Publicado 17/07/2017 18:06
Depois de reforçar o protagonismo do Ministério da Fazenda e do Banco Central, pressionar pelas reformas trabalhista e previdenciária e reduzir as metas de inflação, o governo pretende agora filiar o Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A proposta foi encaminhada em 3 de junho à entidade, que reúne 35 países adeptos da assim chamada economia livre de mercado.
As iniciativas são apresentadas como urgentes e indispensáveis para tornar o País mais atraente ao investidor estrangeiro. O Brasil seria uma das economias mais fechadas do mundo, reverbera o mantra refutado pelos estudos sérios sobre o assunto. Dessa falsa premissa conclui-se que seria necessário ampliar a abertura comercial, adotar regras ainda mais favoráveis aos investimentos estrangeiros e não discriminar as empresas de outros países nas compras governamentais para se desenvolver.
A realidade no mundo industrializado é, entretanto, o inverso do que se sustenta, conforme mostram dados eloquentes do próprio governo. Segundo levantamento do Ministério das Relações Exteriores, feito por solicitação do deputado Carlos Zarattini, do PT, os países avançados, enfáticos defensores da abertura contínua e indiscriminada dos emergentes e dos subdesenvolvidos, são altamente seletivos na aceitação de recursos externos.
“Os dados mostram claramente a existência, nas economias centrais, de um protecionismo muito grande. Toda a argumentação de que eles são abertos e nós fechados não tem substância alguma. Apesar disso, o Brasil praticamente iguala a empresa estrangeira à nacional e o governo quer ainda alterar a lei do espaço aéreo, derrubar o limite à participação externa em empresas aéreas e abolir a proibição da venda de terras para não brasileiros.”
Entre os mais seletivos estão os Estados Unidos, que restringem o ingresso de recursos externos destinados à aquisição de terras, mineração, energia, telecomunicações, transporte marítimo e aeronáutico, serviços financeiros e segurança. As empresas estrangeiras que quiserem atuar na exploração de petróleo têm de criar filial nos EUA controlada por cidadãos de países que estendam tratamento recíproco às firmas estadunidenses. O “Buy American Act”, de 1933, manda dar preferência a produtos e materiais de construção doméstica nas compras governamentais.
O Canadá controla o investimento externo em geração e distribuição de energia elétrica, mineração, imóveis, serviços financeiros e construção civil. O Estado tem forte presença em diversos setores e há elevado grau de regulação. Há restrições nas licitações realizadas por empresas estatais e a participação estrangeira só é admitida excepcionalmente.
Todo investimento externo na Alemanha é precedido de avaliações quanto ao seu risco para a economia e a segurança do país, e é monitorado.
O governo francês pode controlar todo o movimento de capitais com o exterior, para garantir a defesa dos interesses nacionais. Limita a participação na exploração de recursos naturais – incluídas as fontes energéticas –, no fornecimento de água e de energia elétrica e nas áreas digital, de transporte público, comunicação, saúde e segurança. O Código Monetário e Financeiro prevê a possibilidade de repatriação de ativos de estrangeiros na França.
Na Itália, o princípio da reciprocidade é o parâmetro para a determinação do acesso do investimento estrangeiro aos diversos setores. O ingresso de recursos vincula-se, assim, à receptividade dos outros países à participação italiana nas suas economias. A aprovação está subordinada ainda a requisitos de segurança nacional, idoneidade e impacto doméstico.
O Japão controla o fluxo de recursos externos direcionados à propriedade de terras, agricultura, floresta e pesca, petróleo, mineração, telecomunicações, transporte aéreo e marítimo. A mesma diretriz é adotada nas áreas de segurança nacional, serviços de eletricidade, gás e água, radiodifusão, transportes e produtos biológicos.
A Austrália, para citar um exemplo de país fora do grupo das economias centrais, controla o capital externo nos setores de mídia, telecomunicações, transportes, defesa, alimentos e infraestrutura. Em 2015, o governo vetou a compra, por duas empresas chinesas, de metade da empresa Ausgrid, de geração de energia elétrica.
O contraste com a postura brasileira não poderia ser maior. Nos últimos dois anos, aceitou-se passivamente, sem determinar condições nem exigir contrapartida, a aquisição da maior parte do setor elétrico local por empresas chinesas, com a gigante estatal State Grid à frente.
Economias emergentes bem-sucedidas mostram que o melhor caminho é o oposto àquele seguido pelo Brasil. A China controla de perto os investimentos estrangeiros na agricultura, em alta tecnologia e inovação, na manufatura avançada, em conservação e novas fontes de energia, proteção ambiental e modernização do setor de serviços. As participações externas nessas áreas são encorajadas, mas subordinadas a regras de transferência de tecnologia e o acesso ao mercado obedece a um conceito amplo de segurança nacional.
A situação do Brasil diante dos 28 países de todos os continentes abrangidos pelo levantamento é humilhante. Segundo o professor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Gilberto Bercovici, especialista em direito de mineração, “pode ser que ainda exista alguma barreira em um setor específico, mas, desde os anos 1990, a política é não fixar restrições. O que é muito ruim, pois o mundo todo controla o investimento externo, menos o nosso país”.
Um exemplo gritante está na área de petróleo e gás, justamente uma das mais protegidas no exterior. “A Statoil, estatal norueguesa, comprou recentemente um dos principais campos do pré-sal, o de Carcará. Será que a Petrobras pode comprar algum campo de petróleo na Noruega?”
Outro exemplo é o acordo de acionistas da Vale para pulverização do controle do seu capital, o que eliminará qualquer possibilidade de ascendência do governo sobre a empresa. Hoje, a mineradora é controlada por fundos de pensão, Bradespar, Mitsui e BNDESpar, reunidos na empresa Valepar. Por se tratar de um investimento estratégico, aquela decisão é inaceitável.
“Nos Estados Unidos, na Europa, na Austrália e na África do Sul, uma mineradora proprietária da maior mina de ferro do mundo, que é Carajás, jamais poderia fazer o mesmo. O pior é que o BNDES e os fundos de pensão concordam. Agora, a empresa toda poderá ser comprada por uma Anglo American, uma Rio Tinto”, alerta o professor.
“Nenhum país trata seus ativos estratégicos como o Brasil. Prevalece a visão de que, se é público, é de ninguém”, sublinha Bercovici. Entre vários casos de recusa de investimento externo em defesa de interesses nacionais, cita a proibição, pelo governo dos Estados Unidos, da compra da petrolífera Unocal pela China National Offshore Oil Corporation, em 2005, e da aquisição de seis portos, incluído o de Nova York, pela Dubai Ports World, em 2006.
“Outros países restringem o investimento externo porque têm um projeto nacional, que nos falta há pelo menos três décadas. É preciso definir o papel desses recursos a partir do que se deseja para o Brasil. Deve-se estimular seu ingresso nas áreas em que temos carências tecnológicas, a exemplo dos setores de ponta. É fundamental garantir a influência nas decisões das empresas transnacionais quanto à localização e inovação, entre outros aspectos”, reforça Antonio Corrêa de Lacerda, professor de Economia da PUC de São Paulo e sócio-diretor da ACLacerda Consultores.
É necessário ter cautela, diz, para não nos tornarmos excessivamente dependentes. “Todo capital externo, inclusive o investimento direto, gera passivos permanentes na forma de remessas de royalties, lucros e dividendos. Isso exige planejamento para gerar receitas em dólares e fazer frente a tais compromissos. Não é a soja, ou o minério de ferro, que vai pagar isso. É indispensável termos exportação de elevado valor agregado e é importante que as empresas que aqui atuam também exportem.”