Urariano Mota: Raduan Nassar X roberto freire
Sinto não poder ainda escrever com o devido distanciamento. Tentei até passar mais tempo sem falar, pois esperava que o fragor da onda se perdesse no horizonte. Mas não devo mais, sob pena de omissão. Entendam por favor a urgência e descontem as mal traçadas que vêm a seguir.
Por Urariano Mota*, no lusófono Jornal Tornado
Publicado 22/02/2017 09:44
Na solenidade da entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, quase toda imprensa brasileira preferiu esquecer a beleza do discurso do escritor. Aqui, houve uma inversão. Pelo noticiário, mais importante que o Prêmio Camões foi a baixeza, tratada como resposta, do ministro da cultura. No Jornal da Cultura (essa palavra tão destruída no Brasil de hoje) um comentarista chegou a lembrar o passado do ministro como de um homem de esquerda, e portanto isento defensor do novo governo: "ele vem do PC do B". Santa ignorância, total e absoluta, porque o comentarista desconhecia por completo o que houve com o movimento comunista no Brasil. O ministro da cultura destruída veio do PCB, de onde saiu para o PPS, a versão mais infame do que pode ser um partido com tintas de ex-revolucionário.
O ministro foi à cerimônia de um prêmio consagrador para um escritor brasileiro , mas não sabia o que era o prêmio nem muito menos quem era o premiado. Ou seja, foi como um cavalo da cultura. Mas quem é mesmo roberto freire? – Esse ministro da cultura de cascos é um indivíduo que desprezou sua história e natureza em vários tropeços, que ele deve chamar de oportunidades. No primeiro deles, renegou o passado comunista. No segundo, renegou o próprio estado de nascimento, Pernambuco, porque o jogou ao lixo para melhor viver sob o abrigo dos tucanos em São Paulo. Trair e trair para ele é um método de sobrevivência. Em um perfil esclarecedor, Altamiro Borges já o traçou nestas linhas: “Um político menor, rancoroso, que criou um partido para ser mera sublegenda do PSDB… .”. Em Pernambuco, quando voltou para o enterro de Miguel Arraes, muitos o chamaram de Traíra. Cínico, olhou de lado e sorriu. É que para os seus ouvidos a palavra Traíra passou a soar como um elogio.
Em dezembro de 2016, foi aclamado pelos gritos de “golpista, golpista” em plena cerimônia do palácio do governo de Pernambuco. E quanto mais tentava levantar a voz para vencer o clamor, mais recebia a graça de sonoras vaias. É claro, ele bem adoraria receber o tratamento de Sua ou Vossa Garça, assim como os secretários e cardeais do Rei Henrique VIII na Inglaterra dos Tudors, personagens a que pela indignidade roberto freire se assemelha. Mas recebe a graça de vaias.
Adiante, porque sobre Raduan Nassar devo falar. Na urgência desta hora, não vou escrever sobre a ótima escrita de Raduan Nassar. Fica para outra oportunidade. Agora, posso falar sobre a sua pessoa.
Conheci Raduan Nassar em 1977. Nesse ano, quando desci os pés em São Paulo, tive a sorte de conseguir trabalho no Jornal da Semana, Ali cheguei por força da literatura, ou melhor, por força da necessidade de comer, embora transportado pela literatura. Desempregado, sem carteira profissional, fui a um congresso de escritores no Hotel San Rafael à procura de Astolfo Araújo, minha única referência paulista. Astolfo havia publicado um conto meu na revista Escrita, e esse era o meu passaporte para sobreviver. Pergunto a uma pessoa, que depois descobri ser o escritor Moacir Scliar:
– Você conhece Astolfo Araújo?
– Não. Mas pergunte àquele cidadão ali, por favor. Ele conhece Astolfo. .
E fui até o cidadão, Raduan Nassar, que também eu não sabia. Nem ele o meu conto, pelo visto. Pergunto:
– Você conhece Astolfo Araújo? Tem o telefone dele?
Poderia ter acrescentado, à maneira de Groucho Marx: responda a segunda pergunta primeiro. Mas fiquei quieto, e o cidadão me respondeu:
– Sim, é meu amigo. Anote por favor.
