Apoio de ruralistas a Temer mira mercado de terras no país
Assessora nacional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Julianna Malerba concede entrevista à Fundação Böll. Ela fala dos retrocessos na legislação socioambiental brasileira, com foco no setor da mineração, e estabelece a que, ao lado da reorganização do mercado de trabalho, a reestruturação do mercado de terras está no centro dos interesses dos grupos que mantém Temer no poder.
Publicado 26/11/2017 14:27
Tem visto um preocupante agravamento dos impactos socioambientais de atividades extrativas e os relaciona à flexibilização das legislações ambientais e de direitos territoriais e ao crescimento da violência e da criminalização dos movimentos sociais. Mas é otimista ao verificar a emergência e fortalecimento de várias expressões de resistência anti-mineral a nível nacional. Na Fase, Julianna costuma trabalhar temas relacionados a conflitos socioambientais, direitos territoriais, justiça ambiental e bens comuns. Leia a íntegra.
A entrevista é de Leandro Uchoas, publicada por Heinrich Boell Foundation, no dia 23 de noevembro. Confira:
Você está fazendo um levantamento das alterações de legislação envolvendo questões socioambientais e direitos territoriais. Como está isso?
A partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ainda durante o governo Lula, começamos a assistir a uma ofensiva permanente de setores do governo federal e, de um fortíssimo lobby de empreiteiras e demais grupos interessados, em favor da flexibilização das normas de licenciamento ambiental. Entre os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) percebíamos que além de criar condições financeiras para a expansão das atividades agroindustriais, minerais e de infraestrutura via financiamento público, havia uma clara intenção em criar condições normativas para garantir essa expansão.
Já nesse primeiro momento, as legislações ambientais e que estabelecem reconhecimento e proteção da posse da terra em favor de indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais começaram a ser atacadas por uma articulação de forças situadas dentro e fora dos poderes legislativos e executivo. Nesse período é proposta pelo PFL (atual DEM) a Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/2004 que contesta o critério de autoatribuição fixado no decreto nº 4.887/03 que regulamenta o procedimento de titulação das terras ocupadas por populações quilombolas. São lançadas as primeiras portarias do Ministério do Meio Ambiente que buscavam acelerar o licenciamento ambiental, reduzindo pela metade os prazos para a concessão das licenças, e o código florestal é modificado em favor dos interesses do agronegócio. A partir de então esse processo de acelera.
A PEC 215, que pretende transferir para o Congresso Nacional a competência de demarcar e homologar Terras Indígenas, criar unidades de conservação e titular terras quilombolas, embora tenha sido elaborada no Congresso no inicio dos anos 2000, torna-se prioridade da bancada ruralista. A Advocacia Geral da União publica a Portaria 303 que, coloca em vigor as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante julgamento que homologou a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol e confirma para todas as demais terras indígenas o entendimento do STF de que os direitos dos índios sobre as terras não se sobrepõem ao interesse público da União, de forma que seu usufruto fica condicionado à política de defesa nacional, à expansão da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e de riquezas de cunho estratégico para o país, como a mineração. Embora essa portaria tenha sido suspensa por pressão dos movimentos sociais, no governo Temer ela é republicada pela AGU na forma de parecer que, graças à lei complementar n°73/1993, passa a ter força normativa, alcançando toda a administração federal.
Atualmente, segundo levantamento do CIMI, há 33 propostas que buscam alterar os processos de demarcação de Terras Indígenas (TI), sustar portarias demarcatórias, impedir a desapropriação de terras para demarcação de TI, autorizar seu arrendamento e estabelecer indenização para os invasores que ocuparem as terras depois de 2013. Em Temer, o ataque aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais assim como as medidas que alteram a legislação ambiental – como medidas provisórias e projetos de lei que atacam o sistema nacional de unidades de conservação e visam mudar as regras de licenciamento ambiental (PL 3729/2004 e 654/2015) ou mesmo extingui-lo (PEC 65/2012) – não estão mais sob a tensão da perspectiva desenvolvimentista da era PT, onde, em parte, os propósitos que moviam os retrocessos era estimular o desenvolvimento econômico de atividades que geram saldos comerciais ao país e mantém a estabilidade de uma política econômica altamente dependente de recursos externos. Naturalmente temos muitas críticas a esse padrão de crescimento baseado na extração intensiva de recursos naturais e na produção sistemática de injustiças ambientais que caracteriza o projeto desenvolvimentista da nossa esquerda histórica. Mas, atualmente, o desenvolvimento econômico representa mais um instrumento retórico.
