O maluquinho vai ao cinema!
Lembro-me como se fosse hoje quando o cinema brasileiro voltou a respirar. Era 1995 e as produções brasileiras chegavam novamente a serem exibidas nas telonas. Sendo universitário e fascinado pelo cinema brasileiro – dos 17 filmes lançados, assisti 14 –, não perdia nenhuma estreia naquele período. Apesar de serem poucas, algo começava a mudar.
Por Vandré Fernandes*
Publicado 24/11/2017 17:17
Na minha memória guardo o dia em que eu cheguei no Espaço Banco Nacional de Cinema, na Rua Augusta (São Paulo), hoje Espaço Itaú, com moedas no bolso para assistir “O Menino Maluquinho”. O ingresso custava 3 reais. Com a carteirinha da UNE, que me dava direito a meia-entrada, depositei na bilheteria um real e cinquenta centavos. Bem, mas a minha lembrança é só uma introdução, o que importa mesmo é saber que aquele filme marcaria a retomada do cinema infantil ou do cinema de gênero no Brasil.
Teria que ser muito maluco para pensar que, após o desmonte do nosso cinema efetuado pelo governo Collor (entre 1990 e 1993), acabando com todas as possibilidades de se produzir um filme no Brasil, fosse possível retomar a produção nacional em tão pouco tempo. Mas foi graças ao governo de Itamar Franco que, em 1993, se criou a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e a Lei do Audiovisual, o que possibilitou dar os primeiros passos para incentivar a produção e a distribuição dos filmes nacionais.
Aquele ano de 1995 ficou conhecido como ‘o ano retomada do cinema brasileiro’. O marco é o filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camuratti. O filme protagonizado por Marco Nanini e Marieta Severo arrastou 1,2 milhões de pessoas às salas de cinema. “O Menino Maluquinho” também não fez feio, levou cerca de 600 mil expectadores.
“Vida de moleque é vida boa, vida de menino é maluquinha…”
Lembrando hoje, podemos dizer que “O Menino” tinha tudo para ser um grande fracasso. Era muito incerto o cinema brasileiro. Não tínhamos, e ainda não temos, uma tradição do público infanto-juvenil para as nossas produções. As exceções são os personagens provenientes da TV como “Os Trapalhões” e a “Xuxa”, na época em que ela era para os baixinhos.
No Brasil, até a década de 1940, a criança até 5 anos era proibida de entrar numa sala de cinema. Filmes infantis também eram raros. Até 1970 dá para contar nos dedos quantas produções nacionais eram direcionadas a este público. Nossa turminha foi criada vendo os filmes do Walt Disney e outros enlatados, vinculados ao mercado de licenciamento de brinquedos e consumo.
É nesse contexto que, em 1986, Helvécio Ratton, faz o filme “A Dança dos Bonecos”, segundo ele um filme anticonsumo e voltado para o universo infantil. E de fato é. Como diz o autor “Melhor é brincar, e brincadeira não se compra”.
Quando surgiu a possibilidade de levar “O Menino Maluquinho” às telas, foi Ratton o nome escolhido para dirigir. Ziraldo, ao ser consultado, ficou felicíssimo. É o que se diz na linguagem popular: juntou a fome com a vontade de comer.
Diz o diretor sobre o “Maluquinho”: O livro tinha um grande personagem, mas não uma história. Mas Ratton entende muito do “Menino” ou melhor, de Ziraldo, e fez uma história repleta de emoção, alegria e brincadeira.
O roteiro, escrito a 8 mãos – Ziraldo, Helvécio Ratton, Alcione Araújo e Maria Gessy – é ambientado em Minas Gerais, terra de Ziraldo e de Ratton. A história fala sobre o menino (Samuel Costa) que apronta diversas travessuras, em casa ou na escola, e é cercado de amigos. Porém, a tristeza invade seu mundo quando sabe que seus pais vão se separar. É nessa hora que entra na história o vovô Passarinho (Luiz Carlos Aurutin), para viver aventuras e ensinamentos que lhe valerão para a vida toda. Mas no fundo, o filme fala diretamente para nós, os adultos, que precisamos resgatar aquela criança que existe dentro de cada um para enfrentar o mundo com alegria, tolerância, esperança e vontade de criar algo mais humano.
