Publicado 16/08/2017 13:53
As últimas semanas têm sido marcadas por um verdadeiro movimento de vai e vem nas declarações oficiais relativas ao imbróglio fiscal que avassala nosso país. Porém, é forçoso reconhecer que essa onda de hesitação em assumir o inevitável é bastante compreensível. Afinal, a narrativa dos defensores do financismo sempre assegurou amplamente que a solução era simples. Bastaria tirar a Dilma para que todas as dificuldades se transformassem em oportunidades para o retorno de nossa economia a uma suposta normalidade.
A evolução da conjuntura, no entanto, tem demonstrado exatamente o oposto. Temer tem sido devorado por sua própria voracidade, condimentada por uma boa dose de mentira e de oportunismo. Afinal, o principal argumento utilizado pela turma do financismo contra Dilma havia sido sua suposta irresponsabilidade fiscal. A consolidação do golpeachment trouxe para o centro da equipe econômica uma dupla autêntica em sua capacidade de bem representar os interesses do sistema financeiro. Ocorre que Meirelles & Goldfajn deveriam estar à frente do Ministério da Fazenda e do Banco Central para representar os interesses da população e não a sanha arrebatadora dos banqueiros.
Mas o fato é que a opção que os dois sugeriram ao vice-presidente eleito em 2014 foi exatamente na direção oposta do que a maioria havia escolhido nas urnas. Assim, recomendaram levar ao extremo a opção equivocada que Dilma já havia ensaiado meses antes, quando nomeou Joaquim Levy para o comando de sua equipe econômica. Dominados pela lógica neoliberal e conservadora da “contração expansiva”, fizeram crer a todos que a restauração estaria ali, logo mais à frente na esquina. Bastaria um pouco de competência técnica e força de vontade para superar os problemas causados pela execrada “nova matriz econômica”. Equívoco imenso. O aprofundamento do desastre estava a caminho, sem nenhum obstáculo à vista.
O austericídio e a pinguela
A receita do austericídio foi o principal fator para o estrangulamento das dificuldades na esfera fiscal. Isso porque, ao contrário do que papagueiam os colunistas a serviço do financismo, não houve explosão alguma das despesas da União. A recessão e o desemprego – aliás, diga-se de passagem, mui estimulados pela ortodoxia como solução para a crise – é que provocaram a brutal queda na arrecadação tributária. Com a queda nas receitas do Tesouro Nacional, torna-se inescapável a ampliação do deficit na apuração do resultado na contabilidade pública.
E assim tem sido desde 2015, quando a perda sucessiva e continuada de receitas tem provocado uma piora no resultado fiscal do governo federal. Confirma-se a imagem da pinguela rumo ao passado, balangando perigosamente sobre o precipício. Ora, é sabido que a retórica liberalóide acentua de foram monocórdica um sentimento contra o excesso de gastos públicos e se posiciona raivosamente contra qualquer tentativa de se recorrer ao aumento de impostos. Assim, a única solução para os executores da cabeça de planilha é martelar com a insanidade do corte de despesas orçamentárias a qualquer custo.
No ano passado, Meirelles dizia cheio de coragem e ousadia que o deficit primário de 2017 seria menor do que os R$ 159 bilhões apurados em 2016. Afinal, aqueles números ainda estariam seriamente comprometidos pelo desastre da equipe anterior. Daqui prá frente tudo vai ser diferente! E sua equipe chuta um deficit de R$ 139 bi para o ano em que estamos. No entanto, como faltou combinar o jogo com a fadinha das expectativas, a cada dia que passava a situação da economia piorava e as contas públicas iam pelo mesmo caminho. A orientação de “cortar e cortar e cortar” nas despesas orçamentárias tem se revelado implacável e os efeitos têm sido sentidos pela maioria da população na ponta do atendimento. Assistimos de forma passiva ao drama do serviço público sendo destruído de forma criminosa e irresponsável.
Mexer na meta: traição ao financismo
Um dos muitos problemas de Temer é que a conta não vai fechar de acordo com a enganação patrocinada em torno da indiscutível competência do time dos sonhos da economia. Não haverá conciliação possível entre o idealismo financista que lhe deu suporte até o momento e o pragmatismo negocial que opera no interior de sua base aliada no Congresso Nacional. Meirelles foi obrigado a jogar a toalha e reconhecer que não vai cumprir a meta fiscal que havia prometido. Oh, santo pecado!
O estelionato golpeachmental é um fato. Agora se trata de discutir tão somente o valor da lorota. Para usar a terminologia que deu base à retirada de Dilma, Meirelles estaria patrocinando uma autêntica pedalada fiscal. Nem mais, nem menos. A diferença reside tão somente no tratamento cortês e compreensivo com que é afagado pelos colunistas de plantão, sempre tão bem adestrados no conservadorismo da ortodoxia. “Coitadinho, ele bem que tentou.” “Mas também, esse nosso sistema político é muito chantagista.” “Esses deputados é que não deixam o cara trabalhar direito!” E por aí vai.
As tentativas desesperadas de obter receitas por vias não tributárias deram com os burros n’água. Os vários anúncios de novos leilões de concessão e privatização de serviços públicos têm esbarrado em dúvidas e falta de interesse por parte dos principais grupos participantes. As receitas obtidas foram irrisórias. As iniciativas escandalosas de perdoar os crimes bilionários da evasão fiscal tampouco lograram atrair os recursos sonegados criminosamente e mantidos no exterior. Aqui também os ingressos auferidos pelo Tesouro Nacional revelaram-se inexpressivos.
Por outro lado, a Medida Provisória da renegociação das dívidas por sonegação abriu a porteira para que os bilhões de reais esperados fossem transformados em alguns poucos milhões. Os representantes dos interesses do capital no Congresso Nacional chegaram a incluir emendas reduzindo em 99% o valor das dividas das empresas para com o fisco, em troco de alguns poucos recursos de pagamento à vista, para que o governo tenha algum dinheiro entrando no caixa até dezembro. Uma loucura!
Fisiologismo pragmático ou financismo purista?
De tanto condenar de foram apriorística o uso da política tributária para compensar esses momentos de dificuldade nas finanças públicas, o governo vê-se agora amarrado na armadilha que seus apoiadores sempre criaram no passado. Menos Estado! Impostômetro! São essas as palavras de ordem da insanidade que permeia nossas classes dominantes, a ponto de aceitarem passivamente a alternativa do desmonte das conquistas incluídas na Constituição desde 1988. E seguimos mantendo inalterado o modelo regressivo de nossa estrutura tributária. Isso significa não tocar na carga maior de impostos que incide sobre a população de menor renda e nem se atrever a pensar em tributar lucros e dividendos, heranças, grandes fortunas, movimentação financeira ou exportação de “commodities”.
Enquanto escrevo este artigo, o núcleo duro do governo deve estar afinando, pela enésima vez, o discurso oficial a respeito de qual será a nova meta para 2017 e para 2018. Por inúmeras ocasiões o anúncio oficial foi frustrado. A divergência não reside apenas no número mágico a ser anunciado. Manter os R$ 159 bi do ano anterior? Aumentar um “pouquinho” mais para R$ 169 ou R$ 170 bi? Na verdade, pouco importa. Na lógica dos operadores do mercado financeiro, tudo isso já estava “precificado” há muito tempo. Afinal, qualquer pessoa que acompanha um pouco a evolução da economia sabia que o “estouro” da meta seria inevitável.
O ponto é saber se a lógica do “animal político” vai se impor à lógica do “animal liberal”. Essa é a verdadeira disputa entre o núcleo da cozinha do Palácio do Planalto e os puristas da área econômica. Uma base aliada prestes a se rebelar contra Temer em compasso de espera pela nova denúncia ser apresentada por Janot. Uma sopa de letrinhas do fisiologismo ávida por recursos e cargos para atravessar com certa tranquilidade o período difícil que nos separa do pleito do ano que vem. Afinal, carregar nas costas um governo impopular e arriscar a não reeleição merece algum tipo de prêmio de consolação. E convenhamos que esse cálculo não é lá muito difícil de ser feito.
Assim, desse ponto de vista, o mais “recomendado” seria jogar uma meta de deficit ainda mais frouxa, para que o governo continue podendo atender às demandas gastadoras de quem está de olho única e exclusivamente no resultado das urnas em outubro de 2018. Nada de preocupação com um modelo de superação da crise, com a recuperação do protagonismo do Estado na busca de políticas públicas anticíclicas e estimuladoras da retomada do crescimento da atividade econômica. O fisiologismo pragmático prefere o gasto fácil e rápido, aquele que rende votos no curto prazo e facilita a montagem de palanques pelo país afora. O político profissional do baixo clero raciocina por uma lógica que é a que menos contribui para sairmos da crise. Ou seja, ele exige do Executivo exatamente o oposto do que o Brasil necessita atualmente.
Mas, por outro lado, segue o dilema de Temer enredado em seu nó fiscal. Como se manter firme com o muito pouco que ainda lhe resta da imagem de governo sério, que teria vindo para acabar com a bandalheira dos governos anteriores? Bom, pelo menos a equipe econômica merece nossa confiança e vai conseguir tocar as reformas necessárias e conduzir a política econômica sem o populismo fiscal que acabava com nossa economia. Só que não! Temer deverá dar uma bela enquadrada no sonho poético da turminha de Meirelles, pois depende de boa parte dos votos dos 513 deputados federais.