As eleições diretas e a possibilidade de relegitimação do Estado
Parcela do espectro político considera que sofreu um golpe institucional, quando, no Congresso Nacional, um processo de impeachment foi movimentado com fundamentações jurídicas frágeis.
Por Glauco Salomão Leite, no Justificando
Publicado 02/06/2017 15:05
Sob o manto protetor de um discurso anticorrupção, que ganhava as ruas, o processo foi capitaneado por políticos delatados e envolvidos em esquemas de corrupção, ficando a impressão, dia após dia, que queriam afastar a Presidenta para garantir espaços de proteção contra processos judiciais.
A sensação de que o processo foi um álibi para um vale-tudo não foi superada, e a sociedade brasileira encontra-se cada vez mais dividida.
Além disso, o governo atual que foi gerado desse complexo processo de ruptura democrática e institucional terminou decidindo, com apoio da grande mídia e do grande empresariado, atacar o conteúdo social da Constituição de 1988, propondo reformas radicais, sem debate, sem amadurecimento, aumentando a sensação de que o golpe parlamentar foi realizado com propósitos políticos bem específicos, que não resistem às urnas.
Destaca-se, nesse ataque, a Emenda Constitucional n. 95, que congelou o orçamento público por vinte anos, criando graves dificuldades ou, até mesmo, impedindo que se atinjam objetivos constitucionais em políticas sociais. Mas, também, as reformas trabalhista e previdenciária representam mudanças estruturais do Estado Social.
Esse cenário já bastante sensível se tornou mais instável com a delação premiada dos donos da empresa JBS, agravando o período de tensão e crise política pelo qual passa o Brasil. Diante do derretimento do apoio da imprensa e congressional (o popular nunca houve), é necessário discutir a relegitimação do Estado brasileiro em razão dos possíveis cenários que apontam para o improvável término do mandato do atual Presidente, Michel Temer.
Nesse contexto, começa-se a pensar em alternativas de sucessão presidencial, seja em virtude de renúncia ou impeachment (a OAB, inclusive, já protocolou o pedido de abertura de processo por crime de responsabilidade junto à Câmara dos Deputados), seja em virtude da cassação do mandato por meio do Tribunal Superior Eleitoral. Para ambas as hipóteses, a solução para o vácuo de poder instaurado e refundação da legitimidade do Estado brasileiro deverá vir com eleições diretas. Apenas o povo pode, novamente, refundar o Estado e dar ao seu governante a tranquilidade de exercer o bom governo.
Mas muitas vozes se levantam contra esta solução, buscando invariavelmente impedir a participação popular na escolha da condução da vida pública do país. Muitos que apoiaram o processo de impeachment em 2016 e deram respaldo ao atual governo começam a abandoná-lo, mas correm para lembrar que, no caso de renúncia ou impedimento, a saída constitucional é pelas eleições indiretas e pedem que venha alguém que dê continuidade às reformas. Esse caminho tende a aprofundar a divisão do país e estender a tensão até o processo eleitoral de 2018.
Desse modo, pretendemos analisar duas situações possíveis, que têm sido discutidas publicamente. A primeira diz respeito à aprovação de emenda constitucional que prevê eleições diretas para o caso de dupla vacância presidencial ocorrida até os três primeiros anos do mandato eletivo. A eleição indireta seria feita apenas no último ano do período presidencial. A segunda situação se refere às consequências decorrentes de eventual cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE.
PEC das “Diretas Já” e cláusulas pétreas: incompatibilidade?
Ganha força a tese que defende a realização de eleições diretas a exigir reforma constitucional específica (PEC das “Diretas Já”). A temática tem suscitado controvérsias acerca da sua constitucionalidade. Não deixa de causar estranheza que uma proposta de emenda constitucional, cujo objetivo consiste em viabilizar nova eleição direta em um contexto de profunda crise política de representatividade, seja considerada contrária à Constituição-cidadã (sic).
Observando nossa história político-constitucional, facilmente notamos que foram superadas duas décadas de governos constituídos na força e não no voto, razão pela qual a Carta de 88 buscou restabelecer o sistema democrático, conferindo primazia às eleições diretas e ao exercício da cidadania ativa. Tanto é assim que o princípio democrático está entre os seus próprios fundamentos, como se depreende deste preceito que possui relevante simbologia: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (art. 1º, parágrafo único).
