Rosemberg Cariry: Ariano Suassuna, o riso a cavalo e o galope do sonho
"Ariano Suassuna faz falta neste país dominado por uma elite composta, em sua maioria, por políticos mesquinhos, empresários brutais e incultos, traidores e dedos-duros, capachos do grande capital globalizado, ex-comunistas arrependidos (cooptados pelo neoliberalismo), especuladores imobiliários, ideólogos da direita inimiga da vida, defensores da misoginia e da tortura, chefões do agronegócio e do agrotóxico, vendedores de carne podre e usurpadores da democracia”.
Por *Rosemberg Cariry
Publicado 29/03/2017 09:36 | Editado 04/03/2020 16:23
Tive o privilégio de viajar com Ariano Suassuna, junto com uma equipe de filmagem, durante mais de um ano, em períodos diferentes, para a realização de um seriado para a TV. Juntos, varamos os sertões de Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia, só parando quando ouvimos a pancada do mar, no denso areal de Aracati, onde Dom Sebastião – o Desejado – se desencanta, com seu exército alumioso, em noites de lua cheia. Nessas andanças, em seu estilo erudito e simples, na paciência professoral, Ariano foi-se adentrando, nas artes barrocas populares e nas lendas do povo, nas antropologias e interpretações da nação brasileira. Como nunca, ele de tudo falou: de índios, de negros, de cafuzos, de brancos, de beatos, de cangaceiros, de lutas e revoluções. Queria assim dizer dessas “Oropa, França e Bahia” que se reinventam Brasil – pátria dos encontros de todas as etnias e de todas as culturas, sob o signo da universalidade e singularidade que nos engrandece e irmana.
Em várias ocasiões, diante de um curumim, nas ruínas de Canudos, na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, vi o mestre Ariano chorar. Ele se mostrava tão sensível, andava com o coração na mão e parecia enternecido quando as pessoas o paravam nas ruas; ou quando, nas aldeias visitadas, os índios dançavam um Toré em sua homenagem e os quilombolas batucavam tambores e sapateavam Zambé. Este homem amava o Brasil por entender o que de universal herdara o povo brasileiro, numa torrente de signos vindos de todas as culturas, povos e etnias, plasmada em novas originalidades.
Nos últimos anos da sua vida, Ariano Suassuna surpreendia pelas suas ideias politicamente arejadas. Ao modo de Machado de Assis, gostava de denunciar o “Brasil oficial” (das elites e dos exploradores), que sempre corta a cabeça do “Brasil real” (os pobres e deserdados dos campos e das cidades) cada vez que este povo avança em suas conquistas sociais e políticas. Ariano Suassuna era um apaixonado pelo povo brasileiro, parte indissociável dele, porque em vida se fez sopro encantado do mesmo barro e do mesmo espírito; e hoje, depois da sua morte, transformou-se em um defensor perpétuo e desencarnado deste mesmo povo.
Ele lutou a boa luta e não se entregou facilmente. Gostava de dizer: “Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver”.
O homem-artista Ariano Suassuna faz falta neste país dominado por uma elite composta, em sua maioria, por políticos mesquinhos, empresários brutais e incultos, traidores e dedos-duros, capachos do grande capital globalizado, ex-comunistas arrependidos (cooptados pelo neoliberalismo), especuladores imobiliários, ideólogos da direita inimiga da vida, defensores da misoginia e da tortura, chefões do agronegócio e do agrotóxico, vendedores de carne podre e usurpadores da democracia. Neste momento, quando a noite escura e densa desaba sobre a nação, estamos novamente precisando “do riso a cavalo e do galope do sonho”, derramando-se pelas ruas.
*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor.
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