O Império quer a América Latina contra a Coreia do Norte
O vice-presidente dos Estados Unidos Mike Pence pediu que “Brasil, México, Chile e Peru” rompam relações com a Coreia do Norte para ajudar seu país nas ameaças à Coreia do Norte. O “pedido” foi feito no Chile, na presença da presidenta Michelle Bachelet, que reagiu dizendo que “o Chile vai manter suas relações”.
Haroldo Lima*
Publicado 23/08/2017 09:53
No Brasil, fonte do Itamaraty, citada pela agência russa Sputnik, disse que “o governo brasileiro não irá comentar o pedido do vice-presidente dos EUA feito em um terceiro país”. E se o “pedido” não fosse feito “em um terceiro país”, seria atendido?
O que o povo brasileiro espera, mesmo de um governo ilegítimo, é que não se comporte como capacho do Império. Aja com um mínimo de compostura.
Ademais, não é o Brasil que está em briga com a Coreia do Norte, e sim os Estados Unidos, cujo presidente, Donald Trump, está agora com a sanidade mental questionada por parlamentares de seu país. Mas, poder-se-ia dizer que, do lado coreano, também está o Kim Jong-un, jovem impetuoso que dotou seu país de arsenal nuclear e que lhe está imprimindo uma política militarista. É verdade, mas vamos aos fatos.
A Coreia tem uma história antiquíssima. Há 11 séculos a.c. tinha o nome de Choson, que significa "terra tranquila", quem diria. A partir de 1910 foi anexada ao Japão e passou a ser tratada com violência desmedida. A lingua coreana foi proibida, os coreanos eram obrigados a adotar um nome japonês.
Uma revolta havida em 1º de março de 1919 foi reprimida com crimes de guerra: os coreanos foram trucidados, 50.000 feitos prisioneiros, 20.000 mortos.
Massacrada a revolta, as atrocidades continuaram, contra a Coreia e contra a China, Filipinas e outros países. Na Coreia a prostituição forçada de 200.000 mulheres, para servir aos japoneses, ficou conhecida como “mulheres de conforto”, 46 das quais ainda estão vivas.
O Japão nesse período, sob o comando do imperador Hiroito, escreveu algumas das páginas mais vergonhosas da humanidade, como “o estupro de Namquim”, na China, onde, a partir de 13 de dezembro de 1937, durante seis semanas, houve estupros em massa e assassinatos em massa, com a morte de 300.000 chineses. O Imperador Hiroito autorizou formalmente o uso de armas químicas contra os chineses.
O historiador americano Chalmers Johnson (entrevistado em 13 de maio de 2011 no programa Milênio da Globo News) fez, em seu livro The Looting of Asia (O saque da Ásia), uma comparação entre os crimes de guerra da Alemanha de Hitler e os do Império de Hiroito nesse período. E anotou: “ Os alemães mataram seis milhões de judeus e 20 milhões de cidadãos soviéticos; os japoneses assassinaram 30 milhões de asiáticos de diferentes etnias e pelo menos 23 milhões de chineses”. Akihito, o atual imperador do Japão, é filho do Hiroito. A ocupação da Coreia só terminou em 1945, com o fim da II Guerra Mundial.
Ocorre que na luta contra o Japão, um jovem comunista se projetou como herói nacional, Kim Il-sung. Quando, em função do Acordo de Potsdam, de agosto de 1945, entre a União Soviética, o Reino Unido e os Estados Unidos, a Coreia ficou dividida pelo paralelo 38, com tropas soviéticas ao norte e americanas ao sul, Kim II-sung ficou liderando a facção do norte.
Em 1947, as duas facções formam dois governos. A ONU, manobrada pelos EUA, só reconheceu o do sul. Surge a Coreia do Sul e em seguida a do Norte. A parte sul estruturou-se em moldes capitalistas, a parte norte em moldes socialistas.
Em 25 de julho de 1950, já não existindo forças estrangeiras no país e o objetivo da reunificação da pátria sendo defendido por ambos os lados, tropas norte-coreanas avançaram para o sul e ocuparam Seul, a capital da Coreia do Sul. Uma luta se estabeleceu, mas só entre coreanos, com o contingente do Norte levando vantagem. Alguma solução eles teriam que encontrar para resolver os seus problemas.
Mas eis que os Estados Unidos, percebendo que a Coreia do Norte levava vantagem, resolvem invadir a Coréia, com tropas sob o comando do General Douglas Mac Arthur, em nome da ONU, e avançam pelo Norte em direção à fronteira com a China. Esta acabara de realizar sua grande Revolução, e começava a construção de uma Nova China. A situação era delicada. Não fazendo nada, a China corria o risco de ser também invadida.
