Publicado 03/09/2017 10:45
Com a decisão anunciada de privatizar a Eletrobras, seguida pelo anúncio, dois dias depois, da venda ou concessão de 57 outras empresas públicas, inclusive a Casa da Moeda e 14 aeroportos, entre eles o de Congonhas, em São Paulo, o governo parece ter abdicado por completo de qualquer pretensão de política econômica merecedora dessa denominação.
Entregar de vez o Brasil ao mercado na tentativa de salvar a pele parece ser a tática do governo Temer diante das dificuldades para o avanço no Congresso da reforma da Previdência e do desmonte do BNDES, operações almejadas pelo mercado financeiro.
Deliberações rápidas e em série encaminham o descarte de dezenas de ativos públicos em troca de receitas efêmeras para o Tesouro e lucros perenes para instituições financeiras, consultorias e grandes investidores participantes do “saldão”, como vem sendo chamada a operação nas redes sociais. O pacotaço incluiu a extinção, publicada no Diário Oficial da quarta-feira 23, da Reserva Nacional do Cobre e Associados, com mais de 4 milhões de hectares, e sua liberação para a mineração.
A área abrange partes do Amapá e do Pará, em plena Floresta Amazônica, e sua abertura ao mercado gerou protestos mundiais. Diante das condições em que se processa a escalada e dos danos provocados ao País, o senador Roberto Requião disparou no Twitter: “Atenção, senhores do mercado: comprar empresas públicas na atual circunstância política do Brasil é crime de receptação. Bem claro assim?”
A decisão de privatizar a Eletrobras foi criticada pela agência de classificação de risco Moody’s, uma das três maiores do mundo, por ser “um fator de crédito negativo para a estatal, já que traz incertezas sobre o apoio governamental em momentos de necessidade.
O plano cria também distrações para a administração que podem prejudicar outras iniciativas, incluindo a estratégia de reestruturação da companhia iniciada em novembro passado”, alertou a vice-presidente e analista sênior da Moody’s Cristiane Spercel.
Suspeita-se que alguns participantes do mercado não precisaram esperar a venda da estatal para começar a ganhar. O deputado Carlos Zarattini, líder do PT, encaminhou requerimento à Comissão de Valores Mobiliários para apurar possíveis beneficiários de informação antecipada sobre a operação da Eletrobras.
A elevação anormal de volumes em dias anteriores próximos à divulgação da privatização, segundo acompanhamento de alguns profissionais, talvez seja resultado de compras maciças realizadas por indivíduos e instituições detentores de posições acionárias e com acesso prévio à informação “de dentro” sobre a privatização. A divulgação da venda da companhia provocou altas de 49,3% nas ações ordinárias da estatal e de 32,08% nas preferenciais no pregão da Bovespa.
“O novo plano de transferir tudo ao mercado é de uma estupidez total num país com 70% da energia de fonte hídrica. Querem vender usinas antigas, pagas pela população através das tarifas e usar o dinheiro para reduzir o déficit do Tesouro. Ou seja, as pessoas vão pagar de novo.
O sentido de política pública é nenhum”, acusa o ex-presidente da agência reguladora Aneel e ex-ministro interino das Minas e Energia Nelson Hübner, integrante dos conselhos de administração da Cemig e da Light.
“A verdade é que a Eletrobras é absolutamente sustentável e tem um papel fundamental para o País. Não tenho dúvida nenhuma de que sem a sua participação, mesmo minoritária, nos consórcios privados atuantes nos leilões, teríamos de comprar a energia de Santo Antônio e Jirau por 140 reais o megawatt-hora. Adquirimos por praticamente metade do preço. Belo Monte saiu extremamente barato. Tem um custo muito bom e é extremamente rentável. É um absurdo a Eletrobras vender um projeto como esse”, analisa Hübner.
No governo FHC, diz, só em dois lotes de leilões o deságio chegou a 20%, nos demais variou entre zero e 1% de desconto no preço-teto definido pela Aneel. Um dos primeiros atos do governo Lula foi retirar as empresas da Eletrobras do Plano Nacional de Desestatização, liberando-as para participar dos leilões.
Daí em diante, os deságios subiram para 30% a 59%. “Ali, para mim, ficou absolutamente claro que a Eletrobras tem um papel fundamental para a expansão de geração e linhas de transmissão, o equilíbrio do mercado e a garantia de suprimento”, sublinha o especialista.
As digitais tucanas são uma constante na operação, de ponta a ponta, desde o presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Júnior, que no comando da CPFL vendeu-a ao grupo chinês State Grid, até Elena Landau, presidente do conselho de administração da empresa até julho e coordenadora da grande queima de ativos públicos no governo FHC.
A ousadia pró-mercado do governo atual animou Elena Landau a declarar: “Por que não a Petrobras um dia?” Foi a senha para alguns consultores recomendarem a clientes a compra paulatina de ações da estatal para lucrarem na venda quando as cotações explodirem na Bolsa no caso de a venda se concretizar. Tudo leva a crer que o sonho neoliberal acalentado pelos tucanos desde os anos 1980 nunca esteve tão perto de se concretizar.
