Voltemos a usar a palavra “surça”!

No final do século 18, parece ter sido de uso corrente no Brasil a palavra “surça”, no sentido de “fonte”. Por alguma razão, o termo caiu em desuso e desapareceu, o que é uma pena

Por Antônio Carlos Queiroz

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Hoje, em Portugal, a palavra “surça” ou “sorça” refere-se ao “molho de vinho, sal, pimenta e alho, em que se deita carne de porco, para depois a ensacar”, informa o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

A Infopédia – Dicionários Porto Editora – dá que “surça” é um regionalismo de “sorça”, um “molho feito de vinho, alho, sal e pimenta, com que se tempera a carne de porco que se usa para fazer enchido”.

Também o Wickcionário informa que “surça” é palavra regional de Trás-os-Montes para a “carne de porco picada e condimentada para serem logo feitos os chouriços” e também para “o molho e temperos da carne que será transformada em chouriço”.

Linguiças – Há inúmeras outras fontes ou surças que atestam o uso de “surça” em Portugal, apenas e tão somente para encher linguiças. Eu proponho a volta do uso ainda mais nobre para a simpática palavrinha.

Surça – assim como “source” em francês e “source” em inglês – deriva do verbo latino “surgo”, “surgere”, que resultou em português no verbo “surgir" e no substantivo “surto” e, ainda, no verbo “surdir” – vir à tona, emergir, brotar (a água), nascer, jorrar.

Surça parece ter parentesco direto com a palavra francesa “source”, extraída do particípio passado do verbo “sourdre” na língua antiga. O mesmo aconteceu com o termo “source” (origin, birthplace, spring, fountainhead, fount, starting point, ground zero, wellspring) que os ingleses tomaram do francês, com todas essas acepções. Em inglês tem também “surge”, no sentido de onda (de água), vaga, surto.

O dicionário Littré da língua francesa lista variações da palavrinha em algumas línguas neolatinas: “Wallon, sûd ; provenç. sorger, sorzir ; espagn. surgir ; portug. sordir, surdir ; ital. sorgere ; du lat. surgere, de sursum, en haut (…); c'est la contraction de surrigere. Sourdre est la forme française du latin surgere”;

Sursum – O mesmo dicionário reitera que “source” é o “féminin de l'ancien participe sors ou sours, du verbe sourdre”. A origem, repita-se, está no verbo latino surgere, que deu sursum, no alto. Quem já rezou a missa em latim há de lembrar a expressão “sursum corda” (Corações ao alto!), que o padre dizia ao iniciar o ofício.

Mas qual seria a surça dessa minha modesta proposta? Seguinte: tempos atrás estava lendo a “Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783”, resgatada e publicada pela primeira vez por meu amigo e conterrâneo de Anápolis Paulo Bertran (Universidade Católica de Goiás, Universidade Federal de Goiás, Solo Editores, Brasília, 1996), quando deparei o seguinte trecho na página 81:

“Adiante da Meya Ponte 4 léguas, arredadas da estrada, estão os Montes Perinicos (sic). Destes montes saem vertentes para 4 caudalosos rios e é a verdadeira surça (sic, ponte) do Rio das Almas”.

Aqui há um óbvio erro de digitação, com a troca de efe por pê na palavra “fonte”.

Fiquei fascinado com a descoberta e até a mencionei numa homenagem que fiz ao Bertran, depois de sua morte, em outubro de 2005.

Fanfarrão Minésio – A “Notícia Geral” é uma espécie de carta de batismo de Goiás. Foi encomendada por Provisão Régia do Conselho Ultramarino em julho de 1782, e executada por Luís da Cunha Portugal e Menezes, governador e capitão-general de Goiás, celebrizado com o apelido de “Fanfarrão Minésio” nas Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga. Dias desses, folheando outra vez o documento, agora no segundo volume, achei nova transcrição da palavra “surça”, dessa vez no plural e com a tradução correta do Bertran entre parênteses, na página 28, num trecho do capítulo sobre as táticas guerreiras dos povos indígenas da região:

“ (…) diferençando quase sempre nestes intestinos assaltos, da tirania dos iriquazes (sic – iroqueses?) nacionais e habitantes nas margens do Lago Superior Puans (sic) e Ontário, surças (fontes) do Rio São Lourenço e Mezezipe (sic – Mississipi), deixando a arma com que ofenderam, como porrete e mais a flecha, como uma demonstração da aversão que lhe faz o instrumento que contribuiu para cometerem o crime contra a humanidade”.

