A obra de arte como espaço (crítico) de ação na era fundamentalista
O século 20, com guerras, genocídios e acelerado processo de destruição do planeta, lançou as artes em um campo distinto daquele no qual ela até então reinava. Até o século 19, pese o romantismo e a exacerbação do subjetivo, com fissuras que se aprofundaram desde então, as artes visuais permaneceram dentro do campo da representação mimética e a pintura se dividia entre os gêneros tradicionais (histórica, paisagem, retrato, natureza morta e pintura de gênero).
Por Márcio Seligmann-Silva
Publicado 18/11/2017 16:09
Ao caminhar por qualquer grande exposição de artes hoje somos defrontados com estéticas da instalação, da performance, do acúmulo, da montagem, que deixam claro como em pouco mais de um século trilhamos um caminho gigantesco. Existe menos diferença entre a obra do escultor Praxiteles, que viveu na Grécia no 4 século a.C., e a de um Antonio Canova, que viveu há duzentos anos, do que entre as esculturas desse artista italiano e as obras dos nossos contemporâneos.
Se no século 18 abandonou-se a tradição retórica e passou-se a pensar as artes do ponto de vista da então nascida teoria estética na filosofia (com destaque para Diderot, Lessing e Kant) e da historiografia da arte (Winckelmann) no século 19 os teóricos das artes acrescentaram à estética elementos nacionalistas e antropológicos. Já no início do século 20 as artes passaram por uma releitura do ponto de vista das novas técnicas, sobretudo da fotografia e do cinema, meios artísticos eminentemente reprodutíveis. Benjamin dizia então que com a reprodutibilidade técnica perdia-se também a noção de autenticidade das obras e a diferença qualitativa entre original e cópia. A autenticidade seria recuperada, para ele, por uma prática de montagem de fragmentos, de ruínas. Assim ele já indicava o que aconteceria nas artes após a Segunda Guerra Mundial.
Já agora, desde o final do século 20 e no nosso século, passou-se a observar as artes como poderosos meios de inscrição da violência e dos traumas sociais. A arte finalmente abandonou o campo da mera “imitação” e passou a ser um “agente” de memória e de história. Não por acaso exposições trazem em suas pautas temas políticos da atualidade. Questões ligadas à imigração, gênero, transsexualidade, a memória de totalitarismos e de ditaduras, debates religiosos fazem com que as artes adentrem de modo crítico áreas que antes eram consideradas tabu.
As artes, sobretudo a partir das vanguardas, tornaram-se agentes de mudança da esfera pública: elas constituem-se de uma linguagem distinta que faz estremecer nossa prosa utilitarista e moralista. A arte mais e mais (já desde o romantismo) foi cerceada pela censura: as imagens (como escreveu Flusser) foram banidas para os museus. Daí a doutrina da “arte pela arte” e a demonização da arte política. Mas essa doutrina derreteu sobretudo desde os anos 1960 e nos defrontamos com um panorama totalmente novo. Não só as artes mudaram (e o próprio conceito eurocêntrico de arte teve que ser revisto), mas também a política, que se tornou espetáculo cooptado por fundamentalismos econômicos e religiosos, transformou-se.
Não se trata, quando falamos de arte contemporânea, da velha arte engajada (que pretendia “representar” as minorias) com seu laivo de paternalismo; ou da arte panfletária. A nova arte da memória que se desenvolveu nas últimas décadas tende mais para a performance para o happening e o “anarquivamento” da cultura. Ela não quer representar, mas apresentar. Ela se assume como efêmera (com relação à duração no tempo) mas se quer efetiva no que tange a sua ação no presente. É uma arte do agora. Se para Kant a arte era “inofensiva” – o que a relegava a um campo extra-moral e extra-político – agora a arte está na “ofensiva” política e atua com seus dispositivos empáticos, com sua captação lúdica, corpórea e háptica recriando seus limites e a própria noção de política. A arte se torna escândalo e novamente quer-se censurá-la, controla-la…
A arte desde o romantismo serviu para refletirmos sobre as fronteiras entre os indivíduos e o espaço público. Aos poucos a arte passou a construir nossa interioridade (lembremos de Goya, E.T.A. Hoffmann) e a ajudar no design do próprio espaço público (o Modernismo). Daí ela ser arte política: ela incide sobre corpos em seu ambiente, a polis, a cidade. Como técnica, ela faz parte daquilo que Foucault resgatou do mundo estoico, a “técnica (ou arte) do (bem) viver”, cujo fim é a felicidade, eudaimonia, a capacidade de viver em harmonia com a natureza e com a sociedade.