A agenda dos retrocessos responde mais a demandas dos setores que representam a base de sustentação do governo Temer – com destaque para a bancada ruralista, cuja agenda têm se concentrado, sobretudo, em questões fundiárias – que a uma orientação estratégica de um plano de governo, já que o único plano deste governo é manter-se no poder a qualquer custo. Com o golpe, a reestruturação do mercado formal de terras parece assumir o centro das motivações que tem acelerado os retrocessos que estavam em curso desde a era Lula.
A medida provisória n° 759, convertida na Lei 13.465/17 evidencia isso. Ela altera os regimes jurídicos relacionados à regularização fundiária rural e urbana, à regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e as regras de alienação dos imóveis da União. A lei cria mecanismos que facilitam os critérios de titulação e a antecipação da emancipação dos assentamentos para que os lotes estejam disponíveis para serem transacionados no mercado de terras. Também facilita a regularização fundiária de terras públicas e devolutas, possibilitando, inclusive, a legalização da grilagem, uma vez que amplia para 2.500 hectares o limite da área de terra devoluta passível de ser regularizada na Amazônia pelo Programa Terra Legal.
Uma área desse tamanho não corresponde a uma ocupação de boa fé, destinada à produção e trabalho familiar. Além disso, os valores para pagamento da regularização dessas terras ao Estado é baixíssima. Além de permitir a regularização de áreas a pessoas que possuem mais de um imóvel, a nova lei estabeleceu que o preço do imóvel considerará o tamanho da área e será estabelecido entre dez por cento até o limite de cinquenta por cento do valor mínimo da pauta de valores da terra nua. Isso estimulará a especulação imobiliária já que a concessão de terras públicas por preços muito abaixo do valor de mercado desestimula as atividades produtivas e, consequentemente, induz à ocupação de novas áreas que acarretem maior retorno financeiro. Essa medida estimulará a ocupação de novas áreas gerando grilagem e ameaçando territórios de populações tradicionais não regularizados, assim como o assalto às pequenas posses.
A lei ainda elimina qualquer sanção ao latifúndio e à propriedade que não cumprirem com sua função social já que permite o pagamento em dinheiro nos imóveis rurais frutos de aquisição por compra e venda ou na arrematação judicial pelo INCRA (a regra anterior estabelecia o pagamento em Títulos da Dívida Agrária com liquidação de forma escalonada de 2 e 20 anos, a depender do tamanho do imóvel). Essas medidas desconstroem a Reforma Agrária, pois estimulam a conversão da terra a um ativo financeiro bastante atrativo. Tais medidas deverão travar completamente as ações de democratização da terra, pois com a redução brutal do orçamento da Reforma Agrária e o congelamento de investimentos públicos por 20 anos não haverá recursos para promover a desapropriação em favor da criação de assentamentos. Fica claro que o objetivo é liberar terras públicas e devolutas ao mercado, premiando o latifúndio e neutralizando regimes fundiários que garantem o acesso à terra aos trabalhadores rurais e que estabelecem reconhecimento e proteção da posse da terra em favor de indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.
Isso é apenas pressão da bancada ruralista, ou existe lobby internacional, em relação ao mercado de terras?
Sem dúvidas há uma convergência entre os interesses de elites nacionais e internacionais em relação ao controle de terras. O próprio agronegócio é um setor que se internacionalizou. Há algumas décadas vem ocorrendo uma oligopolização mundial dos complexos agroindustriais, que estabelece o controle da cadeia desde o processamento até a distribuição dos produtos. A isso se soma outro processo de expansão das fronteiras territoriais pelo capitalismo como forma de aumentar sua lucratividade: após a crise financeira de 2008, o capital passa a necessitar de novos setores para garantir a acumulação e o setor agrícola e de mercado de terras (apesar de sua menor liquidez) tornam-se uma alternativa bastante atraente.
Nos últimos 10 anos, a terra foi o ativo que apresentou maior valorização: entre 2009 e 2014, os preços médios da terra no Brasil cresceram 95% no país, com destaque para o Centro-Oeste, onde esse índice chegou a 130%, coincidindo portanto com a expansão da fronteira agrícola. A expansão da compra de terras no Brasil – inclusive por capital estrangeiro – está atrelada à expansão das atividades agropecuárias e agroindustriais, relacionadas tanto ao setor de grãos e cana-de-açúcar, quanto aos setores de plantio homogêneo de árvores e de mineração. Os fundos de investimentos internacionais passaram a investir tanto na aquisição de terras quanto no estabelecimento de fazendas agroindustriais em diversos países. Pesquisadores como Luiza Dulci, Sergio Sauer e Sergio Pereira Leite já demonstraram esse movimento em alguns de seus estudos. Por isso, ao lado das mudanças nos regimes fundiários a que me referi anteriormente, estão iniciativas como o Projeto de Lei nº 4.059/2012, que pretende liberar a aquisição irrestrita de imóveis rurais pelo capital estrangeiro, em face a lei atualmente em vigor que impõe restrições à aquisição de terras por estrangeiros, sobretudo em áreas de fronteiras.
Na sua opinião, é isso que está por trás de toda essa movimentação para alterar leis?
Há sem dúvida uma tentativa muito clara de desconstruir os regimes fundiários instituídos pela Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, as premissas que os balizam, que estabelecem: i) que a destinação de terras públicas e devolutas deve ser compatível com o Plano Nacional de Reforma Agrária (art. 188 da CF), e ii) que a propriedade deve ser condicionada ao cumprimento de sua função social e ambiental (art. 184 da CF). A construção da propriedade privada no Brasil, desde a promulgação da Lei de Terras de 1850, se deu por meio da expulsão violenta dos povos indígenas de suas terras e da exclusão de um conjunto enorme de homens e mulheres pobres do acesso à terra.
Esse campesinato excluído historicamente desenvolveu formas alternativas – resistentes e criativas – de uso dos recursos naturais, que eram diversas do modo predatório hegemônico de ocupação da terra e de superexploração dos recursos que marcam a história de ocupação territorial do Brasil. Estou me referindo a formas de uso comum da terra, de manejo da biodiversidade, do uso sazonal dos recursos, do desenvolvimento de acordos coletivos, etc que, em parte, eram soluções criadas em face ao acesso precário à terra. Essas práticas produziram uma enorme diversidade fundiária que se manteve invisibilizada até o processo de redemocratização, quando são reconhecidos pela CF de 1988 o direito originário dos povos indígenas a suas terra e assegurado aos quilombolas a propriedade coletiva e definitiva da terra que ocupam.
E quando também são elaboradas políticas ambientais e de reforma agrária que buscam reconhecer e garantir segurança fundiária às populações tradicionais: Unidades de Conservação de Uso Sustentável (Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e outras unidades de conservação que asseguram a posse coletiva da terra às populações tradicionais nessas áreas protegidas) e Projetos Assentamentos Diferenciados (projetos de assentamento agroextrativista, Projetos de Assentamento de Desenvolvimento sustentável, Projeto de Assentamento Florestal) que, diferente dos assentamentos convencionais, asseguram a destinação coletiva e inalienável dessas terras em favor das populações tradicionais.
Mesmo sabendo que os processos de implementação dessas politicas têm muitos limites e que, com exceção das terras quilombolas, todas as demais continuam sob propriedade estatal (o quê, em tempos de captura corporativa do Estado, fragiliza a segurança fundiária que visam oferecer), o fato é que elas tiveram a importância de reconhecer sujeitos políticos, evitar sua desterritorialização e de valorizar formas contra hegemônicas de territorialização e de uso dos recursos. Além disso, o fato dessas políticas garantirem não apenas o usufruto, a propriedade ou a posse coletiva das terras, mas também as protegerem da alienação e, em alguns casos, de atividades intensivas no uso da água e do solo (a exemplo da mineração nas Resex e nas terras indígenas [1]), significou a criação de uma barreira à expansão do modelo hegemônico e predatório de ocupação do território brasileiro. A corrida mundial por terras e o aumento da força política que os ruralistas adquirem no governo Temer são fatores que, sem dúvida, têm um grande peso nesse processo.
