Noam Chomsky: Desenvolvimento econômico da URSS versus Ocidente

Noam Chomsky é reconhecidamente um anarquista, crítico tanto do capitalismo (e principalmente do imperialismo dos EUA) como dos modelos socialistas implementados a partir do século 20 em diversas partes do mundo. No entanto, o intelectual estadunidense reconhece os grandes benefícios que o socialismo real levou aos povos do Leste Europeu e principalmente da União Soviética.

Por Alejandro Acosta, no Diário Liberdade

Apartamentos em construção (ao fundo) em um dos subúrbios de Moscou em meados dos anos 1970

Em lembrança das conquistas da URSS, que desapareceu em 25 de dezembro de 1991, há exatos 25 anos, reproduzimos a resposta a uma pergunta sobre o suposto fracasso da experiência socialista soviética, em uma palestra realizada nos anos 90 nos EUA.

[…] O que você acha do sistema econômico soviético, ele funcionou ou fracassou? Bem, em uma cultura com traços profundamente totalitários, como a nossa, sempre se faz uma pergunta totalmente idiota a esse respeito: pergunta-se, como é a Rússia economicamente comparada com a Europa Ocidental ou com os Estados Unidos? E a resposta é que ela saiu-se muito mal. Mas uma criança de oito anos entenderia qual é o problema com essa pergunta: essas economias não têm nada semelhante há seiscentos anos – seria preciso retornar ao período pré-colombiano, pois só depois disso é que a Europa Oriental e a Ocidental tiveram alguma coisa mais ou menos semelhante economicamente. A Europa Oriental começou a virar uma espécie de área de serviço tipo Terceiro Mundo para a Europa Ocidental, antes mesmo do tempo de Colombo, fornecendo recursos e matérias-primas para as emergentes indústrias têxtil e metalúrgica do Ocidente. E a Rússia continuou um país de Terceiro Mundo muito pobre, durante séculos [4]. Isto é, havia uns poucos bolsões de desenvolvimento aqui e ali, e também um opulento setor de elites, escritores e assim por diante – mas isso é como em qualquer país do Terceiro Mundo: a literatura latino-americana é uma das mais férteis do mundo, por exemplo, mesmo com seus povos estando entre os mais pobres do mundo. E, se vocês olharem só o desenvolvimento econômico da União Soviética no século 20, ele é extremamente revelador. Por exemplo, a proporção entre os salários da Europa Oriental e os da Ocidental declinou até por volta de 1913, e então começou a subir muito rápido até em torno de 1950, quando mais ou menos se equilibraram. Então, em meados dos anos 1960, conforme a economia soviética foi começando a se estagnar, essa proporção iniciou um pequeno declínio, e então caiu um pouco mais até o final dos anos 1980. Depois de 1989, quando o Império Soviético finalmente foi para o espaço, ela entrou em queda livre – agora está de novo aproximadamente o que era em 1913 [5]. Tudo bem, isso lhes diz algo sobre se o modelo econômico soviético teve sucesso ou não.

Ora, suponham que fizéssemos uma pergunta racional, em vez de perguntar uma insanidade do tipo “como saiu-se a União Soviética, em comparação com a Europa Ocidental?”. Se quisermos avaliar modos alternativos de desenvolvimento econômico – gostem deles ou não –, o que devíamos perguntar é como se saíram sociedades que eram como a União Soviética em 1910, comparadas com ela em 1990? Bem, a História não fornece analogias precisas, mas existem boas escolhas. Então poderíamos comparar a Rússia e o Brasil, digamos, ou Bulgária e Guatemala – essas são comparações razoáveis. O Brasil, por exemplo, devia ser um país super-rico: tem recursos naturais inacreditáveis, não tem inimigos, não foi praticamente destruído por invasões só neste século [i.e., a União Soviética sofreu perdas imensas nas duas Guerras Mundiais e na intervenção ocidental de 1918 em sua Guerra Civil]. De fato, o Brasil está muito mais bem equipado para se desenvolver do que a União Soviética jamais esteve. Tudo bem, comparem só, o Brasil e a Rússia – essa é uma comparação razoável.

Bem, há um bom motivo pelo qual ninguém o faz, e só fazemos comparações idiotas – porque, se compararmos o Brasil e a Rússia ou a Guatemala e a Hungria, chegaríamos a respostas indesejáveis. O Brasil, por exemplo, para talvez 5% ou 10% de sua população, é mesmo como a Europa Ocidental – e para em torno de 80% de sua população é meio como a África Central. De fato, para provavelmente 80% da população brasileira, a Rússia soviética teria parecido um céu. Se um camponês guatemalteco de repente fosse parar na Bulgária, ele provavelmente acharia que tinha ido para o paraíso ou algo do gênero. Então, não façamos essas comparações, só fazemos comparações malucas, que qualquer um que pensasse por um segundo veria que são absurdas. E todo mundo aqui as faz, mesmo: todos os acadêmicos as fazem, os comentaristas do desenvolvimento as fazem, os comentaristas dos jornais as fazem. Mas pensem só por um segundo: se quiserem saber quanto sucesso teve o sistema econômico soviético, comparem a Rússia de 1990 com algum lugar que fosse como ela em 1910. Precisa ser brilhante para perceber?

De fato, o Banco Mundial forneceu sua própria análise do sucesso do modelo de desenvolvimento soviético. O Banco Mundial não é uma organização radical, como vocês com certeza têm consciência, mas em 1990 ele descreveu a Rússia e a China como “sociedades de relativo sucesso, que se desenvolveram libertando-se do mercado internacional”, embora tenham finalmente entrado em apuros e sendo obrigadas a voltar ao rebanho [6]. Mas “de relativo sucesso” – e, se comparadas com os países a que se assemelhavam antes de suas revoluções, de muito sucesso.

Na verdade, era exatamente isso que os EUA temiam na Guerra Fria, para início de conversa, caso queiram saber a verdade – que o desenvolvimento econômico soviético simplesmente parecesse bom demais para os países pobres do Terceiro Mundo, sendo assim um modelo que quisessem seguir. […] Então, se vocês lerem os arquivos do governo, agora liberados – dos quais há hoje muitos disponíveis –, verão que a principal preocupação dos maiