Publicado 18/05/2017 16:29
A gravação de Michel Temer tomando conhecimento e incentivando a mesada para calar a boca de Eduardo Cunha confirma um dos motivos do impeachment de Dilma Rousseff: evitar que a Operação Lava Jato fosse além do PT.
Não se trata de mais uma delação de um acusador interessado em reduzir sua pena, mas de uma gravação que envolve o próprio acusado.
Há pouco mais de um mês, Marcelo Odebrecht confessava ter convocado Michel Temer para interceder contra o combate à corrupção na Petrobras, depois que Dilma instruiu Graça Foster a fazer uma “faxina” na empresa, o que levou à demissão dos diretores indicados pelo PMDB (Jorge Zelada), PP (Paulo Roberto Costa) e José Dirceu (Renato Duque) em abril de 2012, o que provocou reclamações públicas do PMDB e do PP. Já na segunda semana do governo Temer, ouvimos Romero Jucá planejar um “acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional… com o Supremo, com tudo”.
Agora ouvimos o próprio Michel Temer ser gravado pela segunda vez, como quando pressionou seu Ministro da Cultura, Marcelo Calero, pela liberação de um prédio de luxo de interesse de Geddel Vieira Lima em área de proteção cultural e ambiental em Salvador. A nova gravação é mais grave porque mostra Temer incentivando obstrução de justiça e indica, como dizia Jucá, que 'Michel [Temer] é Eduardo Cunha'. Também mostra Aécio Neves, em linguagem de mafioso, comprovar que o governo Temer é, no fundo, o governo do PSDB.
O programa anunciado por Temer em novembro de 2015, Uma Ponte para o Futuro, era o programa dos sonhos que o PSDB nunca conseguiu emplacar em uma eleição. É por isso que o impeachment ia muito além de parar as investigações: privatizar patrimônio público, vender o Pré-Sal, não cobrar dívidas tributárias e até perdoá-las, reduzir o salário real, retirar direitos sociais, trabalhistas e a Previdência dos pobres sem consultar a população, jogada para escolas, planos de saúde e de previdência privados cujos proprietários indicam integrantes dos ministérios de Temer.
Era para executar a missão histórica de enterrar a CLT e a Constituição Cidadã que Temer mantinha grande apoio empresarial e midiático. Embora as reformas neoliberais sejam justificadas para ajudar no ajuste fiscal, na verdade são um fim em si que piora as contas públicas.
Trabalhadores terceirizados não vão pagar contribuições previdenciárias, piorando a arrecadação da Previdência. A venda do Pré-Sal na bacia das almas em momento de baixo preço do petróleo reduz o fluxo futuro de receitas públicas. Todos os grandes meios de comunicação receberam verbas enormes para fazer propaganda oficial de reformas que queriam que Temer aprovasse de qualquer modo.
O cúmulo do absurdo é oferecer perdão de multas e juros de impostos devidos pelas empresas, em um Congresso formado por mais de 200 empresários que querem a reforma trabalhista e da Previdência a qualquer custo. Nada menos que 292 das emendas apresentadas por deputados na reforma trabalhista foram redigidas em computadores da Confederação Nacional do Transporte (CNT), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística).
O próprio relator da reforma trabalhista, Rogério Marinho (PSDB-RN), é investigado em inquérito do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público do Trabalho (MPT) por envolvimento com empresa terceirizada que coagia demitidos a renunciar verbas rescisórias e devolver a multa do FGTS, se apropriando indebitamente de R$ 338 mil. Estes crimes seriam legalizados com a reforma trabalhista, pois os trabalhadores teriam o “direito de negociar” seus benefícios com empresas.
A reforma trabalhista imaginada para o trabalhador rural pretende restaurar condições análogas à escravidão: trabalho por até 18 dias seguidos, pagos com comida e casa (ou senzala) na fazenda. Mas os ruralistas do Congresso cobram do Planalto a fatura de mais de R$ 10 bilhões de perdão de dívidas com o Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), “em troca” de diminuir também o tempo em que contribuiriam para a aposentadoria rural de seus funcionários. Já os prefeitos de 600 municípios querem renegociar dívida de pelo menos R$ 100 bilhões com o próprio INSS.
Já os empresários pedem um novo Programa de Regularização Tributária (PRT). Com o parcelamento de dívidas tributárias em 180 meses e desconto de 90% em multas e juros, o custo estimado pela Receita é de R$ 23 bilhões. Isto leva a R$ 164 bilhões a soma das benesses para aprovar uma reforma que tem por pretexto pôr ordem nas contas públicas. Mas como as condições seriam estendidas não só a atrasos em discussão na Receita, mas até à dívida ativa da União já cobrada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o custo seria muito superior.
Para dar uma ideia do saque às contas públicas que Temer jura que só podem se ajustar com corte de direitos sociais, cabe lembrar da sonegação anual (R$ 500 bilhões), da dívida ativa da União (R$ 1,8 trilhão), da dívida ativa de cobrança imediata (R$ 260 bilhões) e da dívida com a Previdência Social (R$ 426 bilhões). Não podemos esquecer que os membros do aparato judicial e coercitivo que receberam benesses salariais de Temer em 2016 tampouco cumprem a lei do teto do salário do funcionalismo público.
Hoje, o objetivo fundamental do "golpimpeachment" entrou em choque com o objetivo secundário, barrar a Lava-Jato. É por isso que Temer perderá seu poder real, isto é, o apoio empresarial e midiático, devendo abandonar a presidência em breve por absoluta falta de legitimidade para realizar o programa de reformas.
O problema é que o poder real que protegia Temer foi forçado a descarta-lo, mas quer completar a finalidade última do impeachment. É claro que vai apoiar a eleição indireta de um presidente que leve adiante a Ponte para o Futuro, passando por cima da vontade popular. Henrique Meirelles vai ser entronizado como o bastião da “estabilidade”, mas também serão cotados Nelson Jobim e Carmen Lúcia, que teve reunião em 08 de maio com o presidente do Itaú e outros 10 grandes empresários.
Enquanto isto, os economistas que legitimaram o golpe já culpam a democracia – a perspectiva de eleições em 2018 – para o fracasso de seu remédio de saída da crise. A conclusão é lógica: o poder real quer não apenas uma eleição indireta, mas estender o mandato do notável para além de 2018, sem consulta à opinião popular, até que a agenda de reformas neoliberais seja concluída.
Só há um problema com o plano: combinar com o povo. Depois da greve geral (devidamente silenciada pela imprensa) e das pesquisas sobre a popularidade zero das reformas trabalhista e da previdência, só há uma maneira de estabilizar a política brasileira de modo democrático: convocando a fonte última do poder legítimo para declarar sua vontade em eleições diretas para presidente, ou até mesmo eleições gerais. É bom que se saiba, contudo, que o poder real e seus tecnocratas não vão ser convencidos por argumentos de que o Brasil de hoje é diferente do de 1964. Eles terão que aprender na prática, ouvindo o canto das ruas.
*Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor associado do Instituto de Economia da Unicamp