"O artista é o perturbador profissional da banalidade"

Em entrevista por e-mail para a Revista Cult, o dramaturgo e jornalista romeno Matéi Visniec, de passagem pelo Rio de Janeiro para o 15º Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), afirma que o futuro é decidido por um círculo restrito de indivíduos e figuras da globalização

Por Alessandra Monterastelli*

Matéi Visniec

Segundo o autor, que acabou de lançar no país a peça Migraaantes Ou Tem Gente Demais Nessa Merda de Barco ou O Salão das Cercas e Muros, baseada em notícias reais sobre as dificuldades vividas por migrantes que tentam chegar à Europa, “os arquitetos do nosso futuro” são banqueiros, militares, publicitários e políticos, enquanto escritores, filósofos, poetas, artistas e professores são excluídos da mesa em torno da qual poderosos decidem os rumos da humanidade.

"O futuro é decidido por um círculo restrito de indivíduos e figuras da globalização", diz o dramaturgo e jornalista romeno naturalizado francês Matéi Visniec, para a Cult. Os “arquitetos do nosso futuro”, afirma, são banqueiros, militares, publicitários e políticos, enquanto escritores, filósofos, poetas, artistas e professores são excluídos da mesa em torno da qual poderosos decidem os rumos da humanidade.

O autor, com 21 peças publicadas no Brasil, usa a poesia e doses de humor ácido para explorar o mundo e as contradições do ser humano.

Visniec reforça o papel do artista no debate político e social. Segundo ele, o teatro é um espaço de debate encorajador e gratificante para o espírito, já que permite explorar, de maneira diferente, os problemas da sociedade contemporânea. “Frente à complexidade de certos problemas, a análise dos políticos é nula, o aviso de especialistas se mostra insípido e inoperante e o olhar dos sociólogos é frio. O artista, o comediante, o diretor encenado, o poeta pode trazer um olhar fresco sobre a atualidade. Podem contribuir, às vezes com as ferramentas do humor e da poesia, para chegarmos mais próximos ao coração dos problemas”, afirma o romeno. Ele ainda reitera que sempre confiou na força do olhar peculiar do artista, que seria menos impregnado de ideologia, menos submisso a pressão midiática e mais livre e desinibido: “eu milito para que o artista possa se sentar a essa mesa onde nós tentamos construir o futuro e compreender as dificuldades do presente. O artista é indispensável porque é o perturbador profissional da banalidade, da monotonia, do dogmatismo e do pensamento politicamente correto.

Matéi afirma que a crise da imigração mostra os limites da democracia na Europa e os limites do pensamento humanista. Ao concordar que esse é um problema desencadeado também pelo capitalismo, o dramaturgo diz que o sistema socioeconômico “descarrilhou em uma forma de autocelebração contínua; a lógica do consumo projeta uma falsa imagem nos países pobres ou em via de desenvolvimento que, forçosamente, ‘sonham’ em integrar-se ao modelo ocidental de ‘felicidade’. Esse modelo único de consumidor ‘feliz’ substitui o pensamento crítico e a lucidez”.

Quando questionado sobre a importância da arte e do teatro diante da sociedade do entretenimento, Visniec declara que elas impedem a “total lavagem do cérebro” pela indústria do entretenimento, cada vez mais dominante e com uma linguagem única; ele usa como exemplo a indústria cinematográfica de Hollywood, e aponta como saída para a educação a preservação da identidade cultural, porque seria nesta que reside o espírito crítico.

A peça

“Eu poderia dizer que essa peça foi escrita em colaboração entre o jornalista que vive em mim e o escritor que vive em mim. Cada um a coletar à sua maneira informações. Em todas as minhas peças eu exploro o mundo e as contradições do ser humano com ferramentas não-científicas, como a poesia e o humor ácido”, conta Visniec, e completa: “quando o jornalista que vive em mim está impressionado com o sofrimento das pessoas, o escritor que está em mim também se coloca a questionar sobre o absurdo do sofrimento. O jornalista vê tudo depois da injustiça, mas o escritor também vê o lado grotesco da própria injustiça”.

Durante a encenação há uma denúncia, de forma metafórica, à tendência das pessoas de se cercarem de farpas, de se enclausurarem por medo do outro; o autor contou ficar surpreso como quase todos os edifícios do Rio de Janeiro são protegidos por grades e sistemas de segurança. “Tudo que eu posso dizer é que a realidade é, às vezes, mais forte que a ficção”.

Política

Visniec conta ainda à Cult que, segundo ele, os partidos políticos têm a tendência de se tornarem, em todo lugar, clãs rivais, sem ideologias e sem projetos. “É preciso começar a introduzir a democracia no interior dos partidos políticos. Nós vivemos nessa realidade inacreditável: a vida democrática é povoada de partidos que funcionam de uma maneira ditatorial. Cada partido tem a tendência de tornar-se o produto de um guru e de seu grupo mais próximo, uma espécie de propriedade pessoal, uma estrutura piramidal que não permite a liberdade de pensamento e nem serve para o cidadão”. Hoje em dia a democracia estaria fatigada, usada, roída pelo dinheiro, desfigurada pelos bufões da política, esvaziada de sentido por causa do pensamento politicamente correto.

“Há urgência de reinventar o debate democrático de modo que o cidadão não se torne um consumidor dócil”. Em crítica a esquerda, o autor argumenta que, devido a globalização acelerada, esta perdeu sua massa gravitacional, o proletariado no sentido marxista teria desaparecido, e a consciência de classe não carrega mais o ímpeto revolucionário. “Em minha peça eu faço um pouco a análise dos tiques da linguagem política. Desde minha infância romena (à época do comunismo) eu me forjei uma espécie de bússola interna. Assim que ouço um político falando, eu já sei quando ele vai falar sem dizer nada. Minha bússola me adverte e me impele a denunciar esse tipo de abuso e agressão à inteligência dos outros”.

Por fim, Visniec acredita que, devido a onda de conservadorismo global, o mundo regressa para uma paisagem humana, econômica e cultural desfigurada. Contudo, termina a entrevista esperançoso; “o escritor que vive em mim diz que o homem sempre teve a força para saltar, que um renascimento geral é possível, que um recomeço da civilização poderia acontecer”, e completa: “é por isso que eu continuo a escrever”.