Publicado 25/07/2017 11:44
Na primeira parte da entrevista com Dora Incontri, a especialista falou sobre seu trabalho na Universidade Livre Pampédia, da qual é coordenadora-geral, assim como sobre as pesquisas acerca das ideias educacionais de autores como Jan Comenius, Jean-Jacques Rousseau, Johann Heinrich Pestalozzi e Hippolyte Leon Denizar Rivail.
Nesta segunda parte da entrevista, a pedagoga continua a tratar dos assuntos acima, mas aborda também a Aprendizagem Socioemocional e trata dos problemas da educação brasileira atual.
CartaCapital: Você entende que a chamada Aprendizagem Socioemocional representa uma parte importante do que já propunham Comenius, Rousseau, Pestalozzi e Rivail?
Dora Incontri: É preciso muito cuidado com discursos pedagógicos que pretendem apresentar resultados numéricos e “evidências científicas”. Educação é um processo complexo, multifacetado e não mensurável, que tem a ver com amadurecimento psíquico, desenvolvimento ético, desabrochar de talentos pessoais e, segundo esses clássicos como Comenius, Rousseau e Pestalozzi, também com a capacidade de transcendência espiritual.
Tudo isso não é apreensível em tabelas e gráficos, em números e desempenho. A educação só vai mostrar seu resultado amplo, profundo, humano, com o tempo, numa perspectiva histórica (quando se trata de uma coletividade) e numa perspectiva de vida (quando se trata de um indivíduo).
As propostas de Aprendizagem Socioemocional, que aparentemente pretendem resgatar os aspectos negligenciados pela educação meramente cognitivista, precisam ser analisadas se não estão fazendo parte de um projeto de mascaramento da educação tradicional, para melhor se obter resultados comportamentais e mercadológicos dos alunos.
Algumas pessoas que trabalham com isso vêm das áreas da economia e da administração e sempre desconfio quando pessoas dessas áreas querem meter o bedelho na educação. Acabam tendo um pensamento muito simplista, condicionante, esquematizado, que se quer aplicar ao mesmo tempo em escolas e empresas… ou seja, perde-se a vitalidade, a complexidade, a filosofia da educação e a possibilidade de que ela se torne um caminho de mudança social.
Nessas mãos de economistas e administradores, a educação fica atrelada ao sistema econômico capitalista. Muito mais próximo desses clássicos que trabalho – Comenius, Rousseau e Pestalozzi – está Paulo Freire, que tem uma dimensão mais humanista e social em sua proposta. Digamos que são educadores que estão mais à esquerda… porque querem propor uma educação emancipatória.
E esses autores economistas, administradores, gestores estão mais à direita: não questionam a educação como mantenedora do status quo.
Um dos grandes problemas da educação seria o fato de ela ter se artificializado em torno da busca de êxito nos testes, como a Prova Brasil, o Enem e os vestibulares, em lugar de desenvolver as faculdades naturais (capacidades) dos seres humanos?
Sim, essa é uma das questões. Isso combina com a pergunta acima. Educação não se mensura. E quando todo o sistema é direcionado a provas, que nada medem, pois os alunos podem estudar para elas e depois de alguns dias esquecerem tudo, eis que a educação não é educação.
É preciso definir, então, o que entendemos por educação: é o despertar de uma consciência para si mesma. É, como dizia Platão, abrir os olhos da alma. E favorecer a autoeducação, para que o indivíduo se construa, se conhecendo, se desenvolvendo em todos os sentidos: cognitivo, social, afetivo, estético, ético, político, espiritual… E não condicionar alguém a responder perguntas fechadas.
O desenvolvimento da moral parece ser algo essencial hoje, sobretudo no Brasil, comprovadamente repleto de corrupção, e não somente no setor público. Como desenvolver a moralidade dos educandos?
Eu diria que há três caminhos que necessariamente se completam: afeto, exemplo e diálogo. Só pode ser bom e honesto quem é genuinamente amado, cuidado, acarinhado, valorizado em sua essência humana – e isso tem que acontecer desde o ventre materno.
Segundo, a gente só acredita no bem, vendo e conhecendo pessoas que fazem o bem e que são corajosas para viver seus princípios morais. Pais, mães, professores, pessoas significativas na vida das crianças e adolescentes precisam ser inspiradores. Não é por sermões, regras e castigos que se ensina o que é certo. É pela vivência.
