Clássico do Cinema Novo, Terra em Transe completa 50 anos
O primeiro plano-sequência de Terra em Transe, de Glauber Rocha, depois dos créditos sobre a tela negra, mostra a superfície ondulante do mar, na direção das ondas. Logo, o oceano encontra terra firme: um continente sombrio, no qual se vê primeiro um promontório, depois uma praia e, em seguida, uma massa escura e contínua. Ao fundo, tambores e cantos afro indicam que se está em algum ponto do Atlântico.
Por Luiz Antônio Araujo
Publicado 09/06/2017 12:57
O cenário confirma Capistrano de Abreu: “Nem o mar invade, nem a terra avança; faltam mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas consideráveis; os dois elementos coexistem quase sem transições e sem penetração; com recursos próprios o homem não pôde ir além da pescaria em jangadas”. O cearense fala do Brasil, e o baiano nos mostra Eldorado. As aparências enganavam naquele longínquo maio de 1967, um mês antes de os Beatles lançarem Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e cinco antes de Ernesto Che Guevara tombar em La Higuera, na selva boliviana.
Exibido pela primeira vez há 50 anos, Terra em Transe trazia as marcas de seu tempo e de seu lugar. Eldorado é idílica somente no nome. Quando a ação começa, ao som de uma batucada ensandecida, o governador Felipe Vieira (José Lewgoy), da província periférica de Alecrim, está recebendo um ultimato: renunciar em cinco horas ou ser deposto por tropas a mando do líder populista Porfírio Diaz (Paulo Autran).
O poeta e jornalista Paulo Martins (Jardel Filho) incentiva Vieira a rejeitar a chantagem e resistir. Vieira repele-o.
– Agora temos de ir até o fim – diz Paulo.
– Já disse, o sangue das massas é sagrado – responde Vieira.
Frustrado pelo líder em quem depositara esperanças de redenção, Paulo se retira com Sara (Glauce Rocha), a quem tenta convencer a abraçar a luta armada. O vulto de Paulo na praia, trôpego, com a metralhadora erguida, numa imagem que se funde com a de sua escrita (“Defunto, mas intacto”), é a síntese das quimeras de uma geração. Como muitos contemporâneos, o jovem Glauber fora derrotado em 1964 pela recusa daquele em quem mais confiara, o presidente João Goulart, em ordenar a resistência às tropas do general Olympio Mourão Filho. Envergonhada, a ditadura militar firmara-se e, a cada gesto de rebelião, endurecia-se. Encorajada por Fidel Castro e Che, desconfiada da passividade das massas desmoralizadas por seus chefes, a esquerda latino-americana e brasileira buscava atalhos para a redenção.
“Eu detestava todas as coisas apresentadas em Terra em Transe, filmei com certa repulsão. Lembro-me do que dizia ao montador: estou enojado porque não acho que haja um único plano bonito nesse filme. Todos os planos são feios porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre, de um falso barroco. O roteiro me impedia de chegar à espécie de fascinação plástica que se encontra em Deus e o Diabo na Terra do Sol”, escreveu Glauber em Revolução do Cinema Novo (1981).
Alegórico, Terra em Transe foi recebido por parte significativa do público como realista. Anti-herói por excelência, Paulo-Glauber foi saudado como exemplo. Almejando ser programático, Glauber-Paulo foi profético. Como em poucas ocasiões na história da arte brasileira e nenhuma na do cinema, a saga de Paulo, Vieira e outros deflagrou um efeito dominó de espelhos em que, ao final, criador, criaturas e espectadores pareceram ter trocado de identidade para sempre.
No dia 17 de maio de 1967, um debate no Museu da Imagem e do Som, no Rio, dissecou o filme e a época. Participaram Luiz Carlos Barreto (“É mais um marco na história do cinema”), Fernando Gabeira (“Foi realizado para uma minoria intelectualizada e que se supunha capaz de entender e interpretar suas alegorias”), Hélio Pellegrino (“A melhor coisa que se fez em cinema”) e Joaquim Pedro de Andrade (“Não é possível viver quando não se está disposto a morrer por uma ideia, por um amor, por um povo, por um amigo”). Em poucos meses, todos estariam encenando suas próprias versões do filme na vida real, nem sempre em consonância com os pontos de vista expressos no debate.
Fora do Brasil, Terra em Transe estava destinado a afrontar preconceitos. Os públicos europeu e norte-americano estavam acostumados a ver nas telas o Brasil rural e irredentista do Cinema Novo. Em vez disso, eram confrontados com uma tragédia neoplatônica em que os personagens desfiam longos manifestos, sem ouvir uns aos outros e em meio a uma barafunda visual e sonora. “E a Terra entrou em transe e / No sertão de Ipanema / Em transe e / No mar de Monte Santo”, lembrou Caetano Veloso em Cinema Novo.
O impacto foi profundo, mesmo para quem não tinha a menor ideia do contexto brasileiro ou das elucubrações de Glauber. O cineasta americano Martin Scorsese tinha quase 30 anos quando assistiu a Terra em Transe, rebatizado de Land in Anguish na versão em inglês, no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ficou extasiado com “a humanidade e a paixão poderosas” do filme. O crítico francês Jean-Louis Bory saudou o filme no Le Nouvel Observateur como uma “ópera-metralhadora”. Outra francesa, a romancista Marguerite Yourcenar, definiu a obra como “ópera cinematográfica”. Premiado em Cannes, Havana e Locarno, o filme acabou proibido pela censura da ditadura militar.