Como Edson Luís se tornou um ícone do movimento estudantil
Há 50 anos, na noite de 28 de março do icônico ano de 1968, morria no Rio de Janeiro o jovem secundarista Edson Luis – um dos primeiros estudantes assassinados pela ditadura militar (1964-1985). A comoção em torno de seu tombamento levou dezenas de milhares de pessoas às ruas e escancarou o crescente repúdio da sociedade ao regime imposto pelo Golpe de 64.*
Por André Cintra e Raisa Marques**
Publicado 29/03/2017 08:33
Os grandes conflitos entre a ditadura militar brasileira e o movimento estudantil em 1968 têm como estopim a morte de um secundarista, Edson Luís de Lima Souto, no Rio de Janeiro. É um episódio-chave na história das lutas estudantis em geral e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) em particular.
“A reação à morte do Edson Luís foi de uma amplitude, de uma radicalidade que ninguém imaginava, mesmo os que achavam que o ano seria de mobilizações”, declarou, em entrevista ao projeto Memória do Movimento Estudantil (MME), o economista Jean Marc von der Weid, que foi eleito presidente da UNE em 1969. “Rapidamente a gente percebeu o potencial de mobilização para além da universidade — até porque o Edson Luís não era universitário, mas secundarista.”
O Calabouço
Edson Luís foi assassinado durante uma manifestação em frente ao Restaurante Central dos Estudantes, num prédio do centro do Rio de Janeiro (RJ). Conhecido como Calabouço, por ter abrigado escravos presos no Império, o enorme restaurante era uma espécie de patrimônio dos estudantes, custeado pelo Ministério da Educação (MEC).
“Aquela comida de bandejão era muito ruim. Mas havia uma coisa boa: aquela garotada pobre que circulava por ali, perto do centro da cidade, podia almoçar por um preço muito baixo, como se fosse um restaurante universitário, só que fora da universidade”, lembra, também ao MME, o jornalista Bernardo Joffily, ex-vice-presidente da Ubes (1968). “Uma pessoa se inscrevia lá, ganhava uma carteirinha e podia almoçar no Calabouço. Como juntava 10 mil estudantes por dia, inevitavelmente, se transformou num centro de efervescência estudantil.”
De fato, o restaurante tinha fama de servir refeições horríveis, mas a preços extremamente baixos, “qualquer coisa assim como centavos”, segundo Bernardo Joffily. “Eram milhares de estudantes naquele galpão enorme — e, de repente, um estudante subia na cadeira e dizia: ‘Companheiros, acabo de descobrir uma barata aqui na sopa, no meu feijão, na minha bandeja’. E aí todo mundo batia com os garfos. Já era combinado, todo mundo já sabia, não precisava ninguém explicar. Todos batiam com os garfos nas bandejas, faziam aquela barulhada imensa em protesto contra a barata descoberta.”
O Calabouço, de qualquer maneira, foi adotado pela estudantada. Para se ter uma ideia de sua importância, um grupo de frequentadores, liderado por Elianor Brito, criou a Feuc (Frente Unida dos Estudantes do Calabouço), com o objetivo de melhorar as condições de funcionamento do restaurante. No governo do general-presidente Costa e Silva (1967-1969), os subsídios do MEC para o projeto minguaram, a tal ponto que, em setembro de 1967, uma ampla reforma do Calabouço foi interrompida sem anúncio nem explicações.
Além disso, os militares ameaçavam demolir o prédio para a construção de um viaduto. Em resposta, os estudantes realizaram vários protestos durante meses. Uma dessas manifestações ocorreu na noite de 28 de março de 1968, uma quinta-feira. Cerca de 600 estudantes discutiam os detalhes de uma passeata agendada para o dia seguinte, que reivindicaria melhorias para o Calabouço e o fim da ditadura. Mas a Polícia Militar (PM), avisada de antemão, cercou o restaurante em clima de guerra, imaginando que os manifestantes tacariam pedras na embaixada americana.
O massacre
Com seis carros ao redor do local, os policiais já chegaram com cassetetes em mãos. “Vão lá e quebrem tudo”, tinha ordenado o tenente Alcindo Costa. De repente, começaram os tiros — o Calabouço era metralhado sem parar. “Ao lado do galpão do restaurante funciona o Instituto Cooperativa de Ensino, onde é ministrado um curso do artigo 99 (Madureza). No momento da invasão estava sendo dada aula de Geografia. O professor protestou e foi espancado pelos policiais”, registrou a “Folha de S.Paulo”.
Uma bala perdida atingiu o comerciário Telmo Matos Henrique, que estava num prédio vizinho. Dois estudantes também foram atingidos — o próprio Edson Luís, no peito, e também Benedito Frasão Dutra, no braço e na cabeça. Dezenas de pessoas estavam feridas. Quando o massacre policial acabou, Edson Luís e Benedito foram levados à Santa Casa de Misericórdia, que ficava a três quarteirões de distância. Nenhum deles sobreviveu.
