Publicado 06/10/2017 13:05
Muitos movimentos sociais e até alguns governos de esquerda na América Latina não hesitam em invocar a seu favor as idéias e a luta de Ernesto Guevara. Isso, é claro, não se refere aos governos de centro-esquerda e orientação socioliberal do Brasil, do Uruguai e do Chile – por certo, preferíveis aos de direita, porém fiéis ao Consenso de Washington.
O guevarismo do século 21 não é o mesmo de 1960-1980, época das lutas guerrilheiras contra as ditaduras latino-americanas. Tomemos como exemplo o novo zapatismo de Chiapas. Embora a componente guevarista estivesse presente na origem do grupo que formou o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), esse movimento, que se tornou no decorrer da década de 1980 a expressão "orgânica" das comunidades indígenas de Chiapas, privilegiou – após o ato de insurreição de 1994 – a ação política e a mobilização, no fundo, contra os governos neoliberais mexicanos. Entretanto, sem o levante de janeiro de 1994, o EZLN, sempre de armas na mão, treze anos mais tarde não teria se tornado uma referência para as vítimas do neoliberalismo não só no México como em toda a América Latina e no mundo. O zapatismo combina diversas tradições subversivas, mas o guevarismo não deixa de ser um dos ingredientes essenciais dessa efervescente e imprevisível cultura revolucionária: ele se traduz pela constituição de um exército de libertação, pelo fuzil como expressão material da desconfiança dos oprimidos em relação ao Estado e às classes dominantes, pela ligação direta entre os combatentes e as massas camponesas (indígenas) e pela perspectiva radical de um combate anticapitalista. Nós estamos distantes da aventura boliviana de 1967, porém próximos da ética revolucionária conforme Che a encamava. Igualmente significativa é a influência em escala maciça do guevarismo em certos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil. Che Guevara é uma das principais referências políticas do MST e uma fonte de inspiração para o que eles chamam de "a mística" do movimento: a radicalidade e o devotamente de seus militantes à causa da justiça social – muitos dos quais pagaram com a própria vida o engajamento contra os latifundiários. Por certo, o MST não é um movimento armado e a guerrilha não faz parte de seus métodos de luta. No entanto, ele não hesita em transgredir, por meio da ocupação de terras, a legalidade e o princípio sacrossanto da propriedade privada. A ética de Che e seu programa de emancipação revolucionária da América Latina são os aspectos fundamentais de sua cultura sociopolítica.
De uma maneira mais difusa, as ideias de Ernesto Che Guevara – e não apenas sua imagem em bandeiras e camisetas – estão presentes em vários outros movimentos sociais latino-americanos, dos piqueteros argentinos aos operários bolivianos, dos índios mapuches do Chile aos maias da Guatemala. Com exceção do ELN colombiano, não há mais organizações guevaristas mantendo uma luta armada nos campos. O que Che significa para esses movimentos e esses indivíduos de norte a sul do continente não é o método de guerrilha rural, mas um certo espírito guevarista, ao mesmo tempo ético e político, composto de revolta contra a dominação do imperialismo, de furor contra a injustiça social capitalista, de luta intransigente contra a ordem estabelecida e de aspiração intensa a uma transformação socialista/revolucionária da sociedade.
O que se passa na Bolívia, país onde Guevara verteu seu sangue num último combate? Durante seu discurso de posse como presidente em janeiro de 2006, Evo Morales prestou homenagem a "nossos antepassados que lutaram": "Tupac Katari por restaurar o Tahuantinsuyo, Simón Bolívar pela grande pátria e Che Guevara por um mundo novo feito de igualdade" Mais recentemente, durante uma cerimônia em outubro de 2007 em homenagem a Che em Vallegrande, Evo declarou: "Nós somos guevaristas. Nós somos humanistas. Nós somos revolucionários" Acrescentando que a herança de Che era "pôr fim ao capitalismo"1 Entre os membros de seu governo há militantes que lutaram ao lado de Che no ELN boliviano, como Loyola de Guzman.
Mais paradoxal é o caso da Venezuela: é um ex-militar, eleito e reeleito democraticamente, Hugo Chávez, que tomou para si dois pilares decisivos do programa guevarista: a unidade antiimperialista dos povos latino-americanos e a perspectiva socialista. Em suas numerosas intervenções em defesa do "socialismo do século 21", Hugo Chávez se apresenta como um seguidor de Simón Bolívar, assim como de Marx, Trotsky e Che Guevara. Mas pode-se também considerar o carismático presidente venezuelano como um herdeiro das correntes de esquerda entre os militares venezuelanos que, no início da década de 1960, tentaram empreender várias revoltas inspiradas na revolução cubana e acabaram, em parte, unindo-se aos grupos de guerrilha rural.”2
Ainda é muito cedo para saber que direção tomarão esses dois governos, indubitavelmente os mais à esquerda na América Latina atual. Mas eles evidenciam, cada um a sua maneira, a atualidade das idéias do combatente assassinado em outubro de 1967.
Em todas as manifestações de cunho revolucionário na América Latina de hoje se percebem os traços, ora visíveis, ora invisíveis, do "guevarismo" Eles também estão presentes no imaginário coletivo dos militantes, assim como em seus debates sobre os métodos, a estratégia e a natureza da luta. Podemos considerá-los como sementes que germinaram, durante esses últimos quinze anos, na cultura política da esquerda latino-americana, produzindo ramos, folhagens e frutos. Ou como um dos fios vermelhos com os quais são tecidos, da Patagônia ao Rio Grande, os sonhos, as utopias e as ações libertadoras.