Publicado 03/09/2017 16:45
Um Estado que retoma o ideário neoliberal e fortalece seu poder repressivo para conter parte da população "indesejável". Esse é o modelo que caracterizaria a "pós-democracia", conceito utilizado pelo juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e doutor em Direito Rubens Casara.
No Brasil, esse Estado adquire características próprias, já que o país "se acostumou com o autoritarismo", segundo o jurista. "As grandes transformações brasileiras foram feitas de cima pra baixo, sem grandes rupturas, de modo a se mudar para que as coisas continuassem do jeito que estavam, a chamada lógica de Lampedusa. O brasileiro foi levado a acreditar no uso da força, da violência para resolver os mais variados problemas", aponta.
E se em outros períodos da História o fascismo foi um obstáculo para a efetivação do capitalismo, hoje ele se tornou um aliado. "Práticas fascistas são fundamentais nesse controle da população e na formatação de um pensamento homogêneo que é interessante para a sociedade de consumo, já que a diferença no contexto do Estado Pós-Democrático, para a razão neoliberal, só é admitida se puder ser transformada em mercadoria."
Na entrevista a seguir, concedida em meio à realização do 23º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Ibccrim, Casara aborda o papel da cultura do ódio nesse cenário e fala sobre a aparente passividade da população diante da retirada de direitos em curso no país. "Temos que nos interpretar, saber o que queremos, verificar qual a nossa responsabilidade pelo que estamos vivendo e partir para a ação. Iniciar um processo de mudança, ou que seja apenas para caminhar. Hoje nós não estamos andando."
Se o fascismo já foi visto como obstáculo capitalismo, hoje é fundamental para a manutenção do modelo, que está em crise permanente – e se é permanente, nem merece ser chamado de crise, é o próprio funcionamento normal do sistema.
Como relacionar o conceito de pós-democracia com o panorama do Brasil hoje?
Acho que um bom caminho é pensar o Estado Pós-Democrático em oposição ao Estado Democrático de Direito, sempre caracterizado pela existência de limites rígidos ao exercício do poder, e os direitos e garantias fundamentais eram o principal deles. A Constituição estabeleceria uma série de limites intransponíveis a todos os poderes, ao econômico, ao jurisdicional, ao Executivo, pouco importa quem quisesse ultrapassá-los. O Estado Pós-Democrático seria esse em que tais limites desaparecem. Desaparecem em um movimento de aproximação entre poder econômico e poder político.
Os direitos e garantias fundamentais são vistos como obstáculos à eficiência, seja do mercado, seja a eficiência repressiva do próprio Estado, voltada à contenção da população indesejável, daqueles que não interessam à razão neoliberal e ao capital financeiro. E aí entram não só os pobres – aqueles que não dispõem de poder de consumo –, mas também os inimigos políticos. Todos aqueles considerados indesejáveis são vítimas preferenciais da atuação do sistema de justiça penal.
De uma certa forma isso é uma volta ao passado, quando não tínhamos estabelecido esses limites.
É pós-moderno no sentido em que há de novo uma confusão entre poder econômico e poder político. Se uma das marcas, senão a principal, do Estado Moderno foi a separação desses poderes, o Estado Pós-Democrático volta a reunir o poder econômico e o político em uma aproximação muito íntima desses elementos. É algo pré-kantiano na medida que a pessoa volta a ser tratada como uma mercadoria, um objeto. Aquele ganho de dignidade da pessoa humana, de que ela não poderia mais ser instrumentalizada e tratada como objeto, desaparece com a pós-democracia.
E é um retrocesso em relação à ideia de Estado Democrático de Direito e se aproxima muito das experiências nazista da Alemanha, fascista clássica da Itália, do próprio stalinismo na União Soviética, já que os direitos e garantias fundamentais deixam de exercer esse papel de obstáculo intransponível, podendo ser negociados dependendo do caso e passando a ser tratados na lógica das mercadorias.
Nesse aspecto do fascismo, como ele acaba servindo aos interesses econômicos dominantes, como você mencionou em um artigo?
Se em determinado momento o fascismo foi visto como obstáculo aos fins do Estado capitalista, hoje tais práticas são fundamentais para a manutenção do modelo capitalista que está em crise permanente – se é permanente, nem merece ser chamado de crise, é o próprio funcionamento normal do sistema.
Práticas fascistas são fundamentais nesse controle da população e na formatação de um pensamento homogêneo que é interessante para a sociedade de consumo, já que a diferença no contexto do Estado Pós-Democrático, para a razão neoliberal, só é admitida se puder ser transformada em mercadoria. As outras diferenças podem ser eliminadas.
E nisso se dá essa relação com a cultura do ódio no atual cenário político brasileiro?
