Publicado 26/07/2017 18:19
Quando se fala das origens do capitalismo, geralmente as bases teóricas usadas são Marx e Foucault – homens que estudaram as formas pelas quais o sistema se impôs sobre a sociedade e sobre os corpos, respectivamente. Uma mulher, no entanto, notou que há algo faltando nessas análises: um olhar sobre o feminino.
Trata-se da historiadora italiana Silvia Federici que passou trinta anos em busca desse feminino ausente. A conclusão de seus estudos aparece em Calibã e a bruxa (2004), livro que investiga o que houve com as mulheres durante a lenta e gradual instalação do capitalismo – e que coloca a caça às bruxas como o grande evento responsável por aniquilar a participação, a força e a resistência femininas, que até então eram comuns nas comunidades praticamente do mundo inteiro.
Treze anos depois, Calibã e a bruxa ganha uma edição em português, graças aos esforços das mulheres do Coletivo Sycorax, de São Paulo. Em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e com a revisão de diversas mulheres nas redes sociais, elas passaram meses no processo de tradução até chegar no livro de 460 páginas repleto de ilustrações e gravuras do período medieval.
Silvia Federici participou do evento de lançamento, que aconteceu ontem (20), no centro de São Paulo. Ela falou sobre sua obra, explicando como a caça às bruxas lançou as estruturas para a construção da exploração capitalista – e como esse tipo de violência ainda acontece nos dias de hoje.
Em Calibã e a Bruxa, Federici pinta um quadro do feudalismo muito diferente daquele explicado à exaustão nas salas de aula e nos livros didáticos. “Não foi um período monótono, com suas damas e cavaleiros. Pelo contrário: havia muita luta, porque as pessoas percebiam que estavam sendo afastadas da terra e de suas vidas comunitárias naquele tempo que viria ser reconhecido como um embrião do capitalismo”, disse, durante o lançamento.
Até aquele momento, existiam mulheres com acesso à terra: eram lavradoras, pedreiras, parteiras e curandeiras. Mulheres que possuíam conhecimentos sobre ervas e sobre a natureza, e que, principalmente, tinham autonomia sobre seus corpos, decidindo elas mesmas sobre a gravidez ou o aborto. “Ali, os processos reprodutivos estavam em pé de igualdade com a produção”, afirmou.
A caça às bruxas, então, teria vindo como uma forma de sequestrar das mulheres toda a autonomia de que desfrutavam. As “bruxas”, postas como “servas do diabo”, eram todas mulheres sábias, independentes, irreverentes e muitas vezes pobres e solteiras. Enquanto morriam nas fogueiras, queimava junto com elas a resistência ao incipiente capitalismo.
“Ocorreu assim, muito lentamente, uma separação da produção e da reprodução, e uma hierarquização da divisão sexual do trabalho”, diz Federici, explicando que, enquanto as mulheres eram condenadas como bruxas ou relegadas ao lar, os homens passaram a trabalhar fora de casa e a receber um pagamento por isso. O que sobrou para as mulheres, então, foi o trabalho reprodutivo – ter filhos, ou, em outras palavras, reproduzir a mão de obra.
“O grande problema é que a reprodução dentro do sistema capitalista não é vista como um trabalho, mas como um dom natural, biológico”. Por isso, as mulheres foram, pouco a pouco, afastadas do trabalho e tornando-se dependentes dos homens, já que eram eles ganhavam dinheiro. Por ter sido implantada de forma tão gradual, a opressão feminina e seu afastamento do trabalho passaram a ser vistos como normais, quando, na verdade, “eram bases criadas para o sistema capitalista, e que funcionam até hoje”.
Para a historiadora, a caça às bruxas é um mecanismo que se repete, ainda que com outras roupagens, sempre que o capitalismo passa por alguma crise e precisa se reafirmar. No livro, ela cita como exemplos a perseguição e catequização dos povos nativos durante os processos coloniais na América e na África, os processos de escravidão, a Guerra Fria e, atualmente, a crescente violência contra mulheres, negros e grupos LGBT, no que ela chama de um processo de “colonização global”.
“Estamos acostumados a pensar na caça às bruxas como algo que já passou, mas sempre que o capitalismo bambeia, voltamos a experimentá-la. É uma história do presente”, coloca.
Otimista, porém, Federici diz que sempre houve resistência às imposições capitalistas – durante a primeira caça às bruxas, por exemplo, muitas mulheres capturadas pelos tribunais preferiam morrer a delatar outras “bruxas”. Hoje, ela vê que essa resistência persiste: “Quando vejo mulheres unidas, trabalhando juntas para traduzir um livro sobre resistência feminina, sei que a força dessas bruxas ainda está viva.”