Região da Luz em disputa: mapeamento dos processos em curso
Não é de hoje que a região da Luz, no centro de São Paulo, sofre pressões para torná-la mais um polo de expansão do capital imobiliário e seus produtos: centros culturais, condomínios residenciais de classe média, torres corporativas. Há várias décadas, entretanto, esse território popular, um dos bairros mais antigos da cidade, com arquiteturas preservadas, resiste a essas investidas, mesmo que isto tenha implicado em remoções, demolições e uso da violência.
Publicado 22/06/2017 21:02
As tentativas do Estado de promover essa expansão imobiliária foram inviabilizadas em função da combinação de quatro fatores:
1) A existência na área de patrimônio histórico tombado, o que impõe limitações a transformações muito radicais. Até 2013, quando esta foi suprimida, o próprio desenho do loteamento era tombado, já que a Luz era um dos últimos remanescentes dos bairros abertos no século XVIII em São Paulo, mesmo assim são dezenas de imóveis tombados pelos órgãos de defesa do Patrimônio Histórico municipal e estadual;
2) A propriedade fundiária fragmentada, decorrente de séculos de heranças e divisões de propriedades nem sempre totalmente concluídas;
3) A presença de população de baixa renda vivendo em cortiços, pensões e, mais recentemente, em ocupações organizadas;
4) A concentração, desde a década de 1990, de pessoas usuárias de crack e outras drogas que, ao longo dos anos, mudam de lugar, mas sem nunca sair da região. Essas mudanças de local do chamado fluxo sempre antecedem grandes ações de lacração e demolição que, ao cabo, só aumentam a concentração de dependentes químicos e a degradação do perímetro alvo destas operações.
Pelo menos desde meados dos anos 1990, o principal álibi para as ações do Estado na região é a eliminação da chamada cracolândia. No primeiro momento, a estratégia foi o fechamento de hotéis e pensões, que haviam se tornado naquele período espaços de produção do crack e, depois, refúgio para dependentes. Dezenas desses hotéis foram lacrados, fechados e demolidos pelo poder público, sob a justificativa do combate ao crime. E a cracolândia começou a ocupar as ruas…
Concomitantemente, o governo estadual impulsionou na região a política de âncoras culturais, com espaços como a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, em parceria com a Fundação Roberto Marinho, a Estação Pinacoteca e o Centro Paula Souza. O discurso naquele momento era que esses equipamentos iriam “revitalizar a região” e, consequentemente, atrair moradores e atividades de maior renda, o que não ocorreu.
A política usada foi a de estimular a instalação de empresas na região, com a oferta de incentivos fiscais, além de demolir ainda mais hotéis, tachados como pontos de tráfico, e aumentar a criminalização dos dependentes químicos. As demolições e, sobretudo, sua reutilização pelo mercado imobiliário para ali erigir seus produtos, porém, enfrentavam alguns dos obstáculos que apontamos: a estrutura fundiária fragmentada impedia a incorporação de grandes empreendimentos e, ao mesmo tempo, construía-se uma narrativa de necessidade de “limpeza da área”, eliminando a presença das pessoas com dependência química, cada vez mais criminalizadas.
Em 2005, a Prefeitura assumiu a frente dos processos de transformação com o projeto Nova Luz, que previa a utilização de um novo instrumento: a concessão urbanística. Por meio dela, seria concedido à empresa vencedora do processo de licitação o direito de desapropriar e demolir cerca de 30% do perímetro previsto no projeto, que incluía não só a região da Luz, mas também ruas de comércio da Santa Ifigênia, um pulsante centro comercial. A proposta era anunciada pela Prefeitura como uma forma de devolver à cidade aquele território ocupado pelos frequentadores da cracolândia.
Na prática, o Nova Luz iria remover famílias e comerciantes que estavam há gerações estabelecidos no bairro para dar lugar a grandes empreendimentos, voltados para um público distinto daquele que já estava na região. Graças à mobilização dos comerciantes da Santa Ifigênia e dos moradores, que se organizaram em torno do Conselho Gestor de uma das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) que existem no local, o projeto foi interrompido na Justiça.
Os comerciantes e a população residente na região conseguiram barrar o projeto. Mas algumas demolições e remoções já haviam ocorrido e tiveram como consequência uma nova mudança de local do fluxo – que chegou às ruas Helvetia, Dino Bueno, Cleveland e Barão de Piracicaba – e seu crescimento.
As ações que ocorrem na região a partir do dia 21 de maio deste ano, quando novamente um grande aparato policial foi usado para desbaratar a concentração de usuários de drogas, agora maior do que nunca, seguem a mesma lógica. A demolição de prédios (com gente dentro!) e o fechamento de pensões que oficialmente serviriam para combater o tráfico parecem resolver o problema da fragmentação das propriedades do local, já que a Prefeitura irá desapropriá-las à revelia de qualquer negociação. Como consequência, as ocupações de moradia estão lotadas de pessoas que perderam suas casas e vivem uma dupla violência: o medo do despejo a qualquer momento e as constantes violações de direitos promovidas pela polícia, que tem invadido imóveis e apontado armas inclusive para crianças.
