"O Capital não é uma bíblia nem um receituário", diz José Paulo Netto
Vista por muitos como "a bíblia" da revolução, há 150 anos era lançada a obra O capital, de Karl Marx (1818-1883). Em nome de do intelectual alemão e sua obra maior, muitas batalhas políticas e ideológicas são travadas até hoje. Em entrevista, o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Paulo Netto, que se define como comunista, desmistifica a obra.
Por Juliana Gonçalves
Publicado 17/09/2017 15:25
Netto defende o conteúdo como um "programa analítico que deve ser sistematicamente desenvolvido". Além disso, fala dos principais pontos de análise estruturados por Marx no livro, das crises do capitalismo como oportunidades para mudança social, do poder da conscientização dos trabalhadores e, por fim, das questões de raça e gênero, tidas como "pós-modernas", que ganham novas leituras e esquentam os debates sobre a luta de classe.
Leia na íntegra:
Como vê a importância da obra e o que ela representa?
A meu juízo, o caráter clássico dessa obra de Marx reside em que ela, centrada na análise social da produção econômica capitalista e evidenciando as suas inextirpáveis contradições, permitiu-lhe elaborar uma teoria sobre a gênese, a constituição e a dinâmica da sociedade burguesa. Depois de Marx, nenhuma outra construção científica foi capaz de explicar e compreender tão rigorosamente, numa perspectiva histórica e crítica, as condições objetivas que propiciam a vida social cada vez mais diversificada e complexa da sociedade em que vivemos. O que Marx nos oferece n’O capital (e o livro I contém a sua fundamentação) é a teoria que expressa, nas suas tendências mais essenciais, o movimento histórico real do que chamamos capitalismo.
Nas pesquisas que realizou, à base da dialética de Hegel, Marx descobriu o mecanismo fundamental sobre o qual se ergue a sociedade burguesa: a exploração do trabalho pelo capital. Evidentemente, corridos um século e meio desde a publicação d’O capital, a organização econômica e social da nossa sociedade se transformou profundamente — o capitalismo do século 21 não é o capitalismo do século 19. Mas o capitalismo, uma vez constituído, só pode assentar na exploração do trabalho — não existe capitalismo sem a exploração do trabalho pelo capital. Marx não foi nem profeta nem um criador de utopias: foi um teórico rigoroso e o essencial das suas descobertas permanece o fundamento necessário para a análise da sociedade contemporânea.
Quais seriam os principais pontos estruturados por Marx n’O capital?
Mediante uma exaustiva pesquisa, coube a Marx demonstrar n’O capital que:
O capitalismo dispõe de extraordinário dinamismo para a produção de riquezas materiais e exerceu, historicamente, um papel civilizador;
Na medida em que se desenvolve, o capitalismo revela contradições que se manifestam nas suas crises periódicas;
Nessa mesma medida, o papel civilizador do capitalismo se atrofia e se converte no seu antípoda, a barbarização da vida social;
O capitalismo, a partir da sua plena maturação, engendra fortes tendências ao bloqueio da sua própria dinâmica;
O capitalismo não é a expressão de uma pretensa ordem natural nem, menos ainda, o fim da história: é uma modalidade temporária, transitória e substituível de organização da produção e distribuição das riquezas sociais.
O capitalismo estudado por Marx é diferente do capitalismo de hoje?
Já observei que o capitalismo contemporâneo está longe de ser aquele estudado empiricamente por Marx. Ao longo dos seis primeiros decênios do século 20, o regime do capital experimentou modificações ponderáveis. Mas é especialmente a partir dos anos 1970 que suas alterações se tornam muito mais substantivas — e, desde então, explicitamente operadas sob o comando do capital, com o movimento das classes trabalhadoras claramente na defensiva. Trata-se de todo um quadro histórico-social e cultural muito diverso daquele com o qual Marx se defrontou.
No entanto, no tocante aos processos diretamente conexos à organização econômico-política da sociedade contemporânea, parece-me que Marx tem muito a contribuir. A dinâmica mundial protagonizada pelas mega-corporações é inexplicável sem o recurso aos textos d’O capital que abordam as tendências à concentração/centralização do capital; a planetarização do capitalismo (o que vulgarmente se popularizou sob a rubrica de “globalização”), bem como a sua financeirização. O atualmente crônico problema do desemprego (sob todas as suas várias formas) e suas sequelas sobre dezenas de milhões de homens e mulheres só se torna inteligível se recorrermos à marxiana concepção da “lei geral da acumulação capitalista”.
É correto se voltar a Marx para entender e reagir às recentes ameaças aos trabalhadores, a exemplo da precarização dos direitos trabalhistas?
É importante afirmar que Marx não foi profeta nem visionário. Sua obra está marcada pelo seu tempo histórico e toda uma série de questões que hoje problematizam a ordem do capital, em especial questões de natureza política e cultural, não foram, nem poderiam, ser equacionadas por ele. O capital não é uma bíblia nem um receituário: é um programa analítico que deve ser sistematicamente desenvolvido. É fato que questões como as indicadas na pergunta não receberam dele um tratamento direto e/ou conclusivo. Mas é igualmente factual que o cuidado para com elas tem encontrado por parte de marxistas contemporâneos abordagens fecundas e esclarecedoras — o que é uma prova cabal de que o método de análise empregado por Marx continua se apresentando como válido no confronto com o capitalismo contemporâneo.
Pode contar um pouco sobre a visão de Marx sobre a importância das crises do capitalismo e como elas devem ser vistas pelos trabalhadores?