O ódio é alimentado com uma funcionalidade política e também para o mercado, é explorado economicamente de uma maneira direta e indireta. Destrói perspectivas diferentes que podem se opor à ordem neoliberal e destrói efetivamente pessoas que se opõem a essa lógica.
Nunca chegamos a construir de fato uma cultura democrática. Nunca os direitos e garantias fundamentais foram concretizados. Tivemos alguns movimentos no sentido da concretização, mas eles não chegaram a ter pleno êxito.
A proliferação desse ódio conta com uma cumplicidade de parte da mídia.
É difícil generalizar, mas me parece que manifestações de ódio foram toleradas em determinado período por conta de sua funcionalidade política. O problema é que depois que o ódio é libertado e naturalizado, fica difícil voltar ao estado anterior, de sua contenção. A mídia tradicional em particular – mas não só ela, alguns veículos da mídia alternativa também – teve um papel muito importante nessa liberação do ódio, calcado em preconceitos e que, em razão da tradição autoritária da sociedade brasileira, adquire características muito próprias.
Usando uma expressão de (Theodor W.) Adorno, que trabalhou o conceito da personalidade autoritária após a segunda guerra mundial nos EUA, algumas características da pessoa que seria detentora da personalidade autoritária hoje se fazem presentes no Brasil com naturalidade. Não tem vergonha de assumir posições que vão desde a aposta em medidas de força para solucionar todos os problemas a uma preocupação excessiva com a sexualidade, em especial a sexualidade alheia. Estão aí os crimes com motivação sexual crescendo e aos olhos da população isso é naturalizado.
De que forma a nossa cultura e história autoritárias moldam esse ódio?
O Brasil se acostumou com o autoritarismo. As grandes transformações brasileiras foram feitas de cima pra baixo, sem grandes rupturas, de modo a se mudar para que as coisas continuassem do jeito que estavam, a chamada lógica de Lampedusa. O brasileiro foi levado a acreditar no uso da força, da violência, para resolver os mais variados problemas. Nunca chegamos a construir de fato uma cultura democrática no Brasil. Nunca os direitos e garantias fundamentais foram concretizados. Tivemos alguns movimentos no sentido da concretização mas eles não chegaram a ter pleno êxito.
É diferente, por exemplo, a manifestação de ódio no Brasil em relação aos países que viveram o Estado de bem-estar social. O brasileiro acredita em salvadores da pátria, no uso da violência em situações em que em outros países já há um certo consenso de que ela não resolve. Temos que começar a pensar o ódio produzido e a maneira como ele se manifesta no Brasil. Exemplos externos não dão conta de explicar o que está acontecendo aqui.
Esse fenômeno brasileiro, que alguns tratam de maneira jocosa, do "pobre de direita", aquela pessoa que luta contra políticas que melhorariam a sua vida, é difícil de se encontrar em outros países. Até se encontra, mas em número muito menor do que aqui. São as particularidades da construção do próprio mito fundacional do Brasil, que é um mito autoritário. Esse autoritarismo está presente desde a nossa colonização e isso produz efeitos na percepção da violência e efeitos na produção e recepção do ódio na sociedade.
Aqui inclusive existe uma crença para alguns de que os chamados ricos, ainda que corruptos, criam empregos, diferentemente de políticos que praticam corrupção.
No Brasil, uma característica desse pensamento autoritário é a tentativa de simplificação excessiva de fenômenos que por definição são muito complexos. O próprio encobrimento da luta de classes no Brasil é um sintoma desse autoritarismo, busca-se simplificar as coisas a ponto de ocultar algo que é evidente, que é o conflito de classes em uma sociedade profundamente desigual como é a brasileira.
Nesse ponto específico da luta de classes no país, os confrontos se dão não necessariamente do ponto de vista socioeconômico, mas do cultural, não? Há segmentos que absorvem características de outros grupos e passam a defender pontos de vistas alheios.
Eminentemente cultural, e acho que não é só no Brasil. Aliás, essa pesquisa que mencionei, conduzida por Adorno e por outros pesquisadores nos EUA, mostra que uma outra característica da personalidade autoritária – e acho que se aplica no Brasil – é essa identificação com os valores da classe média. Os próprios pobres se veem como classe média, com valores eminentemente conservadores. Essa adesão leva ao reforço desse pensamento autoritário, e é outro tema importante a ser pesquisado e avaliado se quisermos levar a sério a identificação e a proposta de solução para os problemas que estamos vivendo hoje no Brasil. Um momento histórico em que há visivelmente o crescimento do pensamento autoritário no seio da população.
Tanto a direita quanto a esquerda tendem a simplificar excessivamente os problemas. Tendem a encobrir a complexidade, por exemplo, da luta de classes, na tentativa de produzir uma imagem de uma pacificação que não existe
Curioso que quando se fala em luta de classe há muitas pessoas que acusam: 'você está plantando o ódio', quando se trata de uma questão de análise.
