"O obstáculo à emenda das eleições diretas é político e não jurídico"
Enquanto Michel Temer se debate no cargo, o Parlamento insiste em levar adiante as discussões das reformas trabalhista e da Previdência, rejeitadas pela ampla maioria da população, além de aquecer os conchavos em torno de candidaturas indiretas.
Por Rodrigo Martins*, na CartaCapital
Publicado 29/05/2017 11:25
De nada adiantaram os ruidosos protestos que tomaram as ruas das principais capitais do País nos últimos dias, a pedir o afastamento imediato do presidente e exigir Diretas Já. Da mesma forma, as pesquisas de opinião, a indicar que nove em cada dez brasileiros desejam escolher o próximo presidente ainda neste ano, são ignoradas.
Alheia ao clamor popular, a base governista abusa das manobras legislativas para evitar a aprovação de uma emenda constitucional pelas eleições diretas. Uma proposta nessa direção, elaborada pelo deputado Miro Teixeira, da Rede, está em debate na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, seja qual for o motivo da vacância do poder: renúncia, impeachment ou cassação do mandato pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para evitar que o texto começasse a ser analisado na terça-feira 23, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), apressou-se a dar início à ordem do dia no Plenário, o que obrigou o colegiado a encerrar a discussão uma hora depois do início dos trabalhos (detalhes na reportagem à pág. 14). No dia seguinte, o peemedebista Rodrigo Pacheco, presidente da CCJ, incumbiu-se de segurar a pauta.
“Os aliados de Temer sabem que, se a emenda das diretas for a votação, será aprovada. O desgaste político de quem se colocar contra será enorme”, afirma o deputado Alessandro Molon (Rede), autor do primeiro pedido de impeachment protocolado contra o peemedebista após a divulgação do indecoroso diálogo entre o presidente da República e o empresário Joesley Batista, dono da JBS. “A última coisa que o Brasil quer é ver o Congresso, com grande número de parlamentares sob suspeição, pelas graves denúncias que pesam contra eles, escolher no lugar do povo o novo presidente.”
O desalento só não foi maior graças a uma distração da base governista na CCJ do Senado. Aproveitando-se da ausência de três senadores peemedebistas, a oposição conseguiu aprovar uma inversão da pauta e dar prioridade à Proposta de Emenda à Constituição apresentada por José Reguffe (PDT), a prever eleições diretas quando os cargos de presidente e vice ficam vagos até o final do terceiro ano do mandato. Ao cabo, o relatório do senador petista Lindbergh Farias foi lido, primeiro passo para que o projeto seja votado no colegiado. A previsão é de que isso ocorra na próxima semana. Se aprovada na comissão, a PEC seguirá para o Plenário. Ainda assim, caberá ao presidente da Casa, o peemedebista Eunício Oliveira, colocá-la em votação.
No meio jurídico, há divergências sobre a conveniência de promover a mudança na Constituição em um cenário de grave instabilidade política. A rigor, não existe, porém, um sólido obstáculo legal à aprovação da proposta. Conforme o disposto no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal, somente são vedadas as deliberações de emendas que tendem a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; ou os direitos e garantias individuais. “Não há, portanto, qualquer violação às cláusulas pétreas”, avalia Fábio Konder Comparato, professor emérito do Largo de São Francisco, a Faculdade de Direito da USP.
Embora não veja entraves jurídicos à realização de eleições diretas, Comparato nutre dúvidas sobre a capacidade de o País se reerguer. “Na verdade, vivemos o sintoma de uma doença política, aqui instalada desde os primórdios da colonização portuguesa. Trata-se, basicamente, da dominação constante da soberania nacional por dois grupos associados: os potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais, permanecendo o povo, desde sempre, alheio a esse conchavo.”
Para o advogado Rafael Valim, professor de Direito da PUC de São Paulo, a teoria das cláusulas pétreas “veda apenas a redução ou o amesquinhamento de direitos fundamentais”. Não existe – nem poderia existir – limitação para a ampliação de direitos. “O que não se pode é restringir o voto universal e secreto. O Congresso não poderia, por exemplo, transformar uma eleição direta em indireta, pois o representante estaria cassando os poderes do representado. É perfeitamente possível aprovar as Diretas sem qualquer ofensa à Constituição.”
O noticiário nativo tem dado ênfase às declarações do advogado Miguel Reale Jr., um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Em entrevista à rádio CBN, o conselheiro jurídico do PSDB afirmou que o Brasil não aguentaria eleições diretas no momento, e que isso iria “conturbar o País” e criar “imensa insegurança jurídica”.
