Sandra Helena de Souza: Sem temer o desentendimento
"Então, quem festejou o ‘Fora Dilma’, atordoad@ e envergonhad@, agora ostenta elegante ‘isenção’ e reclama do clima de polarização do debate público. Aparentando a sabedoria dos monges karnais propõem que se encontre a verdade de cada lado e oferece a face ‘socrática’ para cada ofensa sofística (ou o contrário?) na busca do consenso no fim do arco-íris: um pa(c)to de salvação nacional”.
Por *Sandra Helena de Souza
Publicado 27/03/2017 10:04 | Editado 04/03/2020 16:23
Reúna os efeitos da PEC do teto dos gastos, da lei da terceirização irrestrita e da reforma da Previdência em curso. Some uma xícara de decisionismo jurídico sem freios recursais mexido com perseguição implacável à candidatura Lula. Reserve a disputa fagocitária entre as instituições que chancelaram a deposição da presidente Dilma: STF, MPF e Justiça Federal. Cozinhe em fogo brando a avidez com que setores variados das cadeias produtivas estratégicas do capitalismo nacional tentam se safar e controlar, ao mesmo tempo, os efeitos do golpe que ajudaram a deflagrar. Corte em picadinhos a reação medíocre dos partidos de centro-esquerda ao avanço tsunâmico de todo o processo. Doure com a semiparalisação dos movimentos sociais. Ponha um filete de óleo do manchetômetro da grande imprensa. Sal a gosto. Para prevenir a indigestão, prepare um chá de pedaladas fiscais para honrar os compromissos sociais do governo.
Ainda não completou um ano da terrífica sessão da Câmara que afastou a presidente, sob o comando de Eduardo Cunha, hoje preso, enquanto Dilma passeia mundo afora, com um discurso cada vez mais contundente sobre a violência de que foi vítima. Afinal, ela poderia recolher-se para fazer tricô em Porto Alegre e o mundo sensato, aqui e alhures, saberia o tipo de ‘grande acordo nacional’ – nas palavras sábias de Romero Jucá – ocorrido naquele momento e a quem ele serve.
Na dúvida do porquê tudo se desencadeou, bastar recorrer ao ilegítimo Temer que, em entrevista em Nova York, perguntado sobre o impeachment, não citou as pedaladas fiscais e disse que chegou ao poder devido à rejeição de Dilma (uauu) às propostas do seu partido, reunidas no projeto “Ponte para o futuro”: “Há muitíssimos meses, eu ainda vice-presidente, lançamos um documento chamado ‘Uma Ponte Para o Futuro’, porque nós verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo. E até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento’. E, como isso não deu certo, não houve adoção, instaurou-se um processo que culminou agora com a minha efetivação como presidência da República” (setembro de 2016). Fato, aliás, confirmado pelo insuspeito Cristovam Buarque em duro embate com a senadora Gleisi Hoffman, para logo depois na inacreditável timeline de seu Twitter pedir que o governo dê uma ‘feição mais humana às reformas que estamos promovendo’. A pusilanimidade em seu elemento.
Então, quem festejou o ‘Fora Dilma’, atordoad@ e envergonhad@, agora ostenta elegante ‘isenção’ e reclama do clima de polarização do debate público. Aparentando a sabedoria dos monges karnais propõem que se encontre a verdade de cada lado e oferece a face ‘socrática’ para cada ofensa sofística (ou o contrário?) na busca do consenso no fim do arco-íris: um pa(c)to de salvação nacional. Sua timeline se esforça por parecer neutra dando voz igualmente a todos, numa espécie de enciclopedismo moral de soma-zero.
Eu só observo e registro: sim, o seu país está de volta exatamente como quis e não ousava confessar. Orgulhe-se. Lambuze-se na sua vitória de Pirro. Só não me peça para dialogar. Para isso é necessário pressupor uma gramática comum. Ela foi rasgada e jogada no lixo.
*Sandra Helena de Souza é professora de Filosofia da Unifor; membro do Instituto Latino-Americano de Estudos em Direito, Política e Democracia.
Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.