Esse discurso de atribuir o problema ao outro que identifica a causa da desigualdade é nítido do encobrimento das questões sociais, uma característica nítida de uma sociedade autoritária como a do Brasil. E não é de hoje. Não se pode nem dizer que é um problema da esquerda ou da direita que está no poder, tanto a direita quanto a esquerda tendem a simplificar excessivamente os problemas. Tendem a encobrir a complexidade, por exemplo, da luta de classes, na tentativa de produzir uma imagem de uma pacificação que não existe.
O aumento de propostas punitivistas tramitando no Congresso Nacional, às vezes com apoio de parte da esquerda, faz parte desse contexto pós-democrático?
Nisso também não há muita diferença entre direita e esquerda, as pessoas acreditam que a punição vai produzir efeitos que em nenhum lugar do mundo produziu. Se analisarmos pesquisas sérias sobre o tema da eficácia da pena e do encarceramento, você vai ver que o que se pretende com a prisão no Brasil não foi alcançado em nenhum lugar do mundo. Hoje, e aqui vale a pena citar a frase que o Nilo Batista construiu junto com Loïc Wacquant, as prisões se tornaram planos habitacionais para a miséria. Esses indesejáveis, na pós-democracia, ou vão para as prisões, onde não vão incomodar – ou vão incomodar de outra maneira – ou são exterminados diretamente.
As principais vítimas das políticas punitivistas não raro batem palmas para os excessos da polícia, para o crescimento do Estado penal, justamente diante da incapacidade de reflexão crítica sobre o que está acontecendo, uma incapacidade que é fomentada pelas instituições e também pelos meios de comunicação de massa. Algo que visivelmente vai produzir uma piora na qualidade de vida das pessoas é aceito, recebido acriticamente pelo destinatário e acaba sendo visto como algo positivo. É assustador.
Em campanhas eleitorais já vimos pontos como a defesa de linhas repressivas como o Tolerância Zero, aplicada em Nova Iorque. Como parte da esquerda, no Brasil historicamente ligada a direitos humanos, foi por esse caminho?
Teria dúvidas em dizer que no Brasil a esquerda sempre teve uma história ligada a direitos humanos. Nem toda a esquerda. Mas se na pós-democracia tudo pode ser transformado em mercadoria, potencializando o diagnóstico que Marx já fazia, as políticas de segurança também se transformaram em mercadoria. E políticas de segurança como a de Nova Iorque foram vendidas para o Brasil como sendo uma política exitosa, que traria votos. E gera toda uma indústria ligada à segurança pública, o que interessa à razão neoliberal.
Os índices obtidos pela política de Tolerância Zero em Nova Iorque não são muito diferentes de outros estados que não adotaram a mesma política. Por que? Porque o que reduziu a criminalidade não foi a "mercadoria" da política de tolerância zero, mas o momento de esplendor econômico dos EUA. Diminuiu a criminalidade em Nova Iorque quando se aplicava a política de Tolerância Zero, mas em outros estados em que não se aplicava a criminalidade também diminuiu. No entanto, quando você vende essa ideia, isso não é dito, é ocultado. Tudo é positivo nesse tipo de mercadoria, compramos e aplicamos sem atentar para as particularidades das cidades brasileiras. Aliás, não dá para pensar em uma política de segurança pública uniforme para todo o Brasil porque os problemas da criminalidade no Rio de Janeiro são diferentes, até em termos geopolíticos, da criminalidade em São Paulo, do Amazonas, do Pará, no Recife… As cidades têm particularidades muito específicas, mas como a questão é vender uma mercadoria, elas compram o mesmo plano e começam a aplicar como se fosse uma solução mágica. E como toda solução mágica, acaba frustrando.
E diversas soluções mágicas nessa área já foram testadas, como a participação das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro, mesmo após o fracasso da Operação Rio em 1992.
Conta-se também com a falta de memória. Isso é importante para se vender o produto, você modifica a embalagem, aumenta ou diminui o tamanho, faz um desenho mais bonito, e vende a mesma mercadoria que não funcionava e continua não funcionando como antes.
Voltando ao conceito do Estado Pós-Democrático, especificamente no Brasil, podemos delimitar algum momento em que ele se aprofundou e ganhou mais força?