Mas eu arriscaria dizer que não são apenas motivações econômicas que justificam o objetivo de alterar as leis ligadas ao uso do território a fim de que o direito individual, absoluto e ilimitado de propriedade, que havia sido superado pela Constituição de 1988, volte a imperar e a orientar as ações do Estado. Há uma sistemática e histórica invisibilidade da diversidade cultural e social brasileira que volta a ganhar força em uma sociedade que, amparada em um imaginário racista, nega aos grupos historicamente vulnerabilizados – negros, pobres, índios, populações tradicionais, sem terra/teto – o papel de sujeitos políticos. Sujeitos que, em alianças com outros segmentos, conseguiram “disciplinar” e regular o direito de propriedade em favor da justiça social. No momento, como o atual, em que há um enorme desequilíbrio na correlação de forças, com uma capacidade quase ilimitada dos grupos no poder de ali se manterem sem que necessitem fazer nenhuma concessão, há rápida reversão de direitos, dada a fragilidade do pacto social de uma sociedade historicamente desigual e racista.
É nesse contexto mais geral se dá as mudanças que estão sendo propostas na área da mineração – algumas por iniciativa do governo federal, outras do Congresso Nacional? Queria que você fizesse uma avaliação dessas mudanças que estão sendo propostas.
Certamente o debate sobre o novo código mineral está atravessado por todo esse contexto pré e pós golpe. A partir de 2000, o mercado mineral cresce, assim como o preço dos minérios. E o Brasil vai se tornando um grande player no mercado mundial mineral. Considerando que estávamos na era de governos petistas que, com todos os limites, tinham uma visão menos liberal do Estado, havia uma sinalização vinda do governo de que era preciso garantir mais controle estatal sobre a política mineral e maior captura da renda extrativa. Quando a proposta de um novo código mineral é enviada pelo governo Dilma ao Congresso, em 2013, no centro dela estava a mudança no regime de outorga dos títulos minerários.
O governo propunha mudar o regime atual de prioridade (que garante ao primeiro interessado a obtenção dos direitos minerários sobre uma determinada área) pelo regime de concessão precedido de licitação, o que ampliaria a capacidade de controle e planejamento do Estado, permitindo-lhe definir, por exemplo, quais minerais e áreas deveriam ser prioritariamente explorados/as. Essa proposta e outras que garantiam maior governança pública dos recursos minerais foram rapidamente neutralizadas pelo Congresso. A bancada de deputados financiados por grandes mineradoras tratou de retirar daquele projeto de lei todas as proposituras que garantiam alguma governança pública sobre a política mineral e de incluir emendas que ampliavam não apenas as possibilidades de acesso aos recursos minerais pelo mercado, quanto facilitavam o acesso à terra e às águas às mineradoras.
A queda de braço do Congresso com o governo e a pressão da sociedade civil organizada que se posicionava criticamente a essas emendas, e também a total ausência de preocupações quanto ao direito das populações afetadas expressa na própria proposta do Executivo, acabou impedindo que o código fosse votado. Com Temer, o foco da disputa que se dava em torno do Código perde a centralidade porque o próprio governo busca viabilizar as propostas liberalizantes apresentadas pelos parlamentares por meio de medidas provisórias, decretos e portarias, que esvaziam as possibilidades de debate público dada a celeridade com que são tramitadas e aprovadas. Além de várias sinalizações dadas pelo governo no sentido de leiloar áreas já pesquisadas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (estatal vinculada ao MME), em grande parte, com jazidas comprovadas e reduzir restrições à mineração em áreas de fronteira, Temer publica o Decreto que extingue a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), criada no início dos anos 1980, com intuito de que as reservas minerais ali existentes, e ricas, sobretudo, em ouro, fossem exploradas em regime especial, sob controle da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais.
A área, situada nos estados do Pará e Amapá, abrange 4,6 milhões de hectares e se mantinha fechada às mineradoras. Com a extinção da Reserva, o governo pretende disponibilizar essa área à iniciativa privada, atendendo a uma demanda das empresas de mineração que a consideram tão importante quanto à província mineral de Carajás em termos de montante de reservas minerais. 69% da área liberada estão sobrepostos a terras indígenas e unidades de conservação, onde a atividade mineral não é permitida. Além da pressão que a atividade exercerá sobre esses territórios e à conservação de sua biodiversidade, é bastante provável que, com a instalação da atividade, o lobby em prol da abertura dessas áreas à mineração ganhe ainda mais força. Embora a pressão da sociedade tenha resultado na suspensão temporária desse decreto, o governo Temer não deverá desistir de flexibilizar legislações e instrumentos que, criados para proteger a biodiversidade e a sociodiversidade brasileira, restringem a mineração. Na verdade, isso já está expresso nas medidas provisórias 789, 790 e 791 que o governo apresentou ao Congresso pulverizando nelas as questões referidas a política mineral que antes estavam sendo discutidas por dentro do novo código mineral.