Benedito foi internado em estado grave, permaneceu em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e morreu no dia seguinte, aos 20 anos. Edson Luís chegou ao hospital já sem vida, vítima de um tiro à queima-roupa, que saiu da arma calibre 45 do comandante da tropa, aspirante a PM Aloísio Raposo. Um assassinato com a marca da covardia contra um jovem e indefeso estudante.
Em “O Poder Jovem”, Arthur Poerner descreveu o secundarista morto, filho de uma lavadeira, como “um menino ainda — completara 18 anos em 20 de fevereiro —, parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem pretos e lisos de caboclo nortista. Os dentes — tinha-os estragado, como a maioria dos jovens do nosso país. Órfão de pai, viera, havia três meses, de Belém do Pará, para cursar o artigo 99 do 1º ciclo (uma espécie de supletivo) no Instituto Cooperativo de Ensino, anexo do Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em serviços burocráticos de secretaria e de limpeza do estabelecimento, pois não conseguira emprego”.
Edson, segundo Bernardo Joffily, “era uma pessoa meio que adotada pelo movimento. Não era uma liderança, mas uma pessoa muito querida. Foi morto porque estava numa passeata contra o fechamento de um restaurante estudantil — essa é a moral da história”.
O Rio vela Edson Luís
Os estudantes que esperavam na Santa Casa decidiram sair com o corpo de Edson Luís pelas ruas e denunciar o crime — mais um — cometido pela ditadura contra o movimento estudantil. O povo se sensibilizou de imediato, segundo Jean Marc von der Weid: “A mobilização que se fez em torno disso, se fez dirigida para a classe média da Zona Sul. Fui eu que inventei a fórmula de parar os espetáculos em todos os teatros da Zona Sul para fazer a denúncia do assassinato do Edson Luís. Parei pessoalmente seis teatros e alguns cinemas. No começo, fazíamos com certa hesitação, mas depois fomos adquirindo confiança e as pessoas aderiam. Claro, havia sempre um sujeito que exigia o seu dinheiro de volta, brigava”.
Uma desses acontecimentos foi marcante para o ex-dirigente estudantil. “Uma vez, quando a gente paralisou o Teatro Princesa Isabel, um coronel se levantou e disse que prenderia a gente. O público vaiou. A peça ‘Roda Viva’ estava sendo apresentada nesse dia, e eu comecei a fazer uma denúncia dramática do assassinato do Edson Luís. De repente, Marieta Severo explode em soluços ao meu lado”, detalha Von der Weid.
O corpo do estudante morto foi conduzido até a antiga sede da Assembleia Legislativa da Guanabara, na Cinelândia. Impedidos pela multidão de entrarem, agentes da PM e do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) ameaçavam lançar bombas de gás. Faltou-lhes coragem. Nas ruas, a mobilização e os protestos continuavam. O governador Negrão de Lima mandou soltar os 14 estudantes presos na passeata e suspendeu as aulas em todos os estabelecimentos de ensino. A essa altura, as inúmeras faculdades do Rio já estavam em greve.
“As pessoas começaram a entrar noite adentro. Circulavam em bares da Zona Sul, faziam discurso e passavam o chapéu para recolher dinheiro para fazer o enterro do Edson Luís. Foi um agito generalizado”, diz Jean Marc. Segundo Bernardo, “a escadaria (da Assembleia) se transformou num palanque. As pessoas chegando, as escolas e faculdades fechando espontaneamente, e toda aquela massa de gente indo para a Cinelândia se somar ao velório”.
Um ato contra a ditadura
Dentro da Assembleia, o corpo de Edson foi posto sobre a Mesa Diretora e coberto pela bandeira nacional, por cartazes de protesto e por um caderno do próprio estudante. Dois médicos fizeram então a autópsia, acompanhados do secretário estadual de Saúde. Lideranças de diversas entidades clandestinas discursavam. Ao lado do caixão, proliferavam faixas com palavras-de-ordem, como “Assassinaram um estudante. Poderia ser seu filho” e “Brasil, seus filhos morrem por você”.
Segundo o jornal “O Dia”, “até às 15 horas, os estudantes haviam recebido, de donativos, três mil cruzeiros novos, que se destinarão à construção de uma estátua, em homenagem ao morto, em frente ao Restaurante Central dos Estudantes. O restante, segundo ficou deliberado, seria enviado à família do estudante, em Belém do Pará e custearia os funerais, pois foi recusado o oferecimento do governo estadual”.