A fase de privatizações precursora do desmonte atual foi marcada por transações alarmantes protagonizadas pelo ex-ministro das Telecomunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros e incluíram o próprio presidente da República, segundo revelaram grampos de conversas telefônicas travadas principalmente no BNDES. Previa-se o eventual uso da bomba atômica, isto é, a intervenção de Fernando Henrique Cardoso para atingir os objetivos inconfessáveis da operação.
Tudo isso para entregar ao País um sistema de telecomunicações entre os mais caros e ineficientes do mundo, mostram comparações mundiais e recordes de reclamações de usuários. A única versão correta desses grampos foi dada por CartaCapital e precipitou a demissão de Mendonça de Barros.
O absurdo de se vender a Eletrobras foi assim resumido pelo economista Ricardo Carneiro, professor da Unicamp: 1. Pode aumentar o preço da energia. 2. Coloca em risco a soberania nacional. 3. Desperdiça um instrumento de desenvolvimento. 4. Não se sustenta no argumento da ineficiência. 5. É irrisória para melhorar as contas públicas.
O efeito insignificante das privatizações para melhorar as contas do governo talvez seja o aspecto mais revelador da irracionalidade das ações governamentais em curso. “Vender patrimônio para gerar receita equivale a enxugar gelo, em um país cuja política econômica restritiva constrange a atividade e o investimento, de forma que o desequilíbrio fiscal é permanente”, analisa o economista Antonio Correa de Lacerda, professor da PUC-SP. Cabe acrescentar que essa é a principal explicação para o salto do déficit primário de 0,6% do PIB em 2014 para algo em torno de 3% hoje, por mais que o governo insista em atribuir a responsabilidade às administrações petistas.
Uma das peculiaridades do processo em marcha é a inexistência de aprendizado com o passado. “Privatizar em si não é necessariamente ruim, desde que preservado e reforçado o papel regulador, fiscalizador e controlador do Estado. Não é o que o ocorre no Brasil. Isso exigiria planejamento e não decisões açodadas, motivadas pela necessidade de geração de receita para cobrir parte do rombo fiscal”, sublinha Lacerda.
Todos os países que privatizaram apressadamente para gerar caixa, explica, saíram-se muito mal. Há precedente inclusive no Brasil, no próprio sistema elétrico, com a privatização da Light no Rio de Janeiro. O comprador deixou de realizar investimentos importantes e isso colaborou para o apagão em 2001.
O que o governo Temer está fazendo no setor elétrico não tem paralelo no mundo, acusa o empresário e advogado de empresas transnacionais André Araújo. Os grandes países que possuem empresas nacionais de energia elétrica, como a EdF da França, Enel da Itália, EoN da Alemanha e Iberdrola da Espanha, consideram suas companhias instrumentos estratégicos fundamentais para a economia. Todas elas são de capital aberto, mas sob controle nacional para assegurar a organização e a operação do centro do sistema.
A proteção da indústria nacional de equipamentos elétricos, especialmente hidrogeradores e transformadores, é uma das razões para manter aquela estrutura. “Se a Eletrobras passar para o controle da China, o que é mais provável, haverá grande pressão para o equipamento ser fornecido por esse país. Essa é uma das razões do investimento chinês em infraestrutura, é para vender equipamentos da sua fabricação”, alerta o empresário.
O governo Temer candidata-se a repetir o fracasso das privatizações de FHC. As receitas das vendas de estatais no auge do processo, entre 1997 e 1998, corresponderam em média a 3% do PIB e contrastam com os resultados da dívida pública e do desequilíbrio fiscal, que prosseguiram como se uma privatização daquelas proporções não existisse.
Aonde levará a soma dos fracassos das privatizações de FHC, evidenciado nesses dados, e de Temer, mais do que provável de acontecer? Que ponto atingirá o descontrole de um governo que se mostra mais pró-mercado que o próprio mercado, conforme alertado pela Moody’s? Segundo anunciou no seu perfil na rede LinkedIn o banqueiro Luiz Cesar Fernandes, sócio da GRT Partners e criador dos bancos Garantia e Pactual, “o crescimento da dívida pública interna atingirá 100% do PIB do Brasil já na posse do próximo governo. A situação será insustentável, gerando uma completa ingovernabilidade.
Para evitarem uma corrida bancária, as grandes instituições bancárias terão, obrigatoriamente, de impedir seus clientes de efetuar os saques de suas poupanças à vista ou a prazo. Caso contrário, teremos uma situação ainda mais grave do que a vivida pela Venezuela”. Fernandes propõe: “Reformas já, ou só restará o calote”.
Os bancos, diz, hoje cartelizados em cinco grandes organizações, têm diminuído assustadoramente os empréstimos ao setor privado e vêm aumentando, em proporção inversa, a aplicação em títulos da dívida pública.
A situação brasileira, na interpretação do financista, é mais grave do que a da Grécia, considerada o fundo do poço da crise dos países: “A dívida grega era, sobretudo, externa e em grande parte pulverizada, inclusive em bancos centrais, fundos mútuos e de pensão. O caso do Brasil é essencialmente diverso. Um default da nossa dívida interna implicará a falência do sistema, atingindo de grandes bancos a pessoas físicas. Para evitar uma corrida, as grandes instituições bancárias terão, obrigatoriamente, de impedir seus clientes de efetuar os saques de suas poupanças à vista ou a prazo”.