Rosemberg Cariry: Admirável mundo velho
Não é sem desmedida ironia que hoje quero dar os meus parabéns ao empresariado, pastores neopentecostais e políticos conservadores brasileiros, pela sua competência e dedicação. Conseguiram o impossível. Afinal não podemos considerar de pouca monta o fato de, aliados com interesses internacionais inconfessáveis, terem colocado no poder um governo ilegítimo, num golpe contra a vontade popular.
Publicado 24/10/2017 08:16
Agora acham justo cobrar o preço do investimento: criminalização dos pobres, devastação das reservas florestais, impunidade para crimes ambientais, retomada de terras indígenas e quilombolas, perseguição a gays, ataques a cultos afro-brasileiros, misoginia… E pasmem: a legalização do trabalho escravo. Isso mesmo, ó senhores de nobre estirpe, ó damas de imaculados seios. Por pressão do agronegócio, de empresários e grandes negociantes, o governo Temer acaba de assinar a lei que legaliza a situação do trabalho escravo. É legal agora explorar o trabalhador, nas situações mais degradantes, apenas pela comida, privando esse homem da sua liberdade e da sua dignidade. A pessoa vira apenas carvão barato a ser queimado. Uma lógica perversa. Se estão empurrando milhões para a miséria absoluta, para não morrerem, ou não verem os filhos morrerem de fome, no desespero, essas pessoas podem aceitar a “generosa e misericordiosa” oferta de trabalhar apenas pela comida, nas piores condições. Simples assim. Perverso assim. Mais assombroso ainda, apoiando os mais conservadores e brutais barões do agronegócio, a Confederação Nacional da Agricutura defendeu a portaria do trabalho escravo em nota divulgada na imprensa. Deixaram um documento para ser incluído nas páginas mais vergonhosas e obscuras da nossa história.
Parecem eficientes esses empresários, pastores neopentecostais e políticos conservadores ao aprovarem leis tão absurdas e desumanas. Parecem, mas não são, pois o máximo de eficiência para eles seria revogar a Lei Áurea e a Lei do Ventre livre. Não conseguiram ainda aprovar a jornada de trabalho diário de 18 horas pela metade de um salário, embora já prometam acabar com aposentadoria e qualquer tipo de proteção social. Tudo em nome da eficiência da economia. Com mais um ano de governo Temer, conseguem. Aí terão superado a eficiência nazista. E obterão em profusão os títulos de “Homem do Ano”, quiçá um prêmio nos EUA, entregue por Trump. Como economia não é uma ciência, mas tão somente uma ideologia, serão nomeados também “os economistas do ano”, aqueles que melhor propuserem a “eficiência do lucro” e “maior concentração de renda”, sem nenhuma preocupação ética ou humanista. Meireles é o melhor candidato ao título.
A essa volta ao passado chamam de “ponte para o futuro”. Em verdade, esses empresários brasileiros têm saudades do sistema opressivo do início da revolução industrial, na Europa. É preciso lembrar que o capitalismo nascente, naquela época, usava mulheres trabalhando nos teares 18 ou 20 horas por dia. Crianças de apenas quatro anos eram usadas nas minas, para atingir os buracos mais estreitos, onde não chegavam nem mesmo os mineiros mais magros, exauridos pela fome. O tempo médio de vida dessas crianças? Dois a três anos. Jonathan Swift escreveu uma sátira devastadora na época, intitulada “Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam um fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República”. A obra propõe aos empresários e grandes capitalista da época que mais produtivo e eficiente seria a engorda dessas crianças e a industrialização das suas carnes macias para fazer salsichas. Afinal, não só buscavam o lucro, despidos de qualquer ética? Que importava mesmo, na computação dos lucros, a morte desses pequenos escravos? Se morriam milhares, no trabalho ou de fome, outros milhares os substituíam. Tudo em nome do lucro, da ordem e do progresso.
Talvez, num arranjo parecido com o proposto na sátira devastadora de Jonathan Swift, os empresários, pastores neopentecostais e políticos conservadores brasileiros, proponham um novo arranjo econômico para tirar o país da insolvência e agradar o FMI. Ora, se é alimentada a guerra do tráfico (gerando grandes lucros) e criminalizando a juventude, se cresce a pesada indústria dos presídios, com o saldo de centenas de milhares jovens presos todos os anos, se crescem os índices da matança de jovens (nos presídios e fora deles), não tardará algum empresário mais desinibido propor para o Congresso uma lei que permita o aproveitamento dos órgão desses jovens pobres assassinados (na maioria negros), para o mercado internacional. Uma grande fonte de renda capaz de aumentar o PIB e mostrar ao mundo civilizado a eficiência industrial brasileira. Afinal se, para esses empresários e políticos conservadores, bandido é mau e deve morrer, o mesmo não se pode dizer dos seus órgãos, que são bons: coração, fígado, rim, córnea… Uma infinidade de produtos a preços módicos, como diziam os reclames antigos. Dará mais lucro do que a criação de porcos, afinal a ração anda cara, e toda a soja é exportada para a engorda de porcos nos países ricos. Os economistas de plantão ajudarão com seus cálculos precisos, suas estatísticas, seus gráficos, seus Powerpoints e suas projeções de lucros, no mercado real e no mercado futuro. Bravo. É possível que algum entre eles conquiste o prêmio Nobel da estupidez.
Para aumentar o número de jovens criminalizados e vítimas do crime organizado e da polícia, o melhor caminho encontrado pela classe dominante é privá-los da educação e da cidadania. Assim, terão mais miséria social, mais crimes, mais cadáveres e, consequentemente, mais lucros. O engenho de moer gente está a pleno vapor. Dizem empresários e políticos conservadores que o ensino tem que ser pago e querem acabar com a educação pública, gratuita e universal. Com o povo sendo empurrado para a miséria absoluta, como pagar escolas e faculdades? “Questão de competência, a vida é competição”, afirma o lobo para o cordeiro assustado.
Alguns empresários, ciosos da sua boa fama, podem questionar: “Exagero. Não somos todos nós que pensamos assim. Não somos todos nós que financiamos o golpe e estamos a exigir leis degradantes e desumanas”. Pode até ser, não são todos, e toda a generalização peca contra a lógica mais elementar. Mas, se são contra esse estado de coisas, por que não se insurgem? Por que não denunciam? Por que não afirmam a sua humanidade por meio de discursos e práticas? Ora, se calam, é porque da situação melhor se aproveitam e não podem assim ter a consciência limpa. “Quando morrerem, vão todos para o inferno!”, diria minha avó. Isso se existisse inferno no outro mundo. Não existe. O inferno é aqui mesmo, e os demônios vestem paletó e gravata, andam de jatinho e especulam na bolsa. No Brasil, o inferno é gerido pela classe dominante, e o povo é quem padece “nesse vale de lágrimas”. Ao modo do inferno de Dante, a classe dominante brasileira escreveu nas portas das maternidades públicas: “Ó vós que daqui sais e no Brasil entrais, abandonai todas as vossas esperanças”. Dizem por aí que tem muita gente revoltada com a situação, que vão quebrar a placa e tocar fogo no inferno. Se isso acontecer, os empresários cobrarão caros ingressos pelo espetáculo. Como Nero, estarão tocando cítaras.