Jorge Cadima: Ordem liberal

O Ministro dos Negócios Estrangeiros – e talvez futuro presidente – alemão, Steinmeier, declara que com Trump "a velha ordem mundial do Século XX acabou para sempre". Ilustres comentadores choram o fim da "ordem liberal" mundial. 

Por Jorge Cadima, no Avante

Diretora-geral do FMI, Christine Lagarde

Para além de reais contradições, está em marcha uma gigantesca operação de ilusionismo, para fazer crer que as tragédias e sofrimento que o capitalismo mundial seguramente trará aos povos (fosse quem fosse o presidente dos EUA) serão culpa apenas do inquilino de turno na Casa Branca.

E para que as tragédias e sofrimento do passado recente – desde as guerras que destruíram o Oriente Médio, a Ucrânia e outras paragens, ao empobrecimento forçado dos povos enquanto anafados banqueiros recebem os dinheiros do erário público – sejam mais tarde falsamente recordados como a Terra Prometida do Leite, do Mel e da Ordem Liberal.

A quadra natalícia trouxe mais um exemplo da verdadeira 'ordem liberal'. A diretora-geral do FMI, sempre intransigente carniceiro dos povos em nome do 'rigor' e da 'boa gestão' dos fundos públicos, foi condenada por negligência pelo tribunal especial francês que julga os membros do governo.

Mas não recebeu qualquer pena, nem vai perder o seu cargo no FMI. A história é nada edificante, mas muito instrutiva. Em 1992, Bernard Tapie foi nomeado ministro, pelo então Presidente e 'son ami', Mitterrand. Na altura as mulheres de César ainda tinham de parecer virtuosas e Tapie foi aconselhado a vender a sua participação maioritária na Adidas, operação gerida pelo banco Crédit Lyonnais.

No ano seguinte, a Adidas foi vendida por mais do dobro do valor entregue a Tapie, que se sentiu lesado e pôs o caso em tribunal. Em 2007, Tapie muda de cavalo e apoia Sarkozy. Já com Sarkozy presidente e Lagarde a sua ministra da Economia e Finanças, o caso Tapie é retirado dos tribunais e entregue a uma comissão arbitral, que se pronuncia pelo pagamento de 403 milhões de euros (!) a Tapie, como compensação por danos sofridos. A Agência para as Participações Estatais (APE) opõe-se repetidamente e por escrito, mas Lagarde, ministra tutelar da APE, avança com a compensação que entretanto, dada a falência do Crédit Lyonnais, sai dos cofres públicos.

Em 2015, o Tribunal de Recurso de Paris considera que o parecer da comissão arbitral é "fraude", dadas as "antigas, estreitas e repetidas" ligações dum dos seus três membros com Tapie e o seu advogado. O ex-chefe de gabinete de Lagarde e atual diretor-geral do gigante das telecomunicações francesas Orange, Stéphane Richard, está "sob investigação formal por 'suspeita de fraude organizada'", em relação ao caso. Mas Lagarde vai continuar a ditar cortes troikeiros aos povos do mundo, recebendo mais de meio milhão de dólares por ano, livre de impostos e sob os aplausos da 'ordem liberal'. Em 2009 o Financial Times declarou-a a melhor ministra das Finanças da Europa e o ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton afirma agora que ela "é a melhor coisa que aconteceu ao FMI desde há muito tempo" e que a sentença do Tribunal francês foi um "dia negro para a justiça francesa".

Lagarde foi antecedida no FMI pelo 'admirador' de empregadas de hotel, Strauss Kahn. Que por sua vez foi antecedido pelo espanhol Rodrigo Rato, vice-presidente dum governo PP, e preso na Espanha em 2015 acusado de "fraude, apropriação indevida de bens e branqueamento de capitais". Rato levou o banco espanhol Bankia à falência em 2012 e o seu nome surge nos Panama Papers. É uma overdose de virtuoso rigor.

Para os povos, escolher entre Trump ou a 'ordem liberal' é como achar que a mafia mudava se fosse a família Gambino ou Meyer Lansky a gerir os casinos de Havana. Mais vale fazer como Fidel e a Revolução Cubana, há 58 anos, ou a Revolução de Outubro, faz 100 anos: correr com eles todos.