Publicado 16/11/2017 11:10
Inspirada a trabalhar como agente comunitária de saúde do município do Rio de Janeiro, a técnica de enfermagem Raylana de Alcântara de Miranda, 25 anos, chegava a caminhar quatro quilômetros até o Centro Municipal de Saúde Cesário de Melo, na comunidade do Cesarão, no bairro de Santa Cruz, zona oeste da cidade.
“Quis trabalhar com isso para poder ajudar as pessoas. Queria poder levar informações e saúde para a população de Santa Cruz. Lá, muitas doenças são oportunistas e isso acontece pela falta de informação. Eu via meu trabalho como uma mão estendida para ajudar um pouco um bairro violento que é carente de serviço público e de baixo poder financeiro”, comenta.
Agora, a jovem faz parte de um grupo de cerca de 170 profissionais demitidos das Clínicas da Família do Rio. Os cortes começaram em agosto e seguem até agora. A conjuntura afeta diversas Organizações Sociais (OSs) – entidades que gerem as unidades das Clínicas da Família – como Iabas, Viva Rio e SPDM.
Segundo Raylana, já foram sete demitidos na unidade em que trabalhava. O corte sobrecarregou os trabalhadores que permaneceram, com uma média de mil atendimentos por semana, fora os seis mil usuários cadastrados na rede. “Isso gera uma precariedade do atendimento para a população. A saúde da família trata da prevenção e com o corte de funcionários a gente corta a saúde”, critica.
A usuária do Centro Municipal de Saúde Cesário de Melo Cristiane Matias Ferreira, de 29 anos, diz que se sente prejudicada. “Precisamos ter essas clínicas nos dando assistência, precisamos fazer os nossos exames de rotina. Estive lá há um mês e não havia medicamentos. Está muito complicado”, lamenta.
A realidade é semelhante em outra região da cidade. Para Lucia de Fátima Oliveira Cabral, de 50 anos, moradora do complexo do Alemão e usuária das Clínicas da Família, a violência para os mais pobres agora é dupla. “A gente já sofre nas favelas do Rio com a violência do crime e com a violência da segurança pública. Agora sofremos uma violência muito maior com a precarização da saúde. Esse nosso prefeito não conseguiu fazer nada até agora, só causar problema, se já existia problema ele fez com que aumentasse. Estamos vivendo esse medo diário porque a saúde é prioridade. Como vai ficar essa situação?”, indaga.
Para além das demissões, os profissionais sofrem com atrasos de salários, falta de materiais, falta de medicamentos e até de papel higiênico, conta Raylana. A falta de pagamentos levou 1.290 médicos que atuam nas 227 unidades básicas de saúde da cidade a decretar uma greve que teve início em 26 de outubro. "O pessoal recebeu 48% do salário de setembro, então ainda tem um mês de atraso salarial. A greve dos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, está mantida”, conta a técnica de enfermagem.
Município está “afundando”
A subsecretária de regulação da Secretaria Municipal da Saúde, Cláudia da Silva Lunardi, contabiliza um crescimento de mais de 80% na lista de espera para exames, cirurgias e consultas. Em 31 de dezembro do ano passado, 134 mil pessoas estavam na lista do Sistema de Regulação da Prefeitura (SISREG). Hoje, 125 mil pacientes aguardam consultas, 74 mil precisam de exames e 45 mil esperam por cirurgias, totalizando 244 mil cidadãos.
Segundo dados do Sistema de Contabilidade Municipal levantados pelo gabinete da vereadora Teresa Bergher (PSDB), a crise vêm da baixa arrecadação, o que afeta diretamente a saúde. Em 2017 foram arrecadados até final de outubro 19,3 bilhões. No mesmo período do ano anterior, 22,8 bilhões de reais chegaram aos cofres do município, uma variação negativa de 15%.
Na Saúde, a queda foi de 8% no saldo da dotação, caindo de 5,572 bilhões de reais, em 2016, para 5,100 bilhões em 2017. O total previsto para este ano era de 5,5 bilhões, já abaixo do saldo do ano passado. Até outubro foram efetivamente aplicados 3,5 bilhões de reais.
