Marcelo Diniz: A construção do elemento suspeito
Na tarde da última sexta-feira (20), Mário Ferreira, cidadão, trabalhador (motorista), entrou na Casa dos Frios (loja bastante conhecida e conceituada do bairro das Graças, em Recife) para comprar bolos de rolo. Como o valor da conta ultrapassava os seiscentos reais de que dispunha no momento, deixou o dinheiro que tinha consigo no caixa e foi até o automóvel para buscar o dinheiro que complementaria a quantia.
Por Marcelo Serra Diniz*
Publicado 24/01/2017 10:11
Ao retornar, a loja havia sido trancada, Mário foi impedido de entrar e segundo relatos, teria sido abordado pela Polícia Militar que compareceu com nada menos que três viaturas. Três.
Indignado, o advogado Gilberto Lima, patrão de Mário, divulgou em seu perfil numa rede social, um texto contando o ocorrido. Depois, surgiu um vídeo de Mário e diversas outras postagens, que chamaram a atenção da imprensa local. Até aí, tudo ruim, mas iria piorar: entrariam em cena a sutileza da grande mídia e da empresa pra deslegitimar a denúncia.
Começando pelo título da matéria divulgada nesta sábado (21), pelo G1: “Cliente é confundido com assaltante em loja no Recife e relata constrangimento”. Confundido com assaltante? Havia algum assaltante no local? Não. O que havia era um homem negro, vestido com roupas comuns, numa loja chique, fazendo uma compra. Infelizmente, no Brasil isso é suficiente para deixar evidente o preconceito racial que se esconde por trás de justificativas, como as que foram dadas pelo advogado da Casa dos Frios, na nota trazida no final da matéria e das quais falarei mais abaixo. Como disse Gilberto Lima em seu texto, “Nas vezes em que ele vai trajado de ‘motorista de madame’ não houve nenhum problema. Todavia, ele estava de trajes informais – calça jeans, camisa de malha, tênis. Aí simplesmente ele foi detido e acusado de sabe-se lá de quê porque é negro”.
Já a nota da Casa dos Frios, diz que uma funcionária teve a impressão de ver uma arma por dentro da camiseta de Mário, mas ele desmonta o argumento: “Eu estava com uma calça e uma blusa justas. Quando me abaixei pra pegar os bolos, minhas costas apareceram e dava pra ver que eu não tinha nada”.
Mais à frente, a mesma nota diz que: “Ressaltamos que a suspeita não foi atribuída a cor do cidadão, mesmo porque temos vários clientes e funcionários negros, sendo certo que a cor nunca foi e nunca será motivo de tratamento desigual em nossos estabelecimentos”. Ora! Racismo não é só uma atitude momentânea. É uma ideologia, uma concepção, que influencia até mesmo na formação do olhar sobre nós mesmos/as e sobre os/as outros/as. Ao mesmo tempo em que o Racismo procura nos encaixar em estereótipos marginalizados, ele também faz com que tentemos excluir deles.
Infelizmente, muitos/as negros/as, inconscientemente, negam sua condição como estratégia de fuga. Não é porque uma empresa contrata pessoas negras que ela deixa de ser um espaço onde possam ocorrer episódios de discriminação.
Querem um exemplo? Eu mesmo já sofri com um episódio de discriminação, executado por uma pessoa negra. Estava eu há alguns anos numa papelaria de Caruaru, realizando minhas compras, quando percebi que o segurança da loja me seguia. Um senhor negro, baixinho, muito atento a todos os meus movimentos. Eu nem ia demorar na loja, pois embora precisasse comprar diversas coisas, estava sem tempo. Mesmo assim, mudei de ideia e resolvi realizar todas as compras naquele dia. O segurança me seguiu por mais de 40 minutos, achando que estava sendo sutil. Finalmente me dirigi ao caixa e ele continuava em alerta. Paguei as compras e perguntei à moça do caixa quem era o gerente da loja e onde ele se encontrava. Aí é que o senhor ficou mais desconfiado. A moça me indicou o gerente e eu educadamente me apresentei e relatei o ocorrido. Qual foi a resposta do gerente? “Veja, nossa loja fica no centro e há muitos pequenos furtos, então nosso segurança precisa ficar atento para evitar perdas”. Então eu lhe perguntei qual era o critério utilizado pra definir dentre tantas pessoas que estavam na loja, quais seriam as pessoas seguidas e ele ficou mais branco do que já era. Finalizei pedindo que ele me apontasse ao menos um critério que não fosse Racista ou Classista e ele ficou calado. Seria fácil colocar a culpa no segurança, mas essa é uma visão construída socialmente. Eu jamais comprei nessa loja novamente.
O que aconteceu comigo, o que aconteceu com Mário, acontece todos os dias num país em que a maior parte da população é negra, mas é estimulada e educada a todo o tempo a pensar que a figura do negro é a figura a ser evitada, pois é objeto de desconfiança, descrédito, ofensa e exclusão estética. Esse é o resultado de séculos de violência institucional: primeiro com o sequestro, depois com os horrores da escravidão e por último, com o descaso e a falta de reparação, posturas que condenam a população negra às piores condições de moradia, trabalho, educação e saúde, mas também a um ambiente hostil à nossa cultura, identidade e, em última instância, à nossa existência.
É preciso cobrar das autoridades que se apure em detalhes cada caso como esse e que se puna os culpados e as culpadas na forma da lei. É preciso também que a imprensa aja com responsabilidade ao narrar esses acontecimentos e por fim, a sociedade precisa pressionar para que se modifique nosso Código Penal, que protege racistas com a tipificação de “injúria racial”, pois a injúria racial obedece a uma ideologia e não atinge apenas a pessoa envolvida em cada um desses episódios, ela dói em cada um/a de nós que toma conhecimento de uma reafirmação de que continuamos sendo considerados/as menos gente por conta de uma questão étnica/racial.
#CasaDosFriosNuncaMais!
#NósNãoSomosSuspeitos!
#ANegradaMereceRespeito!
Marcelo Serra Diniz é Coordenador Estadual de Comunicação da União de Negros pela Igualdade (UNEGRO-PE).