Então no mesmo dia ligo para Astolfo Araújo, de um telefone público. Peço-lhe um emprego, um trabalho em jornal, qualquer coisa. E Astolfo:
– Aquele com quem você falou é Raduan Nassar. Ele é o editor do maior jornal de bairro da América do Sul. . Vá lá em Pinheiros e fale com ele. É ótima pessoa.
Naquela ocasião, eu não sabia, e o leitor perdoe a repetição de “eu não sabia”, porque grande era a minha inocência: Raduan Nassar, o editor, escritor, já havia publicado Lavoura Arcaica. Mas logo soube disto: ele me deu tarefas para escrever no jornal. Na época, a minha reportagem remunerada consistia em escrever crônicas como freelancer, e nada mais. A família de Raduan, eu não sabia mais uma vez, era dona da cadeia de supermercados Bazar 13, a segunda maior cadeia de supermercados de São Paulo. Como eu podia adivinhar que fosse rico um colega de literatura, que me chamava pra tomar um cafezinho, enquanto passávamos horas a conversar sobre Graciliano Ramos? Na minha percepção, e até hoje, os escritores são uns fodidos em geral. O certo, isto eu soube, é que pelos textos o jornal até pagava bem. Mas, diabo, as minhas 20 linhas semanais não chegavam para as despesas. Talvez não valessem nem o pouco chumbo impresso.
Pesquiso entre papéis guardados e desentranho um pequeno texto que publiquei no jornal de Raduan, em 23 de outubro de 1977:
“Deus inca assaz falado
O que o cidadão espera de um bar que tem o nome de ‘Latinoamericano’? Toureiros de Espanha em terras do México, Sarita Montiel cantando ‘La violetera’, a felliniana Mamãe Dolores aos prantos secundada por Parra de mosquetão, com duplas de mexicanos de sombreros a passear pelas mesas chacoalhando ‘que bonitos ojos tienes’, um indivíduo pisando una señorita em arrojado tango, um índio com poncho a mascar com os olhitos apertados nos Andes? Pois se de Latin American o cidadão só entende os prospectos distribuídos em agências de viagem, não vá a este bar que tomará tremendo susto: ao pé da escada, na Henrique Schaumann (quase esquina da Avenida Rebouças), encontrará um deus inca pintado na parede, segurando, à altura do queixo, aquilo que o eufemismo recomenda dizer, um vigoroso falo.
Falemos, em termos: o senhor reverencia o deus-poder, sobe a escada, e adentra um ambiente cujo toque é a calma, o recolhimento, o bar, doce bar – atributos que, naturalmente, custam alguns trocados, que pesariam para um obrero, o que não deve ser o seu caso. Em um recanto em que a quase penumbra convida à paz (tão difícil, lá fora), o senhor senta-se, pois este bar não é um daqueles infernais botecos em que a gente se embriaga de pé, até cair; senta-se e degusta, ao sabor do acaso, un tequila, un pisco, un don ramón, ou un negroni latino, que certamente lhe acenderá as ventas, mas será contido, amaciado pela suave música que vem dos trópicos, nas ondas doces das vozes dos grupos folclóricos del Paraguay, del Chile, del Perú … encastoadas em gentis fitas de um gravador que rumoreja e faz o ambiente. Das 19 e 30 ao último cliente, a depender do cliente, evidentemente. Falou?".
É claro, com produção tão vasta assim ninguém podia mesmo viver. A não ser que cada linha valesse uma feira no Bazar 13. O mais importante é que lembro de nas conversas literárias, nas discussões, Raduan Nassar nunca fez proclamação de ideias socialistas ou de intervenções mais arrojadas na realidade. Ele não me conhecia. Mas já então ele dava contribuições importantes contra a ditadura brasileira. Quase ninguém sabe até hoje, mas na gráfica de Raduan era impresso o jornal Movimento, um dos melhores jornais da resistência democrática. Ele corria riscos pela façanha, ainda que cobrasse pelo serviço.
E vamos ao fim. Retomo agora e ligo as duas pontas da ligação entre Raduan Nassar e roberto freire. Já observei num romance: