Sem debates sobre idosos no Brasil pós golpe
Diante das novas tendências demográficas e da ampliação da longevidade, à tradicional visão da pessoa idosa como sujeita à incapacitação progressiva nos âmbitos físico, econômico e social, contrapõe-se uma mudança de percepção em direção à maior possibilidade de sua integração e reinserção dinâmica na sociedade.
Por Neusa Pivatto-Müller*, na Carta Maior
Publicado 10/01/2018 12:00
No Brasil, perdem espaço os debates sobre a população idosa referentes aos desafios que afetam esse grupo populacional: o direito à igualdade e a não discriminação; a conscientização quanto à questão da interação social; o direito à integridade física e mental; o direito de participar ativamente da vida social, cultural e política em sua comunidade; o direito a condições dignas de existência, direitos trabalhistas e previdenciários.
Nos últimos 20 anos, o Brasil protagonizou uma profunda mudança de paradigma nas políticas para as pessoas idosas. O marco legal introduzido pela legislação do país possibilitou avançar de maneira contundente na promoção e na garantia dos direitos individuais e coletivos desse segmento da população.
Lamentavelmente, esse processo perdeu espaço e, o que é pior, avança na perda de direitos, duramente conquistados ao longo da história, como os/as trabalhadores/as que ainda não chegaram aos sessenta.
O país vinha num processo de avanços para promover a implementação de instrumentos relevantes acerca dos direitos das pessoas idosas. Em 2003, aprovou o Estatuto do Idoso, que regula os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos e busca institucionalizar diversas disposições presentes no Plano de Ação Internacional de Madri sobre Envelhecimento, de 2002.
O Estatuto reitera que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa a efetivação dos seus direitos. As disposições do Plano de Ação de Madri foram igualmente incorporadas à Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa de 2006.
O Decreto 8.114, assinado em 2013, instituiu o Compromisso Nacional para o Envelhecimento Ativo, com objetivo de conjugar esforços da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em colaboração com a sociedade civil, para valorização, promoção e defesa dos seus direitos.
O Brasil, então, exercia papel de protagonista nas discussões sobre os direitos das pessoas idosas na esfera regional, no âmbito da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (Cepal) e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
No Mercosul, a Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos instituiu, em 2009, o Grupo de Trabalho sobre a População Idosa, que consolidou a presença do tema na agenda de direitos humanos do bloco.
Em 2013, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou, por consenso, a iniciativa brasileiro/argentina, que criou o mandato de perito independente sobre os direitos das pessoas idosas. A ação é um avanço significativo nos esforços de incluir, em caráter permanente, os direitos das pessoas idosas na agenda internacional de direitos humanos.
De 2012 a 2015 o país participou, com atuação destacada, na elaboração da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, o que valeu à representante especialista brasileira no grupo da OEA a única menção de elogio, pela sua atuação.
Embora a Convenção tenha sido assinada pelo Brasil em 2015, na OEA, até hoje ela não foi ratificada pelo Congresso brasileiro, em um movimento inverso ao dos muitos países que já a ratificaram.
Tendo participado ativamente das discussões em diversos âmbitos sobre a questão dos direitos das pessoas idosas, o Brasil, então, considerava fundamental que houvesse avanços em matéria de normatização internacional e reafirmou a importância de uma convenção abrangente sobre os direitos da população idosa no âmbito da ONU visando proteger os direitos e a dignidade desse grupo sujeito a vulnerabilidades.
Em um país cuja população de idosos, em 2050, segundo várias projeções, deverá superar o número de menores de 15 anos, isso não só é necessário – é urgente. Uma mudança de tal magnitude e de caráter estrutural só pode ser abordada através de uma visão compartilhada do conjunto do Estado. Requer priorização, planejamento e visão intergeracional.
O Brasil possui mais de 204 milhões de habitantes. É a quinta nação mais populosa do planeta onde 28 milhões de indivíduos são pessoas idosas, de 60 anos ou mais. A maior parte destas pessoas são mulheres e vivem em áreas urbanas, segundo o IBGE/2016. Deve-se pensar na matriz de proteção social, desde a visão do ciclo de vida, detectando lacunas, superposições e a falta de coordenação das respostas públicas.