Tudo isso para abrir espaço à parceria público-privada (PPP) Habitacional do centro, uma ação contratada pelo Governo do Estado de São Paulo para produção de 3.863 unidades habitacionais a famílias com renda de 1 a 10 salários mínimos. A prefeitura tem doado terrenos desocupados para a parceria, mas esta seria a primeira tentativa de, à força, abrir grandes lotes para os empreendimentos da PPP, promovendo remoção de famílias residentes. Ainda assim, o modelo da parceria não visa atender as famílias das pensões e cortiços afetados pelas intervenções. As unidades produzidas serão destinadas a pessoas que comprovem trabalho formal no centro expandido – o que exclui as famílias mais vulneráveis, sem emprego estável – e serão distribuídas por sorteio, sendo transferidas aos sorteados via financiamento, de acordo com o contrato já assinado entre a PPP e a empresa vencedora da licitação, a Canopus Holding.
É importante ressaltar que as áreas já demolidas, e as que estão na fila da demolição, estão localizadas em Zeis que, segundo o Plano Diretor, são destinadas a famílias de baixa renda. Dessa forma, se a produção de habitação via PPP é utilizada como justificativa para as demolições, de forma alguma representa uma alternativa aos moradores atuais da região, e se alinha mais a higienismo que a uma política de interesse social.
Além disso, a ação da Prefeitura desrespeita a lei ao não constituir um Conselho Gestor de Zeis com a participação de moradores e comerciantes locais, espaço que deve servir à discussão e debate para a elaboração de qualquer plano para a área, de acordo com o Plano Diretor. As demolições e lacrações ainda desrespeitam as normas referentes a patrimônios tombados e suas áreas envoltórias. Os conselhos municipal e estadual de preservação do patrimônio, Conpresp e Condephaat, precisariam autorizar previamente as demolições e mesmo os emparedamentos que ocorreram em imóveis na Dino Bueno, local de sobreposição de várias áreas envoltórias de prédios tombados.
O que fica evidente é que, em raros momentos da história da cracolândia, houve preocupação com a saúde e o bem-estar dos moradores da região e a melhoria de suas condições de vida, inclusive dos dependentes químicos. Em todo esse período, apenas os programas De Braços Abertos, municipal, e Recomeço, do governo estadual, parecem ter reconhecido a cracolândia como questão de saúde pública e assistência social, ainda que seja possível fazer crítica aos dois programas. E, à exceção dos equipamentos culturais que foram reformados pelo governo estadual e por entidades privadas (como o Museu da Língua Portuguesa, realizado pela Fundação Roberto Marinho por meio da Lei Rouanet), nenhum plano apresentou qualquer proposta de reabilitação do patrimônio arquitetônico e urbanístico do conjunto da região.
A maioria dos projetos impostos pelo Estado para o centro e, principalmente, para esse lugar, tem ou teve uma visão preconcebida: a ideia questionável de que se trata de um espaço vazio, sem vida, o que leva ao pressuposto da necessidade de revitalização – ou seja, de um projeto que nega a vida que existe a para trazer de volta a classe média e a elite por meio de empreendimentos imobiliários. Não é possível uma proposta que tenha como ponto de partida enxergar e valorizar a região como um território popular (é claro, com questões sérias a serem enfrentadas) e que possa construir, ao invés de impor um plano já definido, um processo democrático de mudanças em que a população que hoje ocupa a região, que mora e trabalha lá, seja protagonista?
O LabCidade iniciou a elaboração de um dossiê com mapas que caracterizam a região da Luz do ponto de vista urbanístico – mostrando, inclusive, que não se trata de um “vazio” demográfico e econômico. O trabalho aponta os vários projetos propostos para a área e seus perímetros, os imóveis tombados, os proprietários de imóveis da região, seus usos e os caminhos do fluxo ao longo do tempo. Trata-se de um trabalho ainda em andamento, mas que deverá alimentar a reflexão crítica de todos os moradores da cidade que desejam uma Luz democrática. Acesse o dossiê aqui.
Autores:
*Pedro Mendonça é estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP. Pesquisa parcerias público-privadas utilizadas como instrumento de implementação de projetos urbanos, especialmente as PPPs Habitacionais do Estado de São Paulo. Integra a equipe do ObservaSP desde 2015.
Pedro Lima é estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, bolsista de iniciação científica pela Fapesp. Pesquisa as políticas habitacionais no contexto das Operações Urbanas em São Paulo. Integra a equipe do ObservaSP desde 2014.
Isabel Martin é estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP e bolsista de iniciação científica apoiada pelo CNPq. Tornou-se pesquisadora no ObservaSP em 2015 com um estudo sobre planos de urbanização popular. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre o complexo imobiliário-financeiro na região metropolitana de São Paulo, com enfoque no instrumento dos fundos de investimento imobiliário, orientada pela professora Raquel Rolnik.
Gisele Brito é jornalista. Em 2013, foi condecorada com o 17° Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos, promovido pela Comissão da Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa de São Paulo, e com o Prêmio Compromisso com a Superação do Racismo e em Defesa da Igualdade, oferecido pela Afropress. Atualmente é bolsista do ObservaSP.
Raquel Rolnik é urbanista, professora de Planejamento Urbano da FAU USP e coordenadora do LabCidade. Livre-docente pela FAU-USP e doutora pela New York University, foi coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis, diretora de Planejamento Urbano da cidade de São Paulo, secretária de Programas Urbanos do Ministério das Cidades e relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. É autora dos livros O que é a cidade, A cidade e a lei, Folha explica São Paulo e Guerra dos lugares.