Mas hoje a natureza (interna e externa) é uma paisagem que sofreu radical modificação. A destruição da natureza e o nosso mal-estar na cultura determinam novas potencialidades para as artes (Frans Krajcberg). Elas não querem simplesmente “preencher” nossas individualidades esvaziadas, mas, antes, visam encenar esse esvaziamento (Kafka, Becket, Lispector, William Kentridge), assim como elas não são meras artes da memória, mas sim dispositivos que apontam para políticas do esquecimento e para modalidades (políticas) de rememoração (J.L. Godard, Luc Boltanski, Rosangela Rennó, Nuno Ramos, Jochem Gerz, Horst Hoheisel, Marcelo Brodsky, Adriana Varejão, Leila Danziger, Lais Myrrha, Cildo Meireles, Clara Ianni, Fulvia Molina, Giselle Beiguelman, Virgínia Medeiros).
Essas obras penetram na trama dos traumas sociais, para reencená-los sob outra luz: sob o que podemos chamar de “desvio de paralaxe” do campo artístico. Assim vemos, por exemplo, os trabalhos de Rafael Pagatini, presentes no 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil, em cartaz no Sesc Pompeia até 14 de janeiro. Ele abre um olhar crítico sobre a violência ditatorial (1964-1985) assim como sobre a cooperação entre grandes empresas e os militares. Também as obras de Jaime Lauriano, presentes tanto nessa exposição como na “Hiatus: a memória da violência ditatorial na América Latina”, no Memorial da Resistência de São Paulo até 13 de março, servem para repaginar a inscrição hipócrita da nossa história.
Jaime foca na continuidade da violência contra a população afrodescendente, do Brasil Colônia até os dias de hoje. Essa nova arte da memória e de inscrição crítica, terapêutica dos traumas, está voltada não para uma cura do esquecimento, mas para a construção de uma memória ativa, na qual os elementos traumáticos do passado são ressignificados e se tornam ímpeto para a ação política no presente.
No Brasil, percebemos esse gesto justamente nos casos das releituras da história dos afrodescendentes (Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Bruno Baptistelli) e dos indígenas (Claudia Andujar, Bene Fonteles, Armando Queiroz). Em vez da perspectiva romântica, que tutelava esses atores sociais, que os cristalizava de modo homogêneo e controlador, trata-se de reconhecer na história de repressão e violência o terreno inclinado que leva a água da revolta para a casa de força da ação política. Estamos falando também de artistas como Hélio Oiticica e Berna Reale e toda uma novíssima geração.
Pensar a arte na sua relação com o trauma hoje permite também reconhecer na história da arte uma escritura cifrada que registrou traumas que tiveram suas histórias caladas ou negadas. Toda uma nova paisagem se abre para o campo da reflexão crítica sobre a arte vista desse rico e instigante ponto de vista. Uma tarefa central que nos cabe hoje é lutar por esse espaço crítico da arte, essencial para barrarmos o avance do modo fundamentalista de pensar, adepto das identidades fechadas (de gênero, classe, nação etc.) e do patriarcalismo. A arte como inscrição a contrapelo, essa “flor azul” guardiã da autenticidade como diferença e processo de auto-diferenciação, cria espaços de ação. Mais do que nunca precisamos deles para angariarmos forças para restaurar um horizonte sob este céu tão cinza e esta paisagem tão desoladora de nosso presente.
20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil
Onde: Sesc Pompeia, r. Clelia, 93, Pompeia – São Paulo, SP
Quando: até 14/01
Quanto: grátis