Nesse sentido também, dirijo uma coleção pela Editora Comenius, chamada Grandes Pessoas. São livros para crianças e adolescentes, que contam a história de vida de personalidades que fizeram a diferença no mundo. Pessoas de diferentes épocas, diferentes atuações, diferentes religiões. Por exemplo, Gandhi, Jesus, Buda, Bach, Bezerra de Menezes, Madre Teresa de Calcutá, Mandela, etc.
Precisamos recuperar para as novas gerações a confiança no ser humano. Mostrar que a vida pode ter sentido (e só terá sentido) se for uma vida de contribuição à sociedade, ao próximo, de fidelidade a altos ideais e a princípios éticos. E, por fim, tudo isso precisa vir acompanhado de um genuíno e profundo diálogo. As crianças, os adolescentes e os jovens precisam ser ouvidos e precisam de atenção, de olhos nos olhos.
O que falta para alguém que dedica a sua vida à ganância da corrupção? Falta-lhe, sobretudo, saber e sentir que o amor de outro ser humano é muito melhor que dinheiro. E o amor pela humanidade nos faz muito mais felizes do que milhões de dólares num banco suíço.
É preciso contagiar nossos filhos e netos com humanismo, idealismo – para nos contrapormos a essa sociedade em que só vale o ter. Mas, se dedicamos a vida a conquistas materiais e nem temos tempo de olhar para eles; então, eles crescerão pensando que o que importa é ganhar e não conviver e amar.
Como trabalhar a espiritualidade dos educandos sem esbarrar nos preconceitos religiosos?
Na verdade, esse é um dos trabalhos principais a que tenho me dedicado pessoalmente, em parceria com Alessandro Cesar Bigheto, que tem vários artigos e obras comigo, e é também uma das propostas centrais da Universidade Livre Pampédia.
Já realizamos dois congressos internacionais no Centro de Convenções Rebouças sobre Educação e Espiritualidade. Primeiro, é preciso dizer que oscilamos entre dois extremos perniciosos em relação à espiritualidade na educação: de um lado, a tentativa de suprimi-la, ignorá-la, como se fosse possível fazer isso. Não é. O ser humano tem uma dimensão espiritual; a maioria do povo brasileiro e da população terrestre cultiva alguma forma de espiritualidade, esteja vinculada ou não a uma religião específica.
O outro extremo é a confessionalidade, a doutrinação, a imposição de uma religião específica ou de uma doutrina, como foi feito, por exemplo, na União Soviética com o materialismo histórico.
Temos trabalhado uma educação plural e inter-religiosa. Trata-se de recuperar a dimensão espiritual do ser humano, respeitando as diversas formas pelas quais ela se manifesta. Isso promove a tolerância e é um antídoto ao fundamentalismo de qualquer espécie.
Por exemplo, na Universidade Livre Pampédia estamos fazendo esse ano uma série de encontros online, que tratam de Tradições, Livros e Espiritualidade. Cada encontro analisa um livro e/ou uma tradição: os Analectos de Confúcio, o Bhagavad Gita, o Alcorão, a Torá, e Evangelho segundo o Espiritismo, as tradições afro, indígenas, etc.
Mas, também temos cursos sobre ateísmo, marxismo, anarquismo e outros. Ou seja, isso é ensinar tudo a todos: dar voz a todas as perspectivas de espiritualidade ou não.
Quais resultados concretos a senhora já tem visto na Universidade Livre Pampédia e em outros projetos semelhantes pelo Brasil?
Como disse acima, educação não dá resultados concretos, porém faz seres humanos melhores, mais engajados, mais cultos, mais idealistas, mais comprometidos.
Isso temos observado entre as pessoas que frequentam nossos cursos e passam por nossas atividades. Muita gente que modificou roteiros, foi para outras áreas profissionais, que dão menos importância ao dinheiro, mas concretizam sonhos e realizam talentos. Muitas pessoas publicaram livros, textos, teses, entraram em projetos, produziram arte, a partir do contágio de nossos livros, de nossos cursos, de nossos projetos. E isso é resultado.