Há uma intenção clara de impor a mineração e sua importância acima de outras atividades socioprodutivas. Isso se evidencia em emendas incluídas às Medidas provisórias com o intuito de neutralizar os efeitos de leis e políticas que, ao garantir direito a terra, criam restrições à atividade mineral. É o caso da alteração proposta ao art. 94 do Decreto-Lei nº 227, de 28/02/1967 a fim de impor a necessidade de consulta ao Ministério de Minas e Energia previamente à criação de áreas com restrição às atividades de mineração (o que seguramente incluirá a criação de áreas destinadas à tutela de interesses, tais como unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas). Essas terras representam, em algumas regiões, as áreas mais extensas de biodiversidade e os grupos que nelas vivem são reconhecidamente – segundo a própria lei que lhes assegura a permanência – responsáveis historicamente pela conservação desses ecossistemas.
Uma vez que a Constituição estabelece que as jazidas e demais recursos minerais constituem propriedade distinta do solo e pertencem à União, o reconhecimento de direitos territoriais a esses grupos pode, em alguns casos, não ser suficiente para impedir que o seu subsolo seja concedido, como é o caso dos territórios quilombolas e mesmo dos assentamentos agroextrativistas. Mas o reconhecimento das territorialidades específicas pelas próprias leis que lhes asseguram direito a terra é, no plano político e argumentativo, um instrumento poderoso para contestar a imposição da mineração sobre seus projetos socioculturais e produtivos.
Consequentemente, também contribui para colocar em debate qual a centralidade deve ter na economia brasileira uma atividade marcada pela exportação primária de recursos naturais, pela baixíssima arrecadação de impostos e tributos e por impactos socioambientais expressivos. Isso explica porque o ataque a esses direitos é central quando o intuito é beneficiar segmentos econômicos em detrimento da proteção a bens comuns. O momento, ainda experimentado, de retração no preço das commodities minerais oferece um cenário relativamente favorável para que essas medidas sejam implementadas como condição para sustentação de um setor que cumpre o papel de gerar saldos comerciais ao país e manter a estabilidade de uma política econômica altamente dependente de recursos externos. Entretanto, se considerarmos que o mercado de commodities tende a períodos cíclicos de retração e expansão de preços, o maior legado da política mineral do governo Temer será cimentar as bases para a maximização da lucratividade das empresas mineradoras que atuam no país no próximo boom de preços.
Existe a argumentação de que a mineração é importante, especialmente nesse momento de crise. O argumento de que o país tem que se desenvolver, que a gente tem que vender nossas commodities, que o país precisa de recursos externos. Como se responde a esse tipo de argumento?
A história da mineração no Brasil e a experiência em curso de expansão dessa atividade na América do Sul demonstram que a prioridade dada às atividades minerais em relação a outros usos econômicos e culturais dos territórios longe de ser construída através de processos democráticos é antes implementada, muitas vezes, por meio da violência, da criminalização e da destruição das bases materiais perda das bases de reprodução socioeconômica dos grupos locais, dado o caráter de controle e reorganização do espaço que a dinâmica mineral impõe aos territórios. Há um claro esvaziamento simbólico dos espaços para que somente os supostos benefícios da atividade mineral sejam contabilizados.
Em nome da geração de divisas uma série de concessões fiscais e favorecimentos tributários é dada à mineração (a exemplo da “Lei Kandir” que isenta produtos primários e industrializados semi-elaborados do recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviço/ICMS) e pouco se discute sobre os problemas associados à opção por um modelo de desenvolvimento ancorado na especialização na exportação de recursos naturais (desenvolvimento de estruturas econômicas pouco diversificadas, tendência a deteriorização dos termos das trocas com redução progressiva dos preços das commodities, a perda de biodiversidade e impactos socioambientais expressivos que incluem inviabilização de estratégias produtivas existentes, etc.).
