Publicado 30/08/2017 16:25
A cultura punk tem raízes numa agremiação urbana predominantemente masculina, isto é claro. A presença feminina nesse meio sempre foi um lance de resistência, de cavar o seu espaço. No alvorecer do punk nacional, começo dos anos 80, a única banda de destaque formada por mulheres era a Mercenárias. Sandra Coutinho (baixo), Ana Maria Machado (guitarra) e Lou (bateria), influenciadas por Sex Pistols, Siouxie and The Banshees e Joy Division, estiveram na ativa pelos inferninhos paulistanos até meados de 88 quando, já num contexto mais do pop, foram dispensadas pela EMI-Odeon.
Depois disso elas desencanaram de fazer som e ficou uma lacuna no punk. Até meados dos anos 90, o posto uma vez ocupado por gente como as pioneiras Mercenárias permanecia vago. No auge da tendência hardcore, faltava para uma nova geração de meninas adolescentes algo com o que se identificar. É claro que havia uma ou outra banda e pequenos grupos feministas atuantes no underground. Mas nem a sonoridade nem o discurso do que existia demonstravam força para servir de base a um cenário só das minas. O feminismo hoje é um debate infiltrado na cena. Naqueles tempos, porém, mesmo nos círculos alternativos, a pauta das lutas específicas ainda era pouco levada em conta.
Formado em 1995, o Dominatrix veio suprir tal brecha nesse contexto em que era surpreendentemente incomum ver bandas de HC inteiramente formadas por mulheres fazendo um som daora. Quando elas surgiram, foi impressionante. Elas tinham menos de 18 anos e estavam assumindo a voz de meninas de sua faixa etária sobre problemas e emoções que conheciam muito bem. Junte a isso uma expressiva noção de musicalidade, riffs e beats que traduziam perfeitamente a energia e a rebeldia juvenil, e a identificação foi imediata.
Girl Gathering, o primeiro álbum da primeira banda de minas a trazer para a cena punk brasileira o argumento riot grrrl, completa 20 anos. Com o impacto da obra, o Dominatrix agiu como o elemento aglutinador providencial para juntar as meninas num movimento só delas. Elas foram valentes, nadaram contra a corrente da ignorância trazida pelo machismo, abriram espaço para as minas na frente do palco, exigiram o fim da "dança violenta" em suas apresentações e, ao estimular o empoderamento quando o termo nem era usado, inspiraram o nascimento de inúmeras outras bandas — Bulimia, Hitch Lizard, Same… —, algo que mais tarde tornaria possível a realização de coisas antes impensáveis, como festivais só de conjuntos femininos, tipo o Lady Fest Brasil, e o Girls Rock Camp, exemplo mais atual.
Toda história contada é só uma parte da história. O que é certo: o Dominatrix apareceu e ajudou a mudar um monte de coisa. Nos depoimentos reunidos aqui, integrantes da formação que gravou o disco-tema desta homenagem e amigos próximos delas na época reconstituem algumas memórias dos primeiros anos da banda.
O Portal Vermelho separou alguns os primeiros depoimentos presentes na matéria da Vice:
Isabella Gargiulo (baixista e vocalista): Não vou mentir — muita coisa que conheci foi pela MTV e revistas de música estrangeiras. Ao contrário de muita gente das bandas da época, não crescemos "indo na Galeria [do Rock, no centro de SP]" nem a shows punks. Vim de uma família católica super protetora (sobretudo das meninas), que não deixava a gente sair sozinha e conhecer o mundo nos nossos próprios termos. O resultado foi uma infância e adolescência limitada ao ambiente doméstico, ao rádio, à MTV e revistas como única ligação com o mundo da música lá fora. Mas na época (fim dos anos 1980, começo dos 90), a MTV Brasil era de uma qualidade bastante interessante e experimental, e ampliou bastante os meus horizontes. Nunca vou me esquecer do dia que vi o clip de "Human Behavior" da Björk, aos nove anos, chuviscado por causa de uma conexão UHF malfeita, provavelmente envolvendo papel alumínio. Achei tão surreal, tão estranho, tão maravilhoso. Seria ela uma criança como eu? Aquilo me marcou muito.
