A diplomacia do Brasil no governo Lula
O livro do ex-chanceler Celso Amorim, relatando o protagonismo alcançado pela política externa do Brasil durante os oitos anos do governo de Lula, foi escrito em 2014. Mostra que é possível ter uma diplomacia independente. Lido hoje, é um contraponto à diplomacia de Temer e José Serra, que voltou a ser subalterna ao império norte-americano.
Por Carlos Azevedo
Publicado 30/01/2017 16:53
Amorim destaca três grandes empreitadas do Itamaraty: um acordo sobre a questão nuclear do Irã, a rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a aproximação com os países árabes.
Teerã, Ramalá e Doha – memórias da política externa ativa e altiva, do ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim, já seria um livro atual só por retratar exaustivamente os oito anos de política externa do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas está ainda mais na ordem do dia porque oferece oportunidade de comparação com a atual política externa submissa aos EUA. Durante aquele período o governo brasileiro se esforçou para traduzir na política externa o peso real do país na geopolítica mundial.
O ACORDO COM O IRÃ
Percorrendo as primeiras cem páginas do livro (“A Declaração de Teerã – a oportunidade perdida?”), o leitor mergulha numa teia de relações complexas, de viagens cansativas, discussões exaustivas, situações de suspense e até de humor, em que se descortina como fazem política as grandes potências.
Em 2006, durante conversa telefônica com Ângela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, Lula disse que o Brasil tinha condições de ajudar na busca de um acordo com o Irã. Os dois países haviam intensificado muito suas relações comerciais (trocas anuais de 2,4 bilhões de dólares) e se aproximado diplomaticamente. Uma visita de Mahmoud Ahmadinejad, o presidente iraniano, ao Brasil, estava sendo planejada.
As negociações com o P5+1 (EUA, França, Reino Unido, Rússia, China – membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas – e Alemanha) estavam empacadas e sem propostas de lado a lado. Foi quando, em algum momento de 2009, o Irã solicitou a intermediação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). O país persa queria adquirir no mercado internacional de pastilhas (ou varetas) contendo combustível com urânio enriquecido a 20% para seu reator de pesquisas (TRR) produzir isótopos para diagnóstico de tratamento de câncer. Ninguém poderia se opor a isso porque todo país tem direito a desenvolver produção nuclear para fins pacíficos. Além do que, depois de enriquecido a 20%, o urânio não pode ser revertido para fins militares.
A diplomacia dos EUA espertamente arquitetou um “plano de troca” para fazer avançar as negociações. Sabia-se que o Irã já havia produzido cerca de 2 mil quilos de urânio levemente enriquecido (LEU na sigla em inglês) a 4% ou 5%. A ideia era propor uma troca: para cada quilo de urânio enriquecido a 20% que fosse fornecido para o reator do Irã, este deveria entregar, em território estrangeiro, 10 quilos de LEU, num total de 1.200 quilos. Com isso, imaginavam os EUA, se atrasaria em pelo menos um ano o processo de produção de uma bomba nuclear iraniana (em que pese todo o tempo o Irã negar que seu programa nuclear tivesse fins militares). Feita a proposta, o Irã recusou por vários motivos, entre os quais os de não aceitar que seu urânio ficasse em outro país e, basicamente, por nutrir forte desconfiança das reais intenções dos proponentes.
Apesar de até então ter relação superficial e ser mais distante de Lula do que o ex-presidente George W. Bush, Obama pediu um encontro com o brasileiro em julho de 2009, durante uma conferência de chefes de Estado. Obama lamentou que sua mão estendida ao Irã havia sido recusada. Sugeriu que o presidente do Brasil procurasse ajudar no entendimento com o Irã. Pela mesma época fez sugestão semelhante aos dirigentes da Turquia.
Na véspera da chegada do presidente do Irã ao Brasil, em novembro de 2009, Obama enviou uma carta, com os mesmos dizeres, ao Brasil e à Turquia, detalhando os termos que a seu ver pareciam ajustados para um acordo.
Um pouco antes, um enviado especial da Casa Branca, Bill Burns, veio ao Brasil e fez notar a Amorim que o fato de o P5+1 propor receber o urânio (LEU) do Irã significava que passava a haver por parte dessas potências um reconhecimento tácito da realidade do programa de enriquecimento nuclear iraniano. Isso foi dito por Lula a Ahmedinejad durante a visita, mas o iraniano deixou passar batido. No entanto, seu ministro de Relações Exteriores, Manouchehr Mottaki, que o acompanhava, tomou nota.