O governo de Pequim, tendo à frente Mao Tsé-tung, não vacilou. Destacou um contingente de 300.000 combatentes para juntar-se às tropas de Kim Il-sung e barrar o avanço americano. Era a Guerra da Coreia.
Foi uma guerra sangrenta, durou de 1950 a 1953. Um armistício foi assinado, definindo uma zona desmilitarizada separando as duas Coreias. Incluindo a população civil, calcula-se que tenham morrido nessa guerra cerca de 3 milhões de pessoas, a maior parte norte-coreana.
Na continuidade, os americanos usaram a tática de manter a Coreia do Norte sob tensão permanente, retirando-lhes as condições de um crescimento sereno.
A despeito disso, os norte-coreanos, dirigidos por Kim Il-sung, lançaram as bases de um parque fabril de porte médio e puseram-se a fortalecer suas forças de defesa. Não tendo reserva petrolífera, buscaram desenvolver a tecnologia do átomo, inicialmente como alternativa energética, admitindo até supervisão internacional. Mas a reação americana foi enérgica: tecnologia do átomo, nem para fins pacíficos.
Com a morte de Kim Il-sung, em 1994, o Partido do Trabalho da Coreia indicou para sucedê-lo seu filho, Kim Jo-il, que faleceu em 2011, após o que assumiu a chefia do partido e do país, Kim Jog-un, filho do chefe antecessor, e que lidera a Coreia do Norte no momento.
Estive na Coreia do Norte por duas vezes, em comemorações para as quais foi convidado o PC do Brasil, por mim representado. Da primeira vez, conheci e conversei com Kim Il-sung. Em ambas oportunidades, além da capital Pyongyang, estive no interior, onde grandes obras estavam em curso. Duas impressões maiores me marcaram.
A primeira é que, em Pyongyang, com seus 3, 5 milhões de habitantes; nas cidades interioranas por onde passei; e na área agrícola que conheci desse país de 25 milhões de habitantes, não vi uma só favela, um só casebre, um só mendigo, ninguém morando nas ruas. A gente desvalida, que traz estampada, em rostos esquálidos, a dor permanente, de penúria infindável, e que compõe a paisagem das conhecidas cidades ocidentais, das pobres e das ricas, essa gente não existe na Coreia do Norte. Ali não se vê miséria, tampouco luxo, a vida floresce a partir de um patamar comum de dignidade. Não há analfabeto, a saúde pública, modesta, alcança a todos.
A segunda impressão que me marcou foi a do culto da personalidade, na verdade exacerbado, mesmo para os padrões asiáticos. O culto ao Mao Tse-tung na China, que em certo momento existiu, era bem menor. A referência aos Kim é quase religiosa. Com meu jeito baiano, em conversa descontraída, dei uns tapinhas nas costas do Kim Il-sung, que deu uma sonora gargalhada, para espanto dos circundantes. No Japão, os visitantes são recomendados a não olharem nos olhos do Imperador!!!
Escaldada pelo seu passado de humilhações e sofrimentos, a Coreia do Norte armou-se de uma vontade inquebrantável de não mais se deixar dominar por aventureiros. A política armamentista unifica o povo, orgulhoso de seu passado de lutas e das extraordinárias realizações atuais no campo estratégico, onde, contra tudo e contra todos, desenvolveu arsenal nuclear e mísseis balísticos.
Não é bom para ninguém o clima de guerra na Coreia. Pode ser estopim de uma terceira guerra mundial, tenebrosa. As manobras militares dos americanos com sul-coreanos nas redondezas da Coreia do Norte elevam a tensão e podem provocar acidentes fatais. É uma temeridade.
A militarização na Coreia do Norte é, lamentavelmente, a sua política de sobrevivência. Porque, ninguém tem dúvida de que a Coreia do Norte já não existiria e seus governantes já teriam sido trucidados, como no Iraque, na Líbia e no Afeganistão, se lá não tivesse armamento nuclear.
O Trump, vez por outra diz que está “perdendo a paciência”, que poderá lançar contra a Coreia do Norte “fogo e fúria jamais vistos no mundo”.
Perseverar no caminho diplomático para a solução das controvérsias é o que interessa a todo o mundo. Inclusive porque, será bom que o Império perceba que, pelo menos com a Coreia do Norte, “o buraco é bem mais embaixo”!