Estela Homem (baterista): Em 1995, eu fazia aulas de bateria com o Alaor Neves, no Conservatório Souza Lima, e todos os anos eles agrupavam algumas "bandas" para uma apresentação dos alunos. Naquele ano, especificamente, eu caí numa banda com um garoto chamado Diego. O Diego era guitarrista e era amigo das duas irmãs, a Elisa e a Isabella. Ele ficou muito empolgado quando me conheceu, por eu ser menina e tocar bateria (soa um pouco estranho falar assim hoje em dia, pois agora muitas meninas já tocam bateria, mas naquela época as coisas eram bem diferentes!). Então, ele falou para a Elisa e a Isabella sobre mim, e elas vieram me ver tocar. Na mesma hora me contaram sobre a ideia de tocarmos todos juntos: eu, com 16 anos, Elisa, com 15, Isabella, 13, e Diego Queiroz, 16.
Isabella: Depois de procurar muito tempo por uma baterista (sem sucesso), a Elisa conheceu uma galera do Conservatório Souza Lima e por lá fomos apresentadas à Estela e à Ana (e ao Diego, que foi o nosso primeiro guitarrista durante uns poucos meses). A Eliane nós vimos tocar com o Dog School (provavelmente no Aeroanta) e pedimos para ela entrar na banda.
Ficamos um tempão sem nome. Depois ouvimos a música "Panik", do Bratmobile, que menciona a palavra "dominatrix", e achamos que soava legal, uma palavra que captava a intenção da nossa música e a ideia de poder feminino. No entanto, no contexto daquela música — e da língua inglesa — essa palavra se refere a certas figuras femininas do sadomasoquismo, e nós não sabíamos disso, fomos pelo sentido latim de mulher poderosa, dominadora. Mais tarde, quando descobri o real sentido da palavra, era meio que tarde demais pra mudar — até porque eu achava legal o som da palavra. Aqui nos Estados Unidos, onde moro hoje, quando perguntam o nome da minha banda, sempre riem da resposta.
Nunca fizemos aula de música. A Elisa sempre foi autodidata, comprava tablaturas de guitarra na banca e aprendeu a tirar música de ouvido desde muito cedo. Eu, durante muitos anos, participei de corais, gostava muito de cantar, e isso influenciou muito a maneira como eu construía as harmonias vocais para as músicas. Acho que a decisão de cantar em inglês partiu muito das nossas influências na época — L7, Hole, punk da Lookout Records, depois Bikini Kill e Bratmobile. Eu, inicialmente, por causa do isolamento, não tinha referência de punk nacional, o que acho que teria resultado em mais vontade de cantar em português. Todas nós estudávamos língua estrangeira.
Estela: Quando eu era novinha, eu era muito ramonera. Eu ainda sou, mas era ridículo! Na época em que a Elisa me conheceu eu estava muito metaleira. É claro que eu ainda ouvia punk rock e hardcore, mas coisas mais antigas. Foram elas que trouxeram um monte de bandas mais novas para eu conhecer. Elas gostavam de hardcore melódico. Eu nunca gostei, mas foi bom conhecer. Conforme fui crescendo, fui me ligando em bandas mais barulhentas, por isso formei o Infect depois. No Dominatrix, acho que posso citar como influência o Tommy e o Marky Ramone e o D.H Peligro, já que eu amava Dead Kennedys (e ainda amo!). No Infect eu já fui mais para o Napalm Death dos dois primeiros discos, com o Mick Harris. Eu também tocava no Butcher's Orchestra e conheci muita garageira com o Marquinho Butcher. Quando você ouve e toca muito barulho, chega um momento em que seus ouvidos ficam saturados. Bom, os meus ficaram! Então voltei a ouvir rockabilly e Beatles, que eu ouvia muito na infância com os meus pais, e mais um monte de outras referências fora do rock. Tudo acaba influenciando, acredito eu. Lembrei de uma coisa curiosa agora, a Isabella, aos 13 anos, ficava lendo e ouvindo música clássica. Precoce.