Resistência às mulheres é maior no setor privado, diz juíza
O discurso de Michel Temer (PMDB) pelo Dia Internacional da Mulher, do ano passado, deixou a presidente eleita da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Vera Deboni, “indignada”. Enquanto o presidente da República reduzia o papel das mulheres na economia a saber os preços do supermercado, em uma carta aberta, ela apontava: “O senhor precisa saber que, em pleno século 21, nossa força de trabalho representa 43,8% do total no país”.
Por Fernanda Canofre para o Sul 21
Publicado 15/01/2018 14:19
Com 30 anos de carreira na magistratura, em dezembro, Vera foi eleita para a presidência em uma eleição disputada por duas mulheres, pela primeira vez em 73 anos de história da associação. No dia 1º de fevereiro, a juíza se tornará a segunda mulher a ocupar o cargo.
Quando se tornou pretora, uma espécie de juíza auxiliar, aos 26 anos, mulheres na magistratura ainda eram uma novidade. Hoje, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, possui 99 desembargadores e 40 desembargadoras. Já no primeiro grau, as mulheres são maioria: 356 para 318 homens.
Em entrevista ao Sul21, ela lembra das dificuldades em ser mulher no Judiciário em uma época em que as cortes não estavam acostumadas e fala do papel do mesmo hoje:
Sul21: Segundo o CNJ, 37% da magistratura do país é composta de mulheres. No Rio Grande do Sul, o índice é maior, gira em torno de 53%.
Vera: Quando eu fiz o concurso, nós éramos 23%. Hoje, no Primeiro Grau, somos mais de 50%. Em torno de 53%. No Tribunal chega próximo aos 45%. Por que no Tribunal tem menos? Porque a carreira feminina na magistratura demorou mais tempo. Nós temos, na nossa história, as duas primeiras mulheres juízas, Maria Berenice Dias e Regina Bollick, no final dos anos 1970. É muito [recente] e a carreira no Tribunal corresponde a isso. Tem que “envelhecer” na carreira, para poder chegar ao Tribunal.
Sul21: Qual o significado, para quem está no Judiciário, ter essa representação das mulheres?
Vera: Se a gente pensar em termos de anos, eu entrei em 1987, com 23%, nós estamos 30 anos depois com o dobro e a tendência é que cresça. Acho que isso é a conquista do espaço [pelo] feminino, da mudança de um paradigma, das mulheres que antes tinham muito mais dificuldade em poder se colocar, não só no mercado de trabalho, mas também nos espaços acadêmicos, para poder alcançar [uma vaga] de trabalho mais qualificada. O trabalho de menor qualificação sempre absorveu a mão-de-obra feminina, lamentavelmente. Claro que ainda temos muito espaço para conquistar. E, hoje, acho que é muito mais no privado, do que no público. A minha leitura é que, se hoje há ainda resistências – e eu entendo que há – é muito mais na esfera privada, para os cargos de maior importância, do que na pública. Como a esfera pública é composta de carreiras, que são estruturadas a partir de concursos, ela te dá essa entrada democratizada do gênero.
Sul21: Em 73 anos de Ajuris, tu és recém a segunda mulher a chegar à presidência e, numa eleição histórica, em que duas mulheres disputaram o cargo. Qual o valor simbólico disso?
Vera: Quando nós tivemos a primeira mulher na presidência da Ajuris, que foi a Denise Cézar (2006), foi um momento histórico muito importante para nós. Nós estamos doze anos depois tendo uma mulher de novo na Associação. É recente, a Denise foi a 30ª. Tivemos 29 homens, antes de ter a primeira mulher. O fato de, nessa eleição, também sermos duas mulheres, acho que é uma consequência natural.
Sul21: Um reflexo da própria magistratura?
Vera: Do desenho da magistratura, acho que sim. Embora, quando a gente olhe para outros estados, no Nordeste, por exemplo, eles têm um número de mulheres muito maior que nós e há muito mais tempo. Mas, eles não tiveram muitas mulheres presidindo suas associações. São espaços mais masculinos. Nós temos uma associação nacional, a AMB (Associação de Magistrados do Brasil), que nunca foi presidida por uma mulher. Nem teve mulheres candidatas. O que é um reflexo. Acho que esse empoderamento a partir das associações estaduais, de vida associativa, de participação direta, é o que vai construir.
Sul21: As campanhas recentes em Hollywood, por exemplo, mostram que, mesmo mulheres que conseguiram se firmar na carreira, seguem enfrentando desafios como assédio, dúvidas sobre suas capacidades. Tu tiveste alguma experiência assim?