Durante os seis meses seguintes, Brasil e Turquia se empenharam profundamente em estabelecer um clima de confiança com o Irã e discutir cada aspecto do acordo. Amorim se multiplicava em sucessivas reuniões com as partes, e Lula, muito empenhado, mantinha Obama informado.
Obama começou a ficar pessimista. Numa reunião pedida por Lula e Recep Erdogan, primeiro-ministro turco, o presidente americano mostrou-se pouco à vontade, agressivo até. Reclamou do Irã, qualificou de “ingênuas” as negociações puramente diplomáticas. E fez uma declaração que deixou Lula e Amorim perplexos. Disse que com essa demora, era iminente um ataque de Israel ao Irã. Amorim comentaria com Lula: é um raro caso em que o protegido e não o protetor é quem tem a chave das iniciativas.
Rússia e China, membros do P5+1, tradicionais defensoras do Irã no Conselho de segurança da Nações Unidas, a ONU, surpreendentemente, aceitaram dar apoio às sanções. Em reuniões com os russos e chineses Amorim percebeu o motivo dessa ambiguidade: os países detentores de armas nucleares não apreciam que outros venham se juntar a esse clube restrito. Além disso, obtiveram garantia dos EUA de que seus negócios com o Irã não seriam prejudicados pelas sanções. Assim atuam as grandes potências, reflete o ex-chanceler brasileiro.
Amorim desenvolveu delicadas negociações com os iranianos em um lento processo de avanço. Em 16 de maio de 2010, Lula chegou a Teerã. Encontrou-se com Ahmedinejad e depois com o Líder Supremo, aiatolá Ali Khamenei. Não era comum que o Líder Supremo se encontrasse com chefes de Estado de países não islâmicos.
Data histórica: 17 de maio de 2010. Irã, Brasil e Turquia anunciam a declaração conjunta. Editorial de diário francês Le Monde: “Os livros de História vão guardar esta data, segunda-feira, 17 de maio, quando Brasil e Turquia propuseram à ONU o acordo negociado com o Irã”. Os itens principais:
1. Todos os países (Irã explicitamente citado) têm direito ao uso da energia nuclear para fins pacíficos, inclusive atividades de enriquecimento de urânio;
2. Aceitação da troca de materiais como ponto de partida para maior cooperação nesse campo:
3. O acordo deve ensejar o abandono da estratégia baseada em sanções;
4. Os parágrafos 5 a 8 descrevem os procedimentos relativos ao depósito de 1.200 quilos de urânio do Irã na Turquia e a notificação que Teerã devia fazer à AIEA;
5. A garantia de que o Irã deve receber, “em não mais de um ano”, os 120 quilos de combustível para o seu reator de pesquisa;
6. Enquanto estiver na Turquia, o LEU continuará a ser do Irã (se as cláusulas não fossem respeitadas pelo P5+1, o LEU será devolvido ao Irã).
Lula e Erdogan podiam festejar um êxito que poucos consideravam possível. Até mesmo Amorim estava surpreso com o resultado. A assinatura motivou manifestações de entusiasmo dos negociadores, registradas pelos fotógrafos, mas logo criticadas pela mídia brasileira, que só via dois países democráticos se confraternizando com um “tirano truculento”.
Amorim telefonou para Hillary Clinton, então secretária de Estado americana, que recebeu muito mal a notícia, dizendo que os EUA iam continuar a buscar ampliar as sanções. “Não se pode confiar no Irã”. A rejeição in limine de Hillary causou surpresa até pela linguagem anti-diplomática. A imprensa internacional observou que a razão da acidez de Hillary estava na relação entre a força do lobby israelense e suas pretensões a se candidatar à presidência dos EUA.
Os EUA rejeitaram o acordo. Segundo artigo publicado pelo diário The New York Times, “Washington, ao criticar o acordo e julgá-lo insuficiente, teria ‘mudado a trave de lugar’. O Premio Nobel da Paz El Baradei disse que recusar o acordo era o mesmo que “não aceitar um sim como resposta”.
