Publicado 10/07/2017 18:59
Dizem os jornalões que o "mercado" decidiu desfazer-se do mamulengo que instalou no Palácio do Planalto. Já era tempo. Envolvido em sérios atos de corrupção, ademais de incompetente na gerência do papel que lhe foi atribuído, alvo de denúncias da Procuradoria-Geral da República e aguardando as delações de seu correligionário Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro, o ainda presidente Michel Temer já teria, como esperado, se tornado peça descartável, carga pesada e inútil a ser lançada ao mar para que o essencial, as "reformas" do interesse das classes dominantes, aquelas que só atendem ao grande capital, não sofram mais abalos, na medida em que a originalmente frondosa base parlamentar do governo se esvai, na medida inversa em que cresce a rejeição popular.
O grande capital, ademais de jogar às urtigas seu preposto de hoje, ainda dita o que quer como modus operandi da sucessão, que deve ser operada "sob segurança" (isto é, sob sua vigilância e sob seu comando), colocando o insosso Rodrigo Maia na Presidência, mediante eleição indireta, pelo Congresso, e já adianta a ordem capital: a equipe econômica terá de ser mantida. Essa ameaça, a solução prussiana, por cima, confirma o permanente exílio do povo, afastado uma vez mais das decisões políticas que lhe dizem respeito, pois as classes dominantes, ou o "mercado" (o que quer que seja isso), não se conciliam com a democracia representativa, cujo fundamento é o voto.
A manobra anunciada, mera troca de peões, não altera a qualidade da crise de representação que corrói a democracia, e não livra nem o Executivo nem o Legislativo da insanável ilegitimidade que os une como irmãos germanos. A mudança de Manuel por Joaquim é a segurança de que a ordem vigente não se altere, é a troca que se faz para que a mudança fundamental, política, com a derrota do neoliberalismo conservador, não se opere. E para que tudo permaneça como está é fundamental afastar o povo desse processo, espaço da ação exclusiva do grande capital e de seus interesses, que jamais se confundiram como os interesses majoritários da sociedade brasileira, na contramão dos quais sempre operaram os donos do poder..
Em palestra para empresários paulistas, o deputado Rodrigo Maia, o príncipe anunciado, assegurou aos seus ouvintes que a Câmara que preside estava a serviço do mercado. Esta é sua credencial, este é seu currículo.
O bloco no poder, que tomou de assalto o Estado e a economia, realiza, sem mandato, uma verdadeira razzia contra os interesses populares: as ‘reformas’ trabalhista e da previdência são apenas tópicos, graves mas apenas itens destacados de um planejamento de longo prazo e mais largo, que visa à destruição de qualquer ideia de Brasil-potência, de país desenvolvido e independente, e, por tudo isso, inclusivo. Daí o primado do monetarismo, o desinvestimento, a destruição da ciência e da tecnologia, o abandono do ensino público, a degradação das infraestruturas, o desemprego e a recessão, o crescimento do subemprego e do lupenato que a terceirização aprofundará, a queda generalizada de renda ao lado de sua maior concentração. Diz a manchete d´O Globo de domingo (9/7/17): “Retrocesso social. Crise pode levar Brasil de volta ao mapa da fome”.
O Brasil industrial sai de cena para que nos tornemos produtores de grãos e matérias-primas, para exportação. O esforço visando a acentuar a personalidade sul-americana cede lugar a cediças, antiquadas, retardadas concepções de ‘segurança hemisférica’, que não escondem o servilismo ideológico e o velho e sempre presente sentimento de ‘vira-lata’, tão entranhado nos valores da burguesia brasileira.
Mas é preciso dizer que essa política antinacional e anti-povo não é obra pura e exclusiva de um Executivo a serviço da luta de classes, representando os interesses do capital rentista: esta é, porém, uma política compartilhada pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário, apoiada na grande imprensa e festejada pelo capital internacional.
