Rosemberg Cariry: Dois bicos de luz para Cego Aderaldo
"Deixou-nos Aderaldo uma lição. Que nós, cearenses, somos um povo do caminho, em trânsito, em construção, sempre em busca de novidades, sem tempo para reconstruirmos as nossas heranças de humanidades".
Por *Rosemberg Cariry
Publicado 19/07/2017 10:07 | Editado 04/03/2020 16:23
Em tempos de fama, com fotos estampadas nas primeiras páginas dos mais importantes jornais do País, com prestígio entre artistas, políticos e autoridades nacionais, o Cego Aderaldo começou a ser reconhecido também em sua cidade de adoção, Quixadá. Em 1953, a Prefeitura da cidade quis fazer sua parte nesse esforço de reconhecimento e determinou que a residência do Cego Aderaldo tivesse energia elétrica, com “dois bicos de luz” fornecidos pelo poder público. A luz serviria para que os filhos de criação do Cego Aderaldo pudessem estudar e, à noite, ler os livros preferidos do velho cantador.
“Alegria de pobre dura pouco”, como diz de forma sarcástica um provérbio popular em voga ainda hoje no Ceará. Vendo o Cego Aderaldo com energia elétrica em sua casa, alguns invejosos da cidade começaram a fazer uma campanha para que a mesma fosse cortada.
Argumentavam os “fuxiqueiros de plantão”, em nome da “moralidade pública”, que o Cego Aderaldo ficara rico e famoso com a sua viagem ao Rio de Janeiro e São Paulo e que não precisaria das benesses da municipalidade.
Zelosa da sua reputação, a Prefeitura de Quixadá mandou, sem mais demora, cortar o fornecimento de luz na casa do Cego Aderaldo. O acontecimento é manchete nos jornais de Fortaleza. O jornal Unitário, de 21 de junho de 1953, acusa o recebimento de uma carta intitulada “Sem Luz o Cego Aderaldo”. Para quem já sofrera tantas agruras na mão do destino, Cego Aderaldo possuía a sabedoria serena e espirituosa que lhe permitia tirar graça e fazer ironia dos pequenos problemas cotidianos. Aos jornais, declarou-se conformado: “Cego não precisa de luz mesmo, assim como o mar não precisa de água”. Desse jeito, ele ironiza a situação. No entanto, vivia ele em situação pouco auspiciosa. A sua tropa de burros havia morrido de fome e sede, ele estava sem fazer cantorias ou projetar o seu cinema, por causa da crise causada pela seca. Passava necessidades.
Sobre a seca, Cego Aderaldo havia escrito: “E dona Fome na frente,/ Na cadeira do trapiche, / Dizendo: – No Ceará / Tudo é fofo e nada é “fixe” / Juro que aqui nesta terra / Não vinga mais nem maxixe”.
Os versos “No Ceará tudo é fofo e nada é fixe (fixo)” podem ser traduzidos com a seguinte compreensão: no Ceará, nada tem raízes profundas e não se fixa nem na terra nem na alma. Ora atingido por uma natureza inclemente que força o cearense a arribar da terra natal, ora deflagrando-se em guerras instintivas pela sobrevivência, quase sempre governado por uma classe dominante atrasada, egoísta e impiedosa, o cearense construiu a sua história sob o signo da dor e da transitoriedade.
Deixou-nos Aderaldo uma lição. Que nós, cearenses, somos um povo do caminho, em trânsito, em construção, sempre em busca de novidades, sem tempo para reconstruirmos as nossas heranças de humanidades. O passado (de fomes e privações) nos assombra, e o futuro é incerto, então nos resta o agarrar-nos ao presente de forma desesperada, inclusive pelo paradoxo de ser o “presente” aquilo que flui e deixa de ser.
*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor.
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