Vera: No trabalho da magistratura, nunca. Quando eu ingressei, em 1987, era uma grande novidade ainda para o Judiciário, compreender o que era o feminino, principalmente, um feminino muito jovem. A orientação que a gente recebia, do nosso Tribunal, a partir da Corregedoria da época, dos juízes corregedores, que eram todos homens – nesse concurso, foram quase 100 [pessoas], 40 delas mulheres, um impacto muito grande – era de “tome cuidado”, “não fique sozinha muito tempo na sala com um homem”, “quando atender um homem, atenda sempre de porta aberta”. Eu compreendo a recomendação. De verdade, eles não sabiam como lidar com esse feminino que estava chegando e também não sabiam como as pequenas comunidades iam entender aquelas mulheres, naquele lugar. Eu conto sempre essa história, porque acho que ela é muito pitoresca. Eu recebi uma recomendação, na época, de um juiz corregedor, para que eu usasse anágua. Eu lembro que eu telefonei pra minha mãe e ela riu muito, dizendo “minha filha, esse negócio, só quem tem é a tua vó”. Nós estávamos saindo de um processo de revolução sexual, uma anágua era um estorvo. Eu recebi a recomendação, até hoje não entendi porque. Todas nós cumprimos um ritual, naquele período, de usar roupas absolutamente taciturnas. Fomos pretoras muito sóbrias. Eu lembro que, quando passei no concurso, mandei fazer uma bateria de tailleurs. Preto, marrom, cinza, azul-marinho. Tudo muito escuro. Todos com blusas fechadas até o pescoço, porque não queríamos ser vistas com qualquer possibilidade de provocação. Hoje, isso nem se pensa. Jamais alguém vai dar esse tipo de recomendação. E eu cumpri.
Sul21: Como era para uma jovem estudante de Direito não ver mulheres como ela, em postos do escalão mais alto do Judiciário?
Vera: Era natural. Nunca me fez questionar que eu não chegaria lá. Eu tinha uma certeza: no momento em que eu entrei, que eu fiz o concurso, aquela era uma carreira possível, que ia depender de mim e das minhas escolhas. Sabia que, com certeza, seríamos mais exigidas – e fomos, mais controladas, que seríamos mais fiscalizadas. A nossa conduta pessoal seria cuidada de outro jeito, pelo Tribunal, [diferente] da masculina. Na época, eu tive minha primeira união estável, que não tinha nem esse nome. Aquilo me trouxe um incômodo. Eu respondi, perante o Tribunal, por que eu não me casava.
Sul21: E para um homem, eles não teriam perguntado.
Vera: Acho pouco provável. Não conheço histórias de alguém que tenha sido perguntado. Conheço uma história, de um desembargador, que quando ingressou na carreira, foi perguntado porque ele era “desquitado”. Mas nunca perguntaram para ele, por que ele vivia com outra pessoa. Para mim, que era solteira, vieram me perguntar por que eu não casava. Na época, obviamente que fiquei muito indignada. Tanto que eu vivi 12 anos com meu primeiro companheiro, sem casar, como questão de honra. Hoje, olhando para trás, eu compreendo o que aconteceu. Era um Tribunal impactado, vivendo todo um período de mudança social, havia preconceito em todo o mundo externo, não só lá dentro. Se isso acontecesse hoje, seria motivo para fazermos uma revolução.
Sul21: Tu também fizeste parte do movimento do Direito Alternativo (1990), que foi um marco na história do Judiciário brasileiro. Pode falar um pouco sobre ele?
Vera: Nós tínhamos saído de um processo constituinte e a Constituinte mexeu muito conosco. Eu ingressei em 1987, mas o movimento da Constituinte, dentro da Ajuris, já havia se formado antes. Até a eleição de 1986, quando o juiz Ivo Gabriel da Cunha assume, nós só tínhamos tido desembargadores presidentes da associação. Isso foi outro marco histórico, ele capitaneou dentro da Ajuris uma grande participação dos juízes do Rio Grande do Sul no processo da Constituinte. Tivemos um ativismo muito importante. Nós montamos as propostas a partir de reuniões regionais, com grandes encontros estaduais. Isso trouxe um olhar novo da magistratura para um novo país. Nós queríamos garantias de direitos e queríamos garantias de direitos sociais. Quando se sai de uma ditadura, isso é precioso. Nesse período, fomos criando um grupo de juízes, onde eu era mais uma expectadora, que começou a pensar no que a gente tinha conquistado com a Constituinte, como a gente ia colocar em prática. Por exemplo, o direito social à propriedade da terra era um direito novo. A Constituição dizia que a terra teria que ter função social, então, como iríamos estruturar as nossas decisões para que esse direito fosse contemplado? Como vamos escrever isso nas nossas decisões, para que as nossas sentenças virem depois decisões no Tribunal e jurisprudência? O Direito Alternativo foi isso, foi um novo pensar, que se criou a partir de um artigo de um ministro do Supremo Tribunal Federal que dizia que o Rio Grande do Sul estava julgando contra a lei. O RS estava discutindo como fazer para que a Constituição, que era nova, pudesse ser implementada.