Nessa programada defenestração de Temer e nomeação de Rodrigo Maia (o "Botafogo" das listas da Odebrecht) o Congresso, mais uma vez, será chamado para homologar a conciliação engendrada pelo alto, e uma vez mais, distante dos interesses da nação e da vontade popular, dará moldura constitucional para mais um golpe, dentro do golpe em progresso inaugurado com a deposição da presidente Dilma Rousseff. Enquanto 85% da população brasileira pedem eleições diretas – a única saída para o impasse institucional no qual nos estamos afogando –, o Congresso brasileiro está sendo convocado pelo ‘mercado’ para eleger um novo presidente, o qual, independentemente de nomes (embora a hipótese Rodrigo Maia seja um agravante) nascerá impossibilitado de governar, carente de legitimidade e de representação.
Com ele, e por isso mesmo é o delfim, permanecerá a política econômica terceirizada e entregue ao mercado financeiro, e, assim, antidesenvolvimentista e concentradora de riqueza e renda. Tanto quanto o atual governo, o eventual produto de eleições indiretas, seja quem for, será um governo ilegítimo por natureza (pois carece da consagração do voto popular) e ilegítimo ainda mais pois sua assunção será devida a um parlamento desonrado pelo controle que sobre ele exerce o poder econômico, seu grande e ouvido eleitor.
Até quando a República – sempre por firmar-se – poderá conviver com poderes abastardados, a saber, um Executivo na contramão da soberania popular, um Legislativo desnaturado pelo poder econômico (que degenerou o processo eleitoral e deslegitimou o mandato), e um Judiciário que não respeita a Constituição e não promove a segurança jurídica? Aliados em seus erros, esses poderes contribuem para a desmoralização da política, sem a qual não sobrevive a democracia representativa, construindo em nosso povo o desalento, a desesperança que destrói o sentimento de nação.
O descarte de Temer interessa a todos, mas ao povo e ao país não interessam nem a sucessão entre iguais, nem a via indireta que trapaceia a vontade popular, nem muito menos a manutenção dessa ordem neoliberal e autoritária que nos governa. O que o "mercado" propõe e os jornalões (seus porta-vozes) trombeteiam é a saída de Temer como jogada para poder salvar, aprofundando-o, o projeto conservador. Oferecem-nos os anéis de ferro para conservarem os dedos sujos.
Nossos parlamentares, em sua maioria, são acionados pelo poder econômico que financia as campanhas eleitorais, financia os mandatos e cobra resultados. Não há doações, mas investimentos que requerem dividendos. É assim que temos como ‘eleito’ um poder cego e surdo aos interesses populares. Assim, o poder econômico, os donos do dinheiro, aliado ao poder politico, degenera o processo eleitoral e torna maculado de ilegitimidade o mandato. Por isso, o povo não se sente representado pelos seus representantes, que, ilegitimados, não têm representação nem mandato, seja para proceder às reformas que estão aprovando, seja muito menos para eleger o presidente da República.
Na outra ponta, ao invés da consolidação do statu quo, o país necessita deter a desconstituição da economia nacional, a desconstituição da política, do Estado e da ordem constitucional, daí a urgência do ‘Fora Temer’, palavra de ordem-síntese para dizer fora o projeto conservador. A nação, que resiste ao atual regime, quer revogá-lo, desfazer sua política e refazer o projeto de Estado social, a partir da eleição de um presidente comprometido com os interesses majoritários da nação e de seu povo.
Esse projeto, inegociável, cobra eleições diretas e legítimas.
As mudanças são necessárias e urgentes, e exigem que o povo-massa retorne ao proscênio. Nenhuma solução de algibeira aplacará a crise. Ao contrário, a tendência é de seu agravamento. As consequências são imprevisíveis (e certamente indesejáveis), mas a História mostra que muitas vezes a anomia esconde a rebeldia, que explode quando menos se espera.
Nenhuma solução duradoura, repito, passará ao largo da legitimação do poder pelo crivo da soberania popular, e em face do jogo do Mercado, aberto, fica ainda mais necessário o pleito das Diretas Já, primeiro passo para a eleição de um presidente comprometido com o país. Mas, em qualquer circunstância, mesmo a imprescindível eleição direta para concluir o mandato surrupiado de Dilma Rousseff será sempre um ponto de partida para uma revisão constitucional apta a passar o país a limpo, revendo o processo eleitoral e as competências dos poderes, os republicanos, e aqueles outros, como o antidemocrático monopólio da comunicação.