca teve nada.
Apesar do sucesso pragmático inicial, o golpe perde legitimidade a cada dia. Seu planejamento míope e de curto prazo cobra agora um alto preço daqueles que sujaram as mãos pela elite do saque, a começar pela mídia venal que arriscou seu capital de confiança. E passa pela casta jurídica que acobertou a Lava Jato e destruiu a segurança jurídica e pela política tradicional, que perdeu qualquer legitimidade.
Articuladores tão medíocres fizeram com que, pela primeira vez nestes cem anos de domínio material e simbólico da elite do saque, as entranhas do País real estejam à mostra como nunca dantes. Tudo que era sólido se desfez no ar. Todas as ideias que colonizavam a direita e a esquerda também.
As oportunidades abertas pelo fracasso na legitimação do golpe são revolucionárias. Elas podem efetivamente permitir expor a crueldade do domínio de uma elite mesquinha e de seus prepostos hipócritas na mídia e no aparelho de Estado. Abre-se a possibilidade objetiva de um processo de aprendizado histórico inédito no Brasil.
O problema real da oposição de “esquerda” é que ela foi criada nesse mesmo jogo e, ainda pior, nas mesmas ideias. A esquerda é tão miopemente moralista quanto a direita. Também não possui ideias próprias sobre o funcionamento da sociedade ou do Estado.
Daí ter perdido a narrativa da ascensão social, que ela mesma produziu, para as igrejas evangélicas. Daí ter aparelhado e dado força a instituições de Estado que depois a perseguiram com sanha assassina.
Como em toda crise radical temos agora em 2018 tanto a possibilidade do caos quanto a oportunidade do novo. O discurso da esquerda não pode ser o da volta ao passado, mas o do aprendizado de um novo futuro. O desafio é difícil, mas incontornável.