A herança do pé de ferro
O poema que dá nome ao novo livro de Adalberto Monteiro, “Pé de Ferro”, é fruto de sua admiração pelo pai. A cada verso, o autor mostra como a figura paterna e sua profissão- a de sapateiro- o influenciaram e o moldaram. A principal herança que seu pai lhe deixou e aquela com que ele se agarra com mais força- e carinho: o pé de ferro, antes cuidadosamente observado pelo menino que pegava no sono graças às batidas do preciso martelo
Publicado 01/12/2017 15:13
Pé de Ferro
Por Adalberto Monteiro
A presença de meu pai
Em mim,
Na gula com que devoro
A cabeça de um peixe,
O miolo do crânio de um bode.
A presença de meu pai em mim
Na paixão por uma pescaria.
E correr no breu da noite,
Tendo como guia o latido de um cão
Que longinquamente acua um tatu.
A presença de meu pai
Em mim,
Na disciplina do trabalho.
A própria casa era uma oficina.
A presença do meu pai em mim,
Na sina dos retirantes.
Na força do sertanejo,
No trato bruto, franco, direto
Que vez em quando
Atira para longe
Os meus bons maternos modos.
A presença de meu pai em mim
Na bravura de romper o cerco.
Na resistência que impede a derrota,
Um boxeador imune à dor,
Mas se derrotando
Mesmo alquebrado
Logo se põe de pé…
A presença de meu pai em mim
Naquele pé de ferro…
A parte que me coube
Da tua herança,
Além do caráter,
Além da universidade,
Além da dignidade,
Além dos sete irmãos,
Foi o teu pé de ferro…
Quando outros herdeiros se deram conta,
O mais frágil deles
Já havia se apossado
Da parte mais férrea de ti:
– O pé de ferro.
Botinas, sapatos e sandálias
Com dálias na face.
Nós meninos com os dedos
Pintando de preto-lindo
As bordas das solas dos calçados.
E dormíamos
Com duas cantigas de ninar:
A da mãe
E a do martelo.
Ele no pé de ferro
Batendo firme e devagar,
Na medida certa.
O bastante para dobrar a ponta dos pregos
E adormecer a prole que precisava
Acordar bem cedo
Para aprender o bê-a-bá.