Fome aumenta pela primeira vez em quase 15 anos
Os conflitos e impactos climáticos revertem os tímidos recuos registrados desde 2003. Na América do Sul, após anos de queda, os índices de subnutrição voltaram a crescer há dois anos
Publicado 15/09/2017 15:55
Mais de 815 milhões de pessoas. Cerca de quatro vezes a população do Brasil. Quase tantos quanto os habitantes da União Europeia e Estados Unidos juntos. Toda essa gente vai dormir todo dia sem ter comido as calorias mínimas para suas atividades diárias. Mas o número alto, calculado pelas Nações Unidas e publicado nesta sexta-feira, dia 15 de setembro, não é novidade: o número de famintos oficiais oscila entre os novecentos e tantos e os setecentos e muitos desde o início do século. A notícia é que, pela primeira vez desde 2003, a fome volta a aumentar.
Esta alta em relação aos quase 777 milhões de subalimentados calculados em 2015 não foi uma surpresa absoluta: havia sinais de sobra para prevê-la. A fome reapareceu este ano no Sudão do Sul e há outros três países (Iêmen, Somália e Nigéria) perto de cair em suas garras. Nos últimos anos, estouraram guerras e enfrentamentos que se ampliam e se agravam (de fato, 6 em cada 10 pessoas com fome vivem em países em conflito). E também há regiões muito dependentes da agricultura que estão há três ou mais temporadas sofrendo secas, inundações e outros impactos climáticos. Esses são, exatamente, os fatores que explicam a alta, segundo o relatório apresentado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura) e outras quatro agências da ONU em Roma.
Se há um ano 10,6% da humanidade passava fome, hoje são 11%. “São muitas más notícias”, lamenta Kostas Stamulis, diretor geral adjunto da FAO, a agência que faz os cálculos anuais do número de pessoas “subalimentadas”, ou que não consomem o número de calorias mínimo para suas necessidades vitais. “Por isso esperamos que pelo menos sirvam para fazer disparar o alarme e que os países ouçam”, reflete Stamulis.
Na América Latina, os níveis permanecem baixos, mas há indícios de que a situação pode piorar, especialmente nos países da América do Sul, onde a prevalência da subnutrição aumentou de 5% em 2015 para 5,6% em 2016. No Brasil, apesar de o alerta de entidades nacionais de que o país está sob ameaça de retornar ao mapa da fome, o número registrado no biênio 2014-16 ficou abaixo de 2,5% (em 2004-06 ele era de 4,5%).
A agência insiste firmemente: acabar com a fome é uma questão de vontade política. Porque os alimentos produzidos mais do que sobram para que os quase 7,5 bilhões de habitantes do planeta comam o que necessitam para uma vida plena. O problema é quase sempre de distribuição: há regiões em que não chega comida suficiente, há pessoas (ou comunidades inteiras) sem dinheiro suficiente para comprá-la.
Por trás dessa complexa realidade chamada fome estão, obviamente, problemas de pobreza e vulnerabilidade. Porque uma seca pode provocar grandes perdas econômicas na Califórnia; mas se as chuvas faltam na Etiópia, centenas de milhares de pastores etíopes que sobrevivem graças a seus animais vão perdê-los. E com eles sua fonte de alimentação. A ofensiva militar contra o Boko Haram vivida no norte da Nigéria pode provocar refugiados (quase dois milhões) e destruição; mas se a maioria da população comia o que cultivava, quando se vê obrigada a abandonar seus campos e estes ficam arrasados, fica sem a única forma de conseguir alimento por conta própria. Uma alta ou queda dos preços globais do milho pode alterar o preço das espigas em um supermercado espanhol. Mas também arruinar ou expor à fome (ou ambos) milhares de pequenos produtores.
Por isso, a resposta que os autores do relatório oferecem passa, sim, por atender com rapidez as situações de emergência alimentar provocadas pela violência ou pelo clima (ou pela explosiva combinação dos dois). E por fomentar e proteger a paz. Mas também, e sobretudo — e aí é onde entra em jogo a vontade política — por investir e apoiar o desenvolvimento e a capacidade dos mais vulneráveis para resistir a esses contratempos, como determinam os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável aprovados em 2015 pelos 193 países membros das Nações Unidas.
Por criar, além disso, oportunidades profissionais e sociais que façam desaparecer também os famintos urbanos, um grupo em perigo de expansão com o crescimento das cidades. E por estabelecer mecanismos comerciais que não deixem a alimentação de países inteiros exposta aos vaivéns do mercado.
Essa volta da fome é, sem dúvida, uma forte reprimenda aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o programa global concebido entre promessas de mudança e boas intenções. A segunda dessas metas que as Nações Unidas e seus países membros determinaram para o ano de 2030 é acabar com a fome e a subnutrição. Mas exatamente quando são colocadas para funcionar, não só não há progresso como se rompe a série de quase quinze anos de queda.
“Ainda é cedo para saber se se trata de uma nova tendência ou se é algo pontual devido a crises em andamento”, ressalva o diretor da FAO. Os autores do relatório, do qual também participam o Programa Mundial de Alimentos, o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola, o Unicef e a Organização Mundial de Saúde, advertem sobre a necessidade de continuar melhorando “a confiabilidade das estatísticas”, que estão sujeitas a contínuas atualizações. Várias vozes criticaram essas mudanças a posteriori, perguntando-se inclusive se os números não foram maquiados para parecer que os objetivos estão sendo cumpridos.
“Somos totalmente transparentes com os dados”, garante Stamulis. “São números oferecidos pelos países e que nós depois analisamos e verificamos.” Essa informação remetida pelos Estados inclui produção, fornecimento e comércio de alimentos e a demografia (idade, sexo, ocupações da população etc.) para calcular o consumo de calorias e relacioná-lo com a energia de que cada pessoa necessita. Mas há países que meses ou anos depois corrigem as estatísticas enviadas. Apesar de a metodologia não mudar, essas variações fazem com que as cifras de cada novo relatório invalidem as anteriores. “Neste momento são os melhores que podemos ter”, sustenta o grego.
Essa diversidade de fontes (este ano foram incluídos números estimados pelo Unicef e pela OMS), admite o diretor da FAO, pode estar por trás de uma das boas notícias que o texto apresenta: os atrasos no crescimento pela desnutrição em menores de cinco anos apontam uma tendência muito mais positiva: apesar de 155 milhões de crianças ainda sofrerem do problema, a redução desde 2005 foi de 6,6 pontos (de 29,5% para 22,9%).
Os diferentes tipos de desnutrição, sobrepeso infantil, anemia feminina e obesidade entre adultos foram incluídos pela primeira vez em um relatório que mudou de nome: já não fala do estado de insegurança alimentar, mas de segurança alimentar e nutrição. A ideia, aponta o documento, é entender melhor a relação entre segurança alimentar (a garantia de ingerir calorias suficientes) e uma boa nutrição (que estas provenham de alimentos saudáveis e com os nutrientes adequados).
Apesar de o informe deste ano ser negativo, a série histórica traz progressos. Em 2000, os obrigados a dedicar seu dia a dia a buscar algo para comer, condenados a não desenvolver todo seu potencial físico e humano, eram 14,7% da população mundial. Hoje são 11%. Mas, como se pergunta o escritor argentino Martín Caparrós em seu enciclopédico A fome: “E se em vez de centenas de milhões de famintos fossem 100? E se fossem 24? Então diríamos, ‘ah, bem, não é tão grave’? A partir de quantos começa a ser grave?”.