Embora dentre as Medidas Provisórias do governo Temer tenham sido propostos aumentos nas alíquotas de cálculo da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o país ainda se mantém entre aqueles que cobram menores percentuais de pagamento de royalties do mundo. Vale lembrar que a que a CFEM, assim como os royalties do petróleo, é uma receita de natureza patrimonial, decorrente da exploração de bens que são da União. Trata-se da forma pela qual o Estado se apropria de parte da renda mineral. Em geral, esses recursos são usados para compensar localmente os impactos negativos da mineração quando os mesmos deveriam ser compensados pelas mineradoras conforme determina a legislação ambiental.
Outro uso recorrente da CFEM tem sido na capacitação de mão de obra local para ocupação de postos de trabalho nas mineradoras ou na melhoria de infraestrutura necessária às essas empresas, ampliando a excessiva dependência local a uma atividade que tem um tempo de vida limitado pela finitude das jazidas. Se considerarmos seriamente os impactos negativos da mineração do ponto de vista socioambiental e econômico, no plano local e nacional, chegaremos a conclusão que trata-se de uma atividade que tende mais a a favorecer a concentração dos seus benefícios nos grupos econômicos e a manter a concentração dos danos ambientais da mineração sobre os mais destituídos, em manifesta contradição com a retórica que recorrentemente justifica o avanço da mineração.
Você tem falado também sobre uma estratégia discursiva de transformar danos em supostos ganhos, não é? Você poderia explicar isso?
Trata-se da elaboração de uma retórica que pretende criar uma equivalência entre degradação e conservação. Muitas empresas mineradoras estão começando a investir em projetos de compensação de biodiversidade sob a argumentação de que seria possível estabelecer um equilíbrio entre a perda de biodiversidade causada pela mineração e os benefícios alcançados através de iniciativas voluntárias de compensação. Essa transmutação é produzida por um conjunto de estratégias que incluem a desregulamentação dos mecanismos compulsórios de proteção ambiental (tal como vimos assistindo) e a criação de bases jurídicas, conceituais e metodológicas que pretendem mensurar tanto as perdas de biodiversidade causadas por grandes projetos de desenvolvimento quanto ganhos de conservação, obtidos por meio de ações de compensação de biodiversidade.
Na prática, são feitos investimentos para a conservação de áreas onde haveria um ecossistema similar àquele destruído. Supostamente isso possibilitaria às empresas produzirem uma “perda líquida zero” de biodiversidade e até um “ganho líquido” que corresponderiam à conservação de uma “quantidade” de biodiversidade igual ou maior que aquela que foi destruída. Além de construir uma imagem positiva para certos setores (cujas atividades têm impactos reconhecidamente negativos sobre a biodiversidade), obter “ganhos líquidos” e “mensuráveis” de biodiversidade possibilita ainda criar “ativos” ambientais que transformados em commodities comparáveis em qualidade e quantidade podem vir a se tornar comercializáveis.
Por meio de uma operação política discursiva poluidores tornam-se “prestadores de serviços ambientais” e novas mercadorias são criadas viabilizando o surgimento de novos mercados. Essas iniciativas ainda ampliam o acesso à terra às empresas que, além do controle territorial e espacial que já têm sobre as áreas em que desenvolvem suas atividades, passam a exercer controle também sobre o uso das novas terras destinadas à compensação. Em Madagascar, um projeto de compensação de biodiversidade desenvolvido pela mineradora Rio Tinto vem impondo restrições às atividades das populações sob o argumento de que elas ameaçariam a conservação da biodiversidade. Visão que ignora que a produção da biodiversidade é fruto também das formas de manejo tradicionais desenvolvida historicamente. No Brasil, algumas mineradoras, como a Alcoa e a Hydro têm anunciado investimentos em projetos de compensação de biodiversidade por meio da manutenção de áreas protegidas por meio das quais compensariam os impactos ambientais de suas atividades. Mas não são apenas as empresas que tem inovado em suas estratégias.
Do lado dos movimentos sociais vejo o crescimento de uma articulação antimineral bastante crítica que vem disputando o debate público sobre os fins que orientam a produção mineral por meio de processos de lutas sociais e de articulação de novas forças políticas. Isso tem que ser valorizado, assim como a expressão dessas resistências precisam ser garantidas, especialmente em meio a essa atual conjuntura.
Nota
[1] Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, a mineração em faixa de fronteira e em terras indígenas deve ter tratamento especial e regulamentação específica. Embora a mineração em áreas de fronteiras tenha sido regulamentada em 1979, a regulamentação da atividade em terras indígenas ainda não foi aprovada pelo Congresso.