O Estado Pós-Democrático não é um fenômeno muito recente ou brasileiro, está intimamente ligado à razão neoliberal no momento em que ela se torna uma nova razão de mundo. Para usar uma expressão meio fora de moda, uma ideologia que condiciona a atuação das agências estatais. E é triste perceber que mesmo governos no Brasil de orientação mais progressista tenham aderido a essa razão neoliberal. Se observarmos a ampliação de medidas autoritárias no sistema de justiça penal, por exemplo, e analisarmos o que aconteceu nos governos Lula e Dilma, podemos afirmar que houve uma plena adesão à razão neoliberal nas políticas públicas de segurança. Quando falo em razão neoliberal não falo em termos econômicos, mas como se fosse uma própria ideologia, algo que passou a condicionar as pessoas, que olham para direitos, para princípios, para a liberdade e a vida como se fossem mercadorias descartáveis. E isso é muito grave.
Talvez esse seja o principal ponto da razão neoliberal hoje no Brasil, nós perdemos a capacidade de identificar determinados valores como inegociáveis. Tudo virou negociável. Mais uma vez, é pré-kantiano, Kant dizia que havia algumas coisas que eram inegociáveis, e ele não é propriamente um pensador revolucionário.
Essa ideia, hoje, no Brasil, desapareceu. Tudo é visto dentro da lógica da negociação: admito abrir mão de um direito fundamental, de um princípio, de um valor intimamente ligado à dignidade da pessoa humana se eu tiver uma vantagem em troca.
Esse não pode ser um dos fatores que explica uma relativa passividade de parte da população em relação à retirada de direitos? Mesmo discordando, as pessoas de uma forma geral não se mobilizam.
Você é levado a acreditar que as coisas não podem ser diferentes, a esquecer a ideia de utopia e nesse momento fica paralisado diante de um estado de coisas que não necessariamente tinha que ser assim
É um excesso de informações, de notícias ruins que leva ao imobilismo. Não se consegue romper a inércia que impede de reagir. O que chocava há um mês hoje se tornou uma banalidade. Outra coisa choca mais ainda e você não conseguiu nem reagir ao que ocorreu um mês atrás. Esse excesso de notícias – ou que poderíamos chamar de mercadorias – nos leva ao imobilismo. Preocupa muito esse silêncio, essa omissão em determinados aspectos que são fundamentais para a vida em comum, para a vida minimamente digna.
Até fazendo a comparação com outros períodos, como o da redemocratização, quando já havia problemas de ordem econômica e social graves, havia também esperança, o que parece não ser o caso hoje.
Um outro sintoma da razão neoliberal é esse, o fim das grandes narrativas e o fim da esperança. Não que ela tenha desaparecido, ela está ocultada. Você é levado a acreditar que as coisas não podem ser diferentes, a esquecer a ideia de utopia e nesse momento fica paralisado diante de um estado de coisas que não necessariamente tinha que ser assim.
Talvez seja a hora de resgatar a responsabilidade individual de agir contra esse estado de coisas. Temos uma situação ruim, grave, que, a meu ver, não se enquadra mais no marco do Estado Democrático de Direito. Diante disso, a responsabilidade de cada um é tomar uma atitude. Temos que parar de acreditar que soluções mágicas mudarão esse quadro, resgatar a capacidade de identificar a situação e reagir diante dela.
E como se manifestaria essa responsabilidade individual? Por uma busca do debate de soluções coletivas, mais mecanismos de participação? Como se daria isso?
Acho que parte de um resgate da política nesses termos que você falou, novas formas de participação, de identificação de um comum pelo qual valha a pena lutar. Do resgate desse norte de que existem coisas pelas quais vale a pena lutar, valores que não podem ser negociados. Esse é um processo coletivo, mas que também é marcadamente individual, temos que nos convencer de que existe algo pelo qual valha a pena lutar. Se partirmos da premissa de que as coisas estão dadas e que não adianta qualquer tipo de mobilização, isso leva ao fim da política em seu sentido mais belo.
Por essa ótica, é preciso preciso desvelar a esperança…
Acreditar que existe possibilidade de mudança. E acreditar nisso não leva necessariamente à mudança, mas leva ao movimento. E o movimento é fundamental, até mesmo para sobreviver. Hoje, a sensação que nos domina é de angústia, de falta, de impotência, e identificar – e aceitar até – essa angústia e fazer algo criativo a partir dela passa necessariamente por um processo que chamo de auto interpretação. Temos que nos interpretar, saber o que queremos, verificar qual a nossa responsabilidade pelo que estamos vivendo e partir para a ação. Iniciar um processo de mudança, ou que seja apenas para caminhar. Hoje nós não estamos andando.
Uma característica marcante da pós-democracia é que começamos a querer trabalhar só com positividades, é a sociedade do excesso do desempenho, onde cada um tem que produzir muito, não sobra tempo para o diálogo. E temos que conversar muito para pensar soluções para as inércias tanto coletivas quanto individuais.
E o autoritarismo pretende também impedir esse diálogo.
O ódio é produzido para você não conversar com o outro. Se não existe o diálogo, não existe o comum. Cada um pensando no seu próprio umbigo não se tem perspectiva de transformação.