Cada vez mais, as políticas sociais devem ser entendidas como um acompanhamento dos indivíduos e das famílias – de todas elas – ao longo da vida. E devem integrar às políticas públicas um enfoque de gênero em um momento em que a velhice se feminiza. Cada vez mais haverá um número superior de mulheres na população envelhecida. É preciso avançar em direção às abordagens que devem transcender as políticas setoriais, ou seja, uma aposta na articulação interinstitucional eficiente e efetiva. É importante considerar a emergência de temas como a violência contra as pessoas idosas, intrafamiliar na maioria das situações, a qual requer abordagem integral.
Estimular cidades e entorno acessíveis, com espaços públicos, transporte, serviços públicos e privados de qualidade e adequados a essa população. Promover e entender a multiplicidade dos caminhos até a velhice e sua diversidade em homens e mulheres nas grandes cidades e no interior, dos afro descendentes e da população LGBT.
No que se refere à população LGBT idosa, há relativo acesso às políticas de direitos e a integração social nas classes sociais A, B e C, mas ele ainda não é percebido entre os gays idosos mais pobres, com baixos níveis de escolaridade, falta de acesso à informação e com renda mensal igual ou menor que um salário mínimo. O preconceito é mais acentuado entre os mais pobres, travestis e transexuais idosos.
Entre a população idosa existe um grande contingente de pessoas não alfabetizadas – são 5.460.958 pessoas que representam cerca de 25% do total de idosos. E a população negra idosa está sobre representada: constitui 64% do grupo de idosos não alfabetizados. A sobre representação de negros e negras entre os segmentos mais vulneráveis é uma constante.
Em relação aos rendimentos, considerando apenas as pessoas idosas não-pensionistas, empregadas domésticas ou suas parentes, observa-se a prevalência de pessoas negras entre as que recebem valor médio mensal abaixo de meio salário mínimo.
Para a população negra, o direito de envelhecer está relacionado ao combate à violência que afeta a sua juventude. Os jovens são o segmento mais atingido pela violência, inclusive policial, que incide mais forte em territórios de vulnerabilidade social.
Quanto ao envelhecimento feminino, a estimativa da ONU para 2040 aponta um número de 23,99 milhões de homens e 30,19 milhões de mulheres. Diferença de 6,2 milhões a mais de mulheres em relação à população idosa masculina. Serão 79 homens para cada 100 mulheres entre a população idosa. Ou seja, nos próximos anos aumentará o excedente de mulheres em cada grupo etário do topo da pirâmide. O processo é conhecido como feminização do envelhecimento e requer políticas específicas.
E uma questão que suscita atenção especial é o impacto da reforma trabalhista na qualidade de vida da população idosa o qual, já se percebe, é dramático. O desemprego, a fragilidade na legislação e a redução de salários sobrecarregam essa população que exerce aporte importante na família, especialmente nas regiões mais pobres.
A reforma previdenciária proposta pelo governo será especialmente cruel para a população mais pobre que sequer conseguirá se aposentar. Dizer que a reforma é para acabar com privilégios é grande falácia uma vez que a elite do funcionalismo não será atingida, a política de desoneração segue galopante e o governo premia os maiores sonegadores, como no caso da agroindústria.
Sabe-se bem que a causa maior da situação da previdência é consequência das reformas neoliberais altamente corrosivas que se impõem na grande maioria dos países e têm como resultado uma redução de aporte financeiro para essa área social.
Esta é a raiz do problema.
Por tudo isto, é necessário promover políticas públicas contra a discriminação por questão de idade, superando estereótipos e eliminando obstáculos, em especial o enfrentamento à violência, e qualquer restrição ou exclusão por razão de idade, que anulem ou restrinjam o reconhecimento e o exercício em igualdade de condições dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
É preciso, também, considerar a produção em âmbito territorial, acadêmico, social e político a qual deve resultar em um plano de ação em parceria com a sociedade civil representada nos conselhos de direitos e nos fóruns, para que haja um aprofundamento da discussão de valores e de comportamentos de todos, idosos e jovens, em busca de mudanças ideológicas e comportamentais sobre os conceitos relacionados à velhice e ao envelhecimento.
Um projeto de crítica democrática e humanitária das relações sociais.