O dia 9 de junho de 2010 certamente será histórico, diz Amorim. Foi quando o Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas aprovou novas sanções contra o Irã. Brasil e Turquia, então membros temporários do CS, votaram contra. Expressaram assim sua indignação pela rasteira que haviam tomado dos EUA.
Em 2015, cinco anos depois, e diante do fato de que o P5+1 e o Irã firmaram um acordo praticamente igual ao obtido em 2010, crescem as avaliações de que aquela foi uma oportunidade perdida. Com o agravante de que nesse período a população iraniana passou por grandes privações por conta das sanções. E, pior para o P5+1, se o Irã havia produzido 2 mil quilos de urânio levemente enriquecido em 2010, em 2015 já produzira cerca de 10 mil quilos.
Tempos depois, durante almoço em Brasilia, Sergey Lavrov, ministro russo de Relações Exteriores, disse a Amorim: “Se lembra do acordo que Brasil e Turquia negociaram? Se tivesse sido aceito por Washington, teríamos ganhado muito tempo”.
APROXIMAÇÃO COM OS PAÍSES ÁRABES
A segunda das três partes do livro trata da ação diplomática do Brasil para ampliar as relações comerciais e aproximar os países do Oriente Médio na linha Sul-Sul defendida por Lula. Em 19 março de 2003, o ex-presidente praticamente inaugurou sua política diplomática ao fazer vigoroso pronunciamento condenando o bombardeio do Iraque e o uso da violência ilegalmente (sem aval do CS).
O ataque ao Iraque havia posto fim a ilusões de uma ordem internacional pacífica após a Guerra Fria. Lula propôs uma nova geografia econômica e política. O mundo é maior que EUA e Europa, ele disse. Promoveu um relacionamento inédito com árabes e africanos. Propôs uma reunião conjunta de chefes de Estado dos países da América do Sul e dos países árabes.
O presidente brasileiro estava quebrando paradigmas na relação com países diferentes. Relações comerciais à frente, Lula não fugiu dos temas políticos, como criação do Estado Palestino, colinas de Golan, reconstrução do Iraque destruído pela guerra, reforma do CS da ONU e Rodada Doha da organização Mundial de Comércio. Lula dizia em seus discursos que estava “no poder” dos países em desenvolvimento mudar a geografia econômica do mundo.
Como parte dessa ofensiva, Amorim fez um périplo pelos países árabes. Chegou a comentar: “Não se pode fazer politica externa ativa sem avião próprio”. Num só dia tomou café da manhã no Qatar, almoçou no Kuwait e jantou no Líbano (ele e sua comitiva de seis auxiliares). Viajavam num Legacy da FAB, fabricado pela Embraer.
Os frutos comerciais logo apareceram. Os negócios entre Emirados Árabes Unidos e o Brasil quintuplicaram entre 2003 e 2013, com as exportações passando de 550 milhões de dólares para 2,6 bilhões de dólares. As exportações para a Arábia Saudita, de 800 milhões de dólares em 2004, saltaram para 3,5 bilhões de dólares em 2011.
Amorim passou ao ano de 2004 em visitas e preparativos da Cúpula América do Sul e Países Árabes, que se deu em maio de 2005. Lula dava grande ênfase a esse processo de aproximação. Em todos os fóruns também era posta em discussão a candidatura do Brasil a uma vaga permanente no CS. Muitos países manifestavam apoio. A Argentina destoava, fazia corpo mole. Para agradar, o ex-presidente argentino Eduardo Duhalde foi incluído nas viagens. O que poderia melhorar a disposição da Argentina? Em 2005, Amorim fez uma anotação premonitória no seu caderninho: “Quem sabe se o novo papa fosse argentino? Mas isso é lá com o Espírito Santo…”.
A reunião de cúpula foi muito representativa, contou com as presenças de chefes de Estado e de governo e de 1.200 empresários. “Raramente se veem tantos líderes árabes juntos”, disse o chanceler da Tunísia. Grande repercussão internacional: Le Monde e o espanhol El País avaliam o evento como “histórico”, “inédito”.
Logo depois, a diplomacia de Lula teve oportunidade de se mostrar na prática. Em resposta a um ataque do Hezbollah, em julho de 2006, Israel provocou grande destruição no Líbano. Muitos brasileiros ali residentes foram atingidos, sete mortos. Em operação inédita da nossa diplomacia, 3 mil brasileiros foram retirados em meio aos combates em comboios para a Síria e a Turquia. Deu muito trabalho ao Itamaraty coordenar a operação-resgate, mobilizar caminhões para comboios, pedir a Israel para não bombardeá-los, prover abrigos no destino e aviões para virem ao Brasil.