Para Bergher, a crise não começou no atual governo, de Marcelo Crivella. “No governo Eduardo Paes, a saúde não estava bem. Ele cancelou muitos empenhos em todas as secretarias e deixou dívidas. Hoje, o déficit orçamentário é de 3 bilhões de reais, é muito grande”, ressalta.
Após uma audiência pública realizada em 26 de outubro na Câmara dos Vereadores, a gestão Crivella sugeriu um aumento de 553 milhões de reais ao orçamento inicial da saúde para 2018, totalizando 5,531 bilhões de reais. Para a vereadora tucana, porém, a proposta é inconsequente e poderá acarretar na continuidade da crise no próximo ano.
“O aumento de 553 milhões na proposta orçamentária para 2018 é irreal. Ele está achando que a verba virá da arrecadação com o Imposto sobre os Serviços, só que o projeto ainda não foi votado, nem discutido na Câmara. É prematuro direcionar uma verba que não existe. Não sabemos se em 2018 a arrecadação vai aumentar ou vai cair. Em 2017 caiu assustadoramente”, avaliou.
Ao encontro da opinião de Bergher, o vereador Paulo Pinheiro (PSOL) acredita que há uma crise econômica no município. “Nós estamos afundando aqui. Existem dívidas deixadas pelo governo anterior. A Prefeitura não consegue cumprir o orçamento aprovado na Câmara para esse ano, pois o dinheiro não entra. A saúde é uma das principais vítimas dessa situação”, constatou.
Pinheiro protocolou em 24 de outubro, no Ministério Público, uma representação alegando irregularidades na prestação dos serviços de saúde na cidade e “omissão de socorro” por parte do poder executivo. Para o vereador, a Prefeitura deve remanejar recursos de algumas secretarias e colocar na saúde, além de descontingenciar 542 milhões de reais da secretaria.
Tal como o Estado, a Prefeitura do Rio vive hoje uma situação de calamidade financeira. Em junho de 2016 o ex-prefeito Eduardo Paes afirmou, em entrevista a CartaCapital, que a cidade vivia uma situação confortável. Vereadores, porém, afirmam que a situação financeira na gestão de Paes já não era tão boa.
Sobre a gestão anterior, Pinheiro, que é membro da Comissão de Saúde na Câmara, afirma que a expansão da saúde da família, promovida por Paes, foi concluída de maneira irresponsável. “O Eduardo Paes inaugurou mais de vinte Clínicas da Família sem ter custeio. Ele fez a obra, inaugurou a clínica, mas não colocou o custeio no orçamento".
Na audiência pública de 26 de outubro, o secretário municipal da Saúde, Marco Antonio de Mattos, afirmou que “após o repasse de verbas para as Organizações Sociais, a secretaria deve, logo no primeiro dia útil, fazer o repasse para o pagamento de todos os funcionários das OS”. E solicitou mais recursos para a realização de uma boa gestão.
Segundo o movimento Nenhum Serviço de Saúde a Menos, até o dia 9 de novembro os trabalhadores das coordenadorias de áreas programáticas (CAP) do Centro, da Leopoldina, de Madureira, Pavuna, Campo Grande e Santa Cruz, não haviam recebido os salários.
Em nota via a assessoria de imprensa, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro afirmou que "em 9 de novembro o último dos contratos incluídos no compromisso firmado pelo prefeito recebeu o pagamento acordado. Ao todo, 36,4 milhões de reais foram repassados para fins de regularização dos salários em atraso nas unidades, conforme valor informado pelos representantes das OSs".
E ressaltou os prejuízos da gestão anterior: "A Prefeitura vem sinalizando que o governo anterior deixou um déficit nas contas do município. Somente na Saúde, a dívida deixada era de 266 milhões de reais, com fornecedores e também com organizações sociais. A Prefeitura precisou fazer esforços para ajustar o orçamento a essa realidade financeira. Esses ajustes precisaram ser feitos em todos os órgãos da administração municipal, incluindo a Secretaria Municipal de Saúde, que está sofrendo com 542 milhões de reais contingenciados".