Tendo em vista essa relevante diretriz hermenêutica, umbilicalmente atrelada ao espírito democrático de nossa Constituição, é preciso discutir aquilo que talvez se afigure como o principal obstáculo jurídico à PEC das “Diretas já”, isto é, o princípio da anterioridade eleitoral fixado no art. 16, da CF. Como se sabe, existe precedente do STF (ADI 3685) que reconhece a anterioridade eleitoral como cláusula pétrea, de modo que ele deve ser observado, inclusive, pelo poder de reforma constitucional.
Porém, um olhar atento ao inteiro teor da referida decisão nos permite concluir que a anterioridade eleitoral não pode servir como empecilho à convocação de eleições diretas. O fundamento da Corte naquele julgamento foi o de que:
“O art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral”.
Vê-se, portanto, que o fundamento do princípio da anterioridade eleitoral reside em preservar a adequada manifestação do cidadão-eleitor como titular da “uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado”.
Ora, se uma PEC busca estabelecer que será o próprio povo a escolher o novo presidente em razão da dupla vacância, tal regra se alinha perfeitamente à jurisprudência do STF. Em outras palavras, o art. 16 pretende proteger a soberania popular de qualquer espécie de manipulação eleitoral que pudesse viciar o exercício de sua vontade política. Sendo assim, uma reforma constitucional que convoca eleições diretas jamais poderia ser vista como instrumento de manipulação ou deturpação da vontade popular. Ao contrário, por ela, viabiliza-se justamente que os cidadãos possam, livre e conscientemente, escolher um novo governante.
Reforçando essa linha de pensamento, convém destacar que o constituinte inseriu no rol das cláusulas pétreas o voto direto, secreto, universal e periódico. Embora se admita reforma constitucional que restrinja, até certo ponto, direitos e garantias individuais, no presente caso verifica-se exatamente o oposto. Com efeito, “devolver” ao povo o direito de escolher diretamente aqueles que conduzirão a vida política do país não significa uma restrição a direitos, senão um alargamento no âmbito de proteção de direitos individuais e políticos. Não é uma violação ao núcleo irredutível da Constituição, e sim o seu reforço, na medida em que revigora o espírito democrático de nossa ordem constitucional.
Como se vê, os posicionamentos que se colocam contrários à reforma constitucional para as eleições diretas em caso de renúncia ou impeachment no atual contexto da crise política, sob a alegação da violação da anterioridade eleitoral, não encontram apoio no precedente do STF que, ao aplicar o art. 16 como obstáculo a alterações legislativas através reformas constitucionais, o fez tomando como referência a proteção do povo e de sua soberania política. E com a PEC das “Diretas Já”, é precisamente este povo o beneficiário da medida legislativa.
Além disso, convém destacar que o STF igualmente entende que as eleições que se dão em virtude de dupla vacância no Poder Executivo não se enquadram no conceito de processos eleitorais ordinários a serem regidos pela anterioridade eleitoral. Na ADI n. 4298, o Min. Cezar Peluso, considerando toda a jurisprudência do STF a respeito, destacou o seguinte:
“Conquanto não deixem de revelar certa conotação eleitoral, porque dispõem sobre o procedimento de aquisição eletiva do poder político, não há como reconhecer ou atribuir características de direito eleitoral stricto sensu às normas que regem a eleição indireta no caso de dupla vacância no último biênio do mandato.”
É que, em última instância, têm por objeto matéria político-administrativa que postula típica decisão do poder geral de autogoverno, inerente à autonomia política dos entes federados.
Concluiu a Corte que o tema das normas que disciplinam a sucessão por dupla vacância termina sendo excluído da típica esfera eleitoral, de sorte que “predefinido seu caráter não-eleitoral, não há excogitar ofensa ao princípio da anterioridade da lei eleitoral estabelecido pelo art. 16 da Constituição da República”.
Cassação da chapa Dilma-Temer e eleições diretas
Em outro cenário que se desenha, é possível que o TSE venha a decidir a favor da cassação da chapa Dilma-Temer, surgindo questionamentos sobre o modo de investidura do novo governante. Nessa hipótese, deve-se aplicar o art. 224 do Código Eleitoral, que determina a realização da eleição direta no caso de cassação do mandato durante os primeiros três anos e meio, ficando a eleição indireta para o último semestre do mandato. Equivocada a interpretação segundo a qual incide o art. 81, da CF, que prevê eleições indiretas pelo Congresso Nacional.