Campanha – Reforçada a minha empolgação, resolvi lançar esta campanha nacional (Ô, pretensão, sô!) pelo resgate dessa belíssima palavra, tão portuguesa, mineira e goiana quanto é francês le mot “source”.

Surça pode ser olho d’água ou cabeceira de corgo (é assim que o termo “córrego” já aparece várias vezes na “Notícia Geral”) ou rio, e também fonte bibliográfica, tal como em francês ou em inglês. É claro que a gente pode usá-la como “surça de nossas preocupações” ou “surça da nossa alegria”! Contra os coleguinhas desonestos e plagiários em geral, a gente sempre pode dizer que “omitiram as surças”.

Sungar – Imagine uma praça com uma surça luminosa! Fica mais chique assim, com a combinação dos cês cedilhas nas duas palavras. Uma ideia tão clara como a água da surça.

E surça, convenhamos, orna muito bem com o verbo sungar (levantar) dos goianos.

A proposta está aí. É pegar ou largar, e não me venham com chorumelas, surças perenes de desavenças.

Chouriços – Resta, por fim, entender de onde vem a “surça” dos chouriços portugueses. Pesquisei, pesquisei e achei uma bela e longaníssima, digo, longuíssima explicação, que me parece plausível. Está lá nas páginas 231, 232 e 233 das notas de esclarecimento dos “Cantares Galegos” da poeta nacional da Galícia, Rosalia de Castro Murguia, editados pelo filólogo argentino de pais galegos Higino Martins Esteves (Edições da Galiza, 2011).

Segundo Esteves, a palavra “sorça” não é velha na língua portuguesa, e também não é encontrada no galego do século 18. A hipótese é que tenha sido incorporada à língua galega entre o fim desse século “e os anos de invenção dos Cantares Galegos, que primeiro o testemunham”, exatamente na seguinte estrofe:

XVI

Fígado com cebola bem frigida
e uma folhinha de louro cheirosa,
que inda a um morto bem morto dera vida
de tão rica, tão tenra e tão sab’rosa.
Raxo* em sorça cum cheiro que convida,
e o sangue das morcelas substanciosas
em fregada caldeira trasbordando,
a que façam morcelas convidando.

———
* Raxo é lombo de porco

Sauce – Mas qual é mesmo a surça do termo “surça” ou “sorça” (o molho)? Ensina Higino Esteves (transcrevo talqual): “Será fruto do convívio de galegos e ingleses nas guerras napoleónicas, empréstimo do ingl. sauce / SŌS / “liquid preparation taken as a relish with articles of food (XIV)”, “piquant addition (XVI)”, que vira do fr. sauce “molho” (< lat. salsa). Houve aí galegos a aprender algo de inglês e ingleses a aprender algo da fala local. A sequência /- OR -/ em inglês realiza-se [ Ō ] aberto. Às avessas, o fonema / Ō / aberto pode ver-se como realização de /- OR -/. Na boca do galego que quisesse falar inglês, o adubo pelo inglês chamado sauce / SŌS /, soava / SORS /. Adubos ou molhos há muitos, mas o dos chouriços, de que gostariam os ingleses, havia um só. Daí triunfar o nome específico, retalhando parte do genérico adubo (ou do vizinho molho). Antes de arraigar adiu o morfema de genero feminino, talvez por comida, pelo castelhano salsa “molho” ou qualquer outra voz feminina afim. Teatro do empréstimo seria algum ponto das Rias, Altas ou Baixas. Depressa terá espalhado produzindo as variações nas sibilantes antes referidas. As palavras emprestadas são regularmente instáveis, de mudança acelerada, fonética e semântica. Assim na Galiza e em Trás-os-Montes. No fonético afetaram-se as sibilantes galegas, por uma banda, e as vogais transmontanas, pela outra”.

Pronto, o molho de temperos chamado “sorça” ou “surça” derivou do “sauce” inglês e francês, e não tem nada a ver com a nossa surça = fonte.

A minha proposta de resgate da palavra surça é só uma pequena contribuição que ofereço para enriquecer o molho da língua brasileira. Digo isso antes que alguém diga que eu surtei…