Mesmo entre os que se opuseram à destituição da presidenta eleita, por entenderem que não houve a comprovação de um crime de responsabilidade, sobram desconfianças. “A solução para as crises políticas deve ser encontrada dentro da Constituição, e não fora dela. Já sofremos um trauma enorme com o impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff, o que interrompeu o ciclo democrático”, diz Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo. “Uma nova ruptura praticamente impele à convocação de uma Assembleia Constituinte. E, na atual conjuntura, o risco de recuo nos direitos assegurados pela Carta de 1988 é muito grande. É mais provável haver retrocessos do que avanços.”
De fato, a Constituição deve servir como um guia para atravessar períodos turbulentos sem rupturas institucionais, e a crise não é um bom ambiente para alterações constitucionais, pondera Valim. O especialista observa, porém, que toda mudança normativa surge de uma necessidade. “Por que se criou a Lei Maria da Penha? Percebeu-se grande número de mulheres vítimas de violência doméstica, e ninguém diz que essa lei é casuística. Toda alteração normativa, da Constituição a uma simples portaria, é motivada por um dado da realidade, um problema que desperta a atenção da sociedade. Tampouco se pode falar em exceção constitucional, porque a emenda valerá para todas as situações em que houver vacância do poder.”
Professor de Direito Econômico e Economia Política da USP, Gilberto Bercovici acrescenta que, na prática, a Constituição já não está mais em vigor. “Acho engraçado, porque não vimos esse formalismo todo no impeachment de Dilma”, ironiza. “Além disso, a emenda dos gastos públicos suspendeu a Constituição por 20 anos, pois impede a efetivação dos direitos assegurados em 1988. Na verdade, chamar eleições diretas é a única forma de resgatar o Estado Democrático de Direito. Estão impondo um conjunto de reformas que contrariam os interesses do povo, só satisfazem aos grandes agentes econômicos e à mídia.”
Entusiasta das Diretas Já, Gisele Cittadino, coordenadora da pós-gradução em Direito da PUC do Rio de Janeiro, não esconde a perplexidade com os argumentos levantados por Reale Jr. “Dizer que eleições diretas causam insegurança jurídica é um escárnio. O que causa instabilidade são esses golpes sucessivos, um impeachment sem crime de responsabilidade, uma emenda que congela a efetivação dos direitos sociais por 20 anos…”, afirma. “O que se propõe é aprovar uma emenda para realizar eleições diretas. No momento em que o Congresso aprovar a PEC, o texto constitucional passará a prever esse procedimento. Não haverá, portanto, qualquer desrespeito à Constituição.”
O maior obstáculo às Diretas Já é político, e não jurídico, enfatiza o deputado Alessandro Molon. “Por isso, vejo com enorme preocupação as articulações em torno de candidaturas pela via indireta. Buscam a todo custo impor um acordão.”
No noticiário, sobram rumores do apoio desse ou daquele partido aos virtuais candidatos em uma disputa indireta. Ex-ministro de FHC e Lula, filiado ao PMDB, Nelson Jobim emergiu na banca de apostas como o nome mais palatável às maiores agremiações, embora ele próprio negue a disposição de concorrer ao mandato-tampão de pouco mais de um ano.
Líder do PT na Câmara, Carlos Zarattini enfatiza que o partido não participa de tais articulações. “Já nos procuraram pessoas do PMDB, do PSDB, do DEM, do PSB. Todo mundo quer conversar, mas o PT tem uma linha clara: defender as eleições diretas e suspender a votação dessas reformas, para a abertura de amplo processo de negociação na sociedade”, explica. “Em toda crise, fala-se que Lula, FHC e Sarney precisam sentar para costurar um acordo, mas não é um acerto entre três ex-presidentes que vai resolver os problemas do País. A crise que vivemos só será resolvida com mais democracia.”
De acordo com Zarattini, a bancada do PT deve se reunir no início da próxima semana para debater uma proposta de antecipação de eleições gerais, não apenas para o cargo de presidente, mas também para a renovação do Congresso. “Isso demanda um grande pacto político, mais complicado de ser costurado, é verdade, mas seria muito mais benéfico ao País do que uma eleição para um mandato-tampão”, avalia. Seja como for, o partido promete não abandonar a proposta das Diretas. “O Congresso tem legitimidade porque foi eleito pelo povo, mas é complicado confiar uma tarefa dessa magnitude a um colégio eleitoral tão restrito, 513 deputados e 81 senadores.”