O Capital, fruto de décadas de pesquisa, apresenta uma análise rigorosa do processo de constituição e desenvolvimento da ordem do capital. Desta análise, Marx extraiu a compreensão das crises econômicas como componente necessário da dinâmica do capital – nas crises se expressa o caráter contraditório do movimento do capital: elas não são sinais episódicos de uma “disfunção” qualquer, mas um constitutivo da regência do capital sobre a vida social. Numa palavra, não existe capitalismo sem crise. Por isso mesmo, entendo que, para Marx, das crises periódicas, ou cíclicas, do capitalismo o que resulta, como derivação econômica, é mais capitalismo. Aquilo que uma crise de maior dimensão – digamos: uma crise estrutural-sistêmica – pode oferecer aos trabalhadores é a possibilidade de encontrarem e viabilizarem para ela uma solução política. Aqui, a alternativa a mais capitalismo só pode ser o de uma reestruturação radical da organização política, que suprima o poder político do capital. Em síntese: a passagem do poder político do controle do capital ao poder político dos trabalhadores, a revolução.
A revolução para Marx seria produto da ação dos trabalhadores. Ele mesmo além de teórico foi militante, pode contar um pouco sobre isso?
Marx sempre a compreendeu a revolução como uma variável resultante do nível de consciência social dos trabalhadores e das suas vanguardas. Não separemos o Marx “teórico” do Marx “político”; em 1847-1848, ele animou a Liga dos Comunistas; e durante a elaboração da sua obra principal, jogou todas as suas forças na Associação Internacional dos Trabalhadores/AIT. Ao longo de toda a sua vida, a consigna Liga pareceu-lhe válida (Proletários de todo o mundo, uni-vos!), bem como nunca duvidou de que a emancipação dos trabalhadores seria obra deles mesmos. E Marx jamais estabeleceu uma muralha chinesa entre a luta pelas reformas possíveis para melhorar a condição de vida dos trabalhadores e a perspectiva revolucionária – basta pensarmos como ele acolheu a limitação da jornada de trabalho conquistada pelo proletariado inglês. Ademais, Marx, como dirigente da AIT, nunca concebeu a ação revolucionária exclusivamente como processos insurrecionais.
Há análises que apontam que a questão de gênero tem lugar marginal em O Capital. Como enxerga isso?
Já é coisa velha. Notadamente no âmbito acadêmico, o barato senso comum de afirmar-se que Marx não deu atenção significativa à esfera da cultura e dos valores. Ora, a leitura atenta de vários textos de Marx revela o seu cuidado para com esta esfera das objetivações humanas. Quanto a’O capital – que não é um tratado de antropologia e, menos ainda, de psicologia: é a fundação da teoria social a partir da crítica da economia política -, sugiro que se examine a paixão e o ódio com que Marx trata a exploração do trabalho feminino (e também infantil) no sistema fabril do seu tempo para averiguar da sua atenção para com a mulher (trabalhadora). Por outra parte, desde 1848, quando Marx tinha George Sand em alta conta e o movimento sufragista dava os seus primeiros passos, o programa político de Marx para a Alemanha reclamava o direito ao voto universal para todos os maiores de 21 anos. E, para além de Marx, no que toca aos “clássicos”, parece-me merecer uma leitura atenta, sem preconceitos, o Engels d’A origem da família, da propriedade privada e do Estado, para constatar que, no horizonte desses “clássicos” do século 19, a crítica ao patriarcado e a defesa das aspirações femininas não foi adjetiva.
Há análises que declaram, por exemplo, que não há capitalismo sem racismo. Como isso está presente ou não na obra de Marx?
Quem domina a análise marxiana do processo da acumulação originária (ou primitiva) bem sabe da relevância da escravatura moderna, dos africanos submetidos ao tráfico e dos povos originários do que se chamou Novo Mundo, para a constituição do capitalismo. E conhece o ódio de Marx contra toda e qualquer forma de opressão — em Marx, a emancipação humana é o objetivo que deu sentido e significado à sua vida e à sua obra. Outro problema é o do racismo moderno. Embora deitando raízes na expansão comercial euro-ocidental iniciada nos séculos 16 e 17, ele está diretamente vinculado ao erguimento e consolidação dos impérios coloniais ao largo dos finais do século 18 e de todo o século 19e ganha, com a emergência do imperialismo, a sua feição mais abjeta. Parece-me que é correta a afirmação, em face deste racismo, que ele é um corolário do capitalismo.
Os movimentos de mulheres e movimentos negros recentes, vêm articulando a ideia da importância do tripé de gênero, raça e classe inseparáveis e com o mesmo peso nas construções sociais. Como vê isso?
Responderei um episódio da minha vida acadêmica. Há trinta anos, a professora Heleieth Saffioti, estudiosa já falecida e que sempre respeitei, expôs-me a ideia à qual você alude — e ela ressalvava que, no “tripé”, havia que ponderar cuidadosamente os seus suportes. Diante da minha observação de que julgava que a dimensão da classe constituiria o momento determinante, Heleieth sorriu e argumentou: 'Para verificá-lo, necessitamos de avançar na pesquisa'. Considero que o programa de pesquisa a que Heleieth se referiu há trinta anos fez grandes progressos desde então — mas eu, que não sou um conhecedor profundo de tais avanços, ainda continuo cético diante dos resultados de estudos que equalizam a ponderação dos componentes do “tripé”.