Todo esse embaraço já foi analisado em artigo publicado anteriormente por um dos autores do presente texto. Ao nosso ver, a confusão decorre da tentativa de misturar situações que, juridicamente, são distintas e se apoiam numa jurisprudência robusta, que tem orientando os processos eleitorais no país. É preciso diferenciar a sucessão presidencial, cujos contornos são traçados pela CF e que depende de motivos posteriores a uma eleição legítima, como renúncia, morte ou impeachment do presidente e do vice-presidente, daquela outra hipótese em que a sucessão decorre de perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral, fundada na ilegitimidade do próprio processo eleitoral. Neste caso, cuida-se de desinvestir aqueles eleitos irregularmente numa função política da maior grandeza para o país. A primeira situação é afeta ao Direito Constitucional; a segunda, ao Direito Eleitoral.
Bastaria relembrar, apenas a título de exemplificação, a posição do TSE quando cassou o mandato do então governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e do seu vice, José Lacerda Neto, em decorrência da prática de abuso de poder econômico durante as eleições, bem como quando cassou o mandato do governador eleito no Estado do Maranhão, Jackson Lago, e do seu vice, Luís Carlos Porto, por terem cometido abuso de poder político também nas eleições.
De acordo com a decisão, deveria ser aplicada a solução prevista no Código Eleitoral à época, como de fato foi, o que acarretou a posse dos que ficaram em segundo lugar nas eleições estaduais. Ainda que houvesse solução específica nas constituições estaduais para a hipótese de dupla vacância, percebe-se que incidiu a regra da legislação eleitoral. Esses dois casos são suficientes para se perceber que existe um entendimento pacífico na jurisprudência eleitoral segundo o qual a perda de mandato oriunda de eleições ilegítimas é situação distinta daquela prevista na CF referente à dupla vacância por razões posteriores às eleições legítimas.
O que se quer com isso afirmar é que, em casos de sucessão oriunda da cassação de chapa (ilegitimidade das eleições), a Justiça Eleitoral tem aplicado desde longa data o Código Eleitoral. Assim, no caso da cassação da chapa Dilma-Temer, deve-se, igualmente, seguir o Código Eleitoral, que tem ampliado as hipóteses de convocação de eleições diretas, em absoluta sintonia com o perfil democrático da Constituição.
Conclusão: em busca da legitimidade perdida
De acordo com a regra vigente prevista no art. 81, da Constituição, havendo renúncia ou impedimento do atual Presidente, seria deflagrada eleição indireta pelo Congresso Nacional, a quem também caberia definir aspectos fundamentais do próprio rito a ser adotado. Não obstante, também seria válida aprovação de emenda constitucional prevendo eleições diretas.
Pensar que uma PEC das “Diretas Já” seria inconstitucional exige enfrentamento de um paradoxo de difícil resolução: como considerar inconstitucional a convocação de eleições diretas em um sistema político que se pretende democrático? Insistir nesse caminho é defender uma democracia sem seu protagonista. É reconhecer que o povo é inconstitucional. Nada mais contraditório em nosso turbulento constitucionalismo democrático.
É bem verdade que os dois caminhos são compatíveis com a Constituição: o da eleição indireta, aplicando a regra vigente do art. 81, bem como o da eleição direta, introduzida por eventual reforma constitucional. O que se precisa analisar é a maior ou menor legitimidade democrática da opção política escolhida, isto é, aquela que produzirá um resultado que seja razoavelmente aceito por vencedores e vencidos. É por isso necessário relegitimar o Estado.
Nesse contexto, apenas eleições diretas têm força suficiente para pacificar o país. Trata-se aqui de compreender a relevância da legitimidade como critério definidor da normatividade. Para tanto, basta atribuir à dimensão política da Constituição o necessário protagonismo, conferindo à voz das urnas a possibilidade de ampla manifestação a respeito dos rumos do país, fortalecendo a juridicidade daí decorrente. Certamente as eleições diretas, por si sós, não garantem a pacificação social, mas têm potencial infinitamente maior para sua consecução do que arranjos dentro de um Congresso Nacional sob suspeita.
Por outro lado, existindo cassação da chapa por decisão do TSE, não há espaço para dúvidas sérias: é preciso aplicar o Código Eleitoral e convocar eleições diretas, conforme prevê o art. 224. Em todo caso, estamos a reencontrar uma legitimidade que se perdeu pelo caminho.