Hoje vivemos tempos sombrios na sociedade, onde o individualismo se aprofunda cada vez mais. As nossas crianças já nascem conectadas e são incentivadas a brincar com jogos nos celulares ou iPads. Nesse ambiente, aquele mundo do Maluquinho talvez tenha virado peça de museu. Como dizem alguns especialistas, cada criança tem o seu tempo. E o tempo de hoje não cabe pião, bolinha de gude, boneca, taco, pular corda na rua… Será?
Com essa preocupação, passados mais de 20 anos da estreia de “O Menino Maluquinho”, e agora sendo pai, decidi assistir o filme com os meus filhos de 4 e 6 anos. Quis mostrar para eles um contraponto a esse mundo cibernético. Para a minha surpresa, houve gargalhadas e pulos no sofá. O filme, que se passa num passado distante, encantou as crianças. Porque de certo modo, há dois pilares importantes que unificam as crianças de qualquer tempo quando se tem a oportunidade: as brincadeiras e a amizade.
Como não se divertir, por exemplo, com a competição do pum mais fedido, ou com quem vai carregar o pau de bosta (um graveto sujo com cocô de cachorro)? É esse universo criativo das crianças, que nos faz refletir sobre esse período intenso da vida, cheia de descobertas.
Por tudo isso, “O Menino Maluquinho” guarda uma importância significativa na cinematografia brasileira.
Em 1998, veio “O Menino Maluquinho 2”, dirigido por Fernando Meirelles. Em 2010, foi para a tela “Uma professora muito maluquinha”, de André Alves Pinto e Cesar Gomes. Nenhuma das duas produções foi tão exitosa como o filme de Ratton.
É difícil emplacar filmes de gênero no Brasil. Existe preconceito e pouco investimento. A competição com os estrangeiros é deprimente. Isso para todo o cinema, mas o cinema infantil sofre muito mais. Ratton que o diga. Ele continuou persistindo em filmes infanto-juvenis, como “Pequenas Histórias” (2007) e “O Segredo dos Diamantes” (2014), os dois não tiveram bom desempenho nas bilheterias. Ratton também dirigiu “Batismo de Sangue” (2006) e “Uma Onda no Ar”(2002).
Seria muito bacana ter, de novo, o Ziraldo no cinema e tantos outros autores incríveis que poderiam levar histórias infantis de qualidade para a telona. Mas, enquanto isso, é possível ver na TV Brasil o “ABZ do Ziraldo” e “A Turma do Pererê”.
Ver o personagem de Ziraldo na telona, em 1995, foi um privilégio. Hoje, já não dá para assistir filmes com moedas no bolso, porque os ingressos estão o olho da cara.
Mas o legal é que, diferente de 1995, já não dá mais para acompanhar todas as estreias brasileiras, porque são muitas, graças ao investimento em políticas para o audiovisual nos últimos 13 anos. O cinema brasileiro ainda pulsa. Só não sabemos se essa vivacidade continuará, depois do golpe dado em 2016, por Temer, e com a sua trupe no Ministério da Cultura, hoje liderado por Sérgio Sá Leitão.
Mas o que importa é que as histórias e os personagens de Ziraldo continuam habitando o mundo da criançada.
Obrigado Ziraldo, meus filhos, apesar dos joguinhos no celular, não perdem uma partida de jogo de botão, brincam de pega-pega, esconde-esconde e vivem com alguma coisa na cabeça: histórias, panelas e muita imaginação.
Assista abaixo o trailler de O Menino Maluquinho: