“CNJ autoriza a cura de juiz solipsista”, ironiza Lenio Streck
Ao abordar as decisões polêmicas de juízes brasileiros, Lenio Streck, renomado jurista, professor de Direito Constitucional e autor de extensa obra acadêmica, publicou artigo no Conjur nesta quinta-feira (21) em que destaca que os juízes, de fato, conhecem as leis, “mas reconhecer as leis é outra coisa”.
Publicado 21/09/2017 12:14
Ele acrescenta: “E decidir, com caráter de autoridade, acima do que a lei impõe, não é uma forma de mostrar poder? E qual fetiche é maior que esse? O juiz solipsista sabe que a integridade do Direito o constrange; mas como “viciado em si mesmo”, ignora o constrangimento epistemológico em favor da discricionariedade. Opta por uma verdadeira Verleugnung (usualmente traduzida como negação ou rejeição) jurídica. Je sais bien, mais quand même — ou “eu sei, mas mesmo assim…”. O juiz sabe que a lei existe… mas mesmo assim… A saída perversa para se defender da angústia da castração é a válvula de escape do sujeito solipsista em face do constrangimento que a linguagem pública lhe impõe”.
Vale destacar que, de acordo com a filosofia, solipsismo é a negação de tudo aquilo que esteja fora da experiência do indivíduo. Uma espécie de ceticismo extremado.
Confira a íntegra do artigo:
– Quando eu uso uma palavra, – Humpty Dumpty disse com certo desprezo – ela significa o que eu quiser que ela signifique… nem mais nem menos.
– A questão é – disse Alice – se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.
– A questão é – disse Humpty Dumpty – quem será o chefe… e eis tudo.
Inicio esta coluna com Humpty Dumpty, de Through the Looking Glass (Alice Através do Espelho) porque ele é o melhor exemplo do que faz o sujeito solipsista. O sujeito solipsista é o Selbstsüchtiger, ou viciado em si mesmo. É aquele que se coloca na contramão dos constrangimentos cotidianos: isto é, ignorando que o dia a dia nos ensina que não se pode estabelecer sentidos arbitrários às palavras, ele pensa que pode e assim o faz, pois dá às palavras o sentido que quer. A colocação de Alice é genial, e representa exatamente o que a intersubjetividade nos impõe: você não pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes. Mas Humpty Dumpty é certeiro: será que não? Nem mesmo quem manda? Humpty Dumpty, e perdoem meu pessimismo, não deixa de ter certa razão. Não por menos, e não é de agora, venho dizendo, e repetindo, que o Direito vive tempos obscuros. Infelizmente, a realidade insiste em dizer que estou certo.
Nos últimos dias, tivemos juízes, não contentes em fazer juízos morais (!), fazendo juízos estéticos (!!); decidindo favoravelmente à possibilidade de tratamento voluntário de homossexuais (foi chamado de “cura gay” pela imprensa [sic]); e dizendo que espancar e cortar os cabelos da filha é “medida corretiva”. Não entremos nos detalhes de cada um desses casos. Não é necessário. O ponto é que se o juiz acha que é possível exemplar a filha, fazer juízos acerca da possibilidade de tratamento da homossexualidade e censurar obras de arte, eis aqui os exemplos do solipsismo judicial e seus adeptos.
O juiz dá às palavras o sentido que quer porque ele é, como Humpty Dumpty diz, o chefe. Ele está decidindo a partir de um lugar de fala amparado pela institucionalidade, que tem o papel da concha de Ralph, de Lord of the Flies (O Senhor das Moscas). Mas com uma diferença: não agem como Ralph, personagem através do qual William Golding genialmente representava a democracia e a civilização; agem como Jack Merridew, o garoto que representava a cessão aos próprios instintos e à sede de poder. E quando a intersubjetividade não é capaz de conter a barbárie interior desse sujeito, “a questão […] é quem será o chefe… e eis tudo”. O juiz solipsista é o triunfo de Humpty Dumpty.
A prova disso é que só se pode dizer qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa… no Direito. Os autos de um processo, o Foro, o Tribunal — são esses os únicos lugares nos quais, aparentemente, é “permitido” que se troque o significado dos significantes. Fora daí, experimente dizer que um ônibus é uma bicicleta. Tente escolher o vinho mais cobiçado da carta e dizer, ao pagar a conta, que aquilo na verdade era uma água de R$ 3. Isso não existe porque a linguagem pública constrange, e quem lutar contra isso será chamado de louco. Ao que parece, porém, o delírio de um indivíduo é psicose; um delírio coletivo são as decisões judiciais solipsistas, chanceladas pela autoridade.
O juiz que i) autoriza – liminarmente (qual seria a urgência da liberação?) – que psicólogos ofereçam tratamento para quem se sente desconfortável como gay (vejam: estou tentando dizer isso de modo bem politicamente correto – li várias vezes a decisão), ii) o juiz que fundamenta decisão sobre proibição de peça teatral com base em “mau gosto”, iii) o juiz que caracteriza espancar a filha com um fio elétrico como “exercício regular de um direito” … são exemplos de como atua o sujeito solipsista, o Selbstsüchtiger. O mesmo ocorre quando prende por prender, solta por soltar, ignora dispositivos de lei e da CF, concede metade da herança para amante, atribui meses de licença conforme ele julga mais apropriado, rejeita embargos alegando livre convencimento, etc.; age exatamente como solipsista (ainda que não se dê conta, é claro).
Portanto, se alguém ainda não havia entendido os motivos pelos quais venho pregando por um “constrangimento epistemológico” no Direito (ver verbete específico no meu Dicionário) e os motivos de nos insurgirmos em face de decisões que erram quando a integridade do Direito aponta para outra direção, penso que esses casos mais chocantes podem vir a servir de exemplo do porquê de não se poder ter discricionariedade ou “livre convencimento”. A doutrina, em vez de se preocupar em fazer enunciados, bem que poderia se preocupar com essa coisa “prosaica”: “constranger” epistemicamente para que o Judiciário… cumpra a lei e a Constituição Federal. Simples assim. Ou é pedir muito?
“Mas ele é juiz, conhece as leis.” Evidente que sim. Mas reconhecer as leis é outra coisa, e decidir, com caráter de autoridade, acima do que a lei impõe, não é uma forma de mostrar poder? E qual fetiche é maior que esse? O juiz solipsista sabe que a integridade do Direito o constrange; mas como “viciado em si mesmo”, ignora o constrangimento epistemológico em favor da discricionariedade. Opta por uma verdadeira Verleugnung (usualmente traduzida como negação ou rejeição) jurídica. Je sais bien, mais quand même — ou “eu sei, mas mesmo assim…”. O juiz sabe que a lei existe… mas mesmo assim… A saída perversa para se defender da angústia da castração é a válvula de escape do sujeito solipsista em face do constrangimento que a linguagem pública lhe impõe.
Se a gravidade disso ainda não estava suficientemente clara, eis o solipsismo judicial em três modelos: moralismo artístico, moralismo sexual e moralismo familiar.
De todo modo, a) se é possível autorizar que psicólogos tratem da (re)orientação de homossexuais, b) se é possível dar palpite sobre estética e dizer o que é bom ou mau gosto, e c) se é possível ao juiz até determinar o modo como um pai deve fazer para “curar” a rebeldia de sua filha (surrando-a), permito-me uma ironia: por que não apelar ao CNJ para que autorize a cura de solipsismos judiciais desse jaez? Afinal, se a tradução correta de solipsismo é “viciado em si mesmo”, vícios devem ter cura, pois não? Se não autorizar, poderia dizer “que não está proibida a reorientação epistêmica…”.
Nota: para quem quiser saber mais detalhes sobre o conceito de solipsismo, o termo é um dos 40 temas analisados em meu Dicionário de Hermenêutica – 40 temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Além do que está dito no início da coluna, vai uma palhinha: É o sujeito que assujeita o mundo conforme o seu ponto de vista interior. É, pois, o resultado do sujeito da modernidade, concebido no seio desse paradigma que tem na subjetividade do homem o ponto último de fundamentação para todo o conhecimento possível. É como o canário de Machado de Assis, em Ideias do Canário, para quem o mundo é somente aquilo que ele privadamente diz que é; o resto é mentira e ilusão. E o que mais é necessário senão os três exemplos desta coluna para explicitar a relação umbilical entre solipsismo, voluntarismo, relativismo e subjetivismo?