Sul21: Ou seja, teve resistência a esse movimento?
Vera: Teve. Acho que houve também com relação ao nome, talvez a infelicidade tenha sido na denominação daquele movimento “alternativo”. Talvez hoje, se ele fosse rebatizado, ele poderia ser “constitucional” ou da “constitucionalização do Direito” ou “garantia e defesa de direitos humanos e sociais”.
Sul21: Existiam críticas a juízes que se manifestavam, tomavam posições, como se tem hoje? No ano passado, por exemplo, quatro juízes do Rio de Janeiro foram processados por participarem de uma manifestação contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Um pouco antes, a juíza Kenarik Boujikian foi suspensa por decidir pela liberação de presos que haviam passado do tempo limite para prisão provisória, sem julgamento.
Vera: Eu acho que aquele período do direito alternativo trouxe o primeiro movimento de militância. Como tínhamos ainda uma série de leis que não estavam adaptadas para a nova Constituição, o que o direito alternativo dizia? Nós não vamos aplicar a lei, mas vamos usar o princípio constitucional. Nós estávamos dentro da caixa legal, estamos com a moldura da Constituição, vamos negar determinada lei porque não está adaptada. Esse exemplo que tu dás, do Rio de Janeiro, é em razão de uma manifestação político-partidária. O da juíza de São Paulo é de uma função jurisdicional, é uma leitura de lei. O que ela disse? Estão presos há tempo demais… Depois o próprio Supremo [reconheceu]. Ali houve uma tentativa de controle da função jurisdicional dela, o que me parece que está absolutamente equivocado. O Tribunal tem que controlar a nossa jurisdição sim, mas dentro do processo, no recurso, não na nossa vida profissional.
Sul21: Como tu vês o Judiciário nesse aspecto hoje?
Vera: Eu acho que temos, sim, uma liberdade de posicionamento na jurisdição. Quando acontece algo, temos uma estrutura de controle que afasta a possibilidade do controle administrativo sobre a jurisdição. Quando sai da curva, como foi o caso da Kenarik, o próprio sistema devolve e diz que foi errado. Acho que hoje temos essa liberdade de manifestação, para aquilo que o juiz pensa na decisão. Isso é fundamental.
Sul21: Como alguém que participou desses movimentos, quais as pautas que tu esperas ver o Judiciário avançar nos próximos anos?
Vera: De uma leitura a partir do olhar do associativismo, que a gente possa ter as garantias da magistratura preservadas. Que nós possamos continuar sendo independentes e que a nossa independência não seja tocada. Não só nesses controles, mas dentro de uma estrutura de funcionamento de poder. O juiz precisa ter sua independência funcional preservada a partir dos pilares que a Constituição construiu. Precisamos ter irredutibilidade de vencimentos, porque o juiz que é mal pago ou que tem vencimentos reduzidos, perde suas garantias e a garantia não é dele, é da vida da sociedade que ele julga. Precisamos ter a inamovibilidade garantida, para que ele possa julgar os “poderosos”, sem correr riscos.
Sul21: E o papel do Judiciário, junto à sociedade?
Vera: Acho que o Judiciário é cada vez mais a última porta. É porta de defesa dos valores da cidadania, a partir do julgamento do caso concreto, que talvez seja, a pior forma disso ter que acontecer. O ideal seria termos políticas públicas que garantissem o direito de todos, que tivessemos saúde, educação, moradia, vida digna. A medida da demanda que chega no Judiciário, nós estamos sendo os agentes que estão garantindo isso. Mas, conforme as pernas do Judiciário, porque nós estamos assoberbados. Antes, a maioria dos ações eram do “Pedro contra o Paulo”, hoje, a grande enxurrada, a absoluta maioria, é do “Pedro contra o Estado”. Porque o Estado não fornece aquilo que deveria estar fornecendo. Isso é o afogo do Judiciário de hoje.