Outro momento de tensão em que a diplomacia brasileira interveio deu-se em fins de 2008, quando tropas de Israel atacaram Gaza. Ataque desproporcional, que resultou em 200 mortos, a maioria mulheres e crianças. Lula se manifestou indignadamente com a omissão dos outros países diante da “carnificina”. Queria algo mais que “notas condenatórias”. Amorim passou a trabalhar em favor de um cessar-fogo imediato, envolvendo-se em reuniões com todos os lados, Israel, Autoridade Nacional Palestina (ANP), Síria, Jordânia e Egito.
Último lance: em 3 de dezembro 2010, em resposta a uma solicitação de Mahmoud Abbas, da ANP, Lula afirmou que “o Brasil, por meio desta carta, reconhece o Estado Palestino nas fronteiras de 1967”. Foi logo seguido por todos os Estados sul-americanos, com exceção da Colômbia. A revista mensal americana Foreign Policy comentou: “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu reformador ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, continuam a criar fatos novos no seu último mês de governo…”.
A RODADA DOHA DA OMC
A terceira parte do livro relata as negociações da chamada Rodada Doha, da OMC. De um lado, os países em desenvolvimento pleiteavam a redução e até a extinção dos subsídios pagos pelos países desenvolvidos aos seus produtores agrícolas, o que inviabilizava a agricultura nos países mais pobres, provocando a miséria e a fome. De seu lado, os países desenvolvidos requeriam a redução das barreiras alfandegárias dos países em desenvolvimento para seus produtos industriais. Amorim esteve engajado nessa tarefa desde 2003, quando assumiu o ministério de Relações Exteriores, até julho de 2008, quando as negociações foram suspensas sine die.
Em maio de 2005 havia esperança. O Brasil conseguiu que a União Europeia recuasse parcialmente em suas posições protecionistas. Le Monde escreveu: “sob pressão do Brasil, União Europeia cedeu e jogou fora algum lastro. Não está mal”. A revista britânica The Economist avaliou: “progresso, enfim”.
Na Conferência de Hong Kong houve duríssimas negociações sobre redução de subsídios agrícolas, com forte resistência da União Europeia. Amorim chegou a anunciar sua retirada das negociações. Voltou, instado pelo representante dos EUA, que disse que algum avanço havia sido dado sobre a data em que os subsídios seriam reduzidos ou totalmente cortados – 2010 – ou até 2013.
Na reunião de Genebra, em julho de 2008, a Rodada Doha fracassou. As posições dos participantes se enrijeceram. Com isso, acabaram por derrubar qualquer solução para o impasse. Em 29 de julho, quatro dias depois do prazo previsto para o encerramento da reunião foi anunciado o colapso das negociações.
Amorim previu que seriam necessários três ou quatro anos para recompor um pacote que permitisse chegar a um acordo. “Com otimismo”, diz ele, já que as negociações não foram retomadas.
Em discurso na Assembleia Geral da ONU, em 2010, Amorim comentou que “os países desenvolvidos não haviam demonstrado o compromisso necessário com a estabilidade econômica global (…). Em nenhuma outra área isso é tão evidente quanto na Rodada Doha da OMC. Uma solução equilibrada nesse processo, que se estende por quase dez anos, favoreceria, com o fim dos subsídios distorcidos e das barreiras protecionistas, a expansão econômica e o desenvolvimento nos países mais pobres, as principais vítimas da visão estreita e mesquinha que ainda prevalece em relação ao comércio internacional”.
Assim se encerrou esse período em que o Brasil se inseriu no “grande jogo” da política internacional. Nas três grandes empreitadas em que se envolveu, apenas teve sucesso na aproximação com os países árabes. O fato é que a diplomacia do “poder suave” (soft power), o caminho das negociações, proposto por Lula, não foi capaz de mudar as relações internacionais. É o caso de perguntar, parafraseando Joseph Stálin: quantas bombas nucleares tem o Brasil?
Teerã, Ramalá e Doha – memórias da política externa ativa e altiva
Autor Celso Amorim
Editora Benvirá
Páginas 520