Ao fim da tarde de 29 de março, assistiu-se a uma das maiores mobilizações da história do Brasil até então. Milhares de pessoas faziam fila para velar o corpo de Edson Luís. Artistas, sindicalistas e intelectuais compareciam. Na presença de ao menos 60 mil pessoas, o corpo de Edson Luís fez seu último trajeto. “Coberto pela bandeira nacional, o caixão desceu as escadarias da Assembleia sob os acenos de milhares de lenços. O povo entoava o ‘Hino Nacional’. Do alto dos edifícios caíam pétalas de flores e papéis picados. A multidão gritava ‘Desce! Desce’ para que os que, nas janelas, se limitavam a içar bandeiras negras. Muitos desciam e se integravam ao acompanhamento”.
Foram mais de três horas de um cortejo inesquecível até o Cemitério São João Batista. Anoitecia e, para ofuscar o protesto, autoridades deixaram de acionar parte da iluminação pública. De nada adiantou. Velas e lanternas carregadas pelas pessoas iluminavam a passeata. “A gente parou em frente ao prédio da UNE para fazer uma reverência. O prédio da UNE, que tinha sido fechado pela ditadura e não estava funcionando. Foi um dos momentos mais emocionantes. Lembro também que já estava escurecendo e algum dono de mercearia teve a ideia de doar todo o estoque de velas que ele tinha”, afirma Bernardo.
Jean Marc agrega: “A manifestação no enterro do estudante foi absolutamente monumental. Há quem fale de cem mil na manifestação posterior. Certamente não havia cem mil. Mas no enterro, sim. Foi uma imensa manifestação, com um itinerário enorme, do centro da cidade até o Cemitério São João Batista, com muita mobilização de gente. Foi um marco. O ano político começou com esse fato”.
De acordo com Bernardo, Edson Luís “não foi o primeiro morto da ditadura militar, mas foi, digamos assim, o primeiro morto público da ditadura militar. Eu acredito que, naquele dia, o Brasil aprendeu melhor o que era o regime”. Para Artur Poerner, “foi o momento de apogeu do movimento estudantil. Os estudantes eram, naquele momento, a vanguarda da resistência à ditadura militar”.
A missa
O impacto do cruel assassinato de Edson Luís se estendeu e irritou os militares. Manifestações contra a ditadura se alastraram, culminando com os protestos de 1º de abril, no aniversário de quatro anos do Golpe de 1964. A polícia, orientada a descer o pau, foi ao ataque e deixou dois mortos (sendo um estudante), 60 feridos e 321 presos só no Rio de Janeiro. Tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ocuparam a cidade. A Universidade de Brasília foi ocupada por estudantes. Houve atos também em Goiás e em São Paulo, onde 4 mil estudantes se reuniram na Faculdade de Medicina da USP.
Em 4 de abril, o Exército escalou seus milicos em vários cantos do Rio de Janeiro para “prevenir distúrbios”. Mesmo assim, centenas de pessoas se achegaram pela manhã à Igreja de Nossa Senhora da Candelária, no centro carioca, para celebrar a missa de sétimo dia de Edson Luís. Foi outro pretexto para a violência do regime se deitar sobre uma massa indefesa de pessoas. A cavalaria da PM invadiu a igreja, e os agentes encheram estudantes e religiosos de golpes de sabre.
Chocado com a perversidade do regime, o vigário-geral dom José de Castro Pinto desobedeceu às ordens dos militares. No mesmo dia, à noite, ele realizou outra missa, desta vez para 600 pessoas. Na saída, os padres escoltaram os presentes até a Avenida Rio Branco. Foi depois desse ponto que a truculência da manhã ressurgiu, ainda mais grave, com direito a rajadas de metralhadora e bombas de gás. Até os fuzileiros navais foram convocados para liquidar a celebração a Edson Luís. Por sorte, não houve mortes — apenas feridos. Duas semanas depois, os militares proibiram eleições em 68 municípios, considerados “áreas de segurança nacional”.
No “calor da hora”, a Ubes realizou, de 21 a 24 de abril de 1968, o 20º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários, em Belo Horizonte. Cerca de 140 delegados compareceram ao encontro, que prestou homenagem a Edson Luis e também ao guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, líder da Revolução Cubana (1959), morto pelo Exército boliviano em outubro de 1967. A nova diretoria foi encabeçada pelo pernambucano Marcos Antonio Machado de Mello e por seu vice, o próprio Bernardo Joffily. Nenhum deles poderia imaginar que a repressão daqueles dias seria ainda mais intensificada – e faria outros tantos mártires do movimento estudantil como Edson Luís.
* Este artigo é um resumo de “1968, de Cara com a Utopia”, capítulo especial do livro “Ubes, Uma Rebeldia Consequente – A História do Movimento Estudantil Secundarista do Brasil”, de autoria de André Cintra e Raisa Marques.
** André Cintra, jornalista e escritor, trabalhou no Portal Vermelho entre 2006 e 2011. É membro da direção municipal do PCdoB de São Paulo (SP). Raisa Marques, historiadora e pesquisadora, é mestranda em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira. Foi presidente da União Mourãoense dos Estudantes Secundaristas (Umes) e membro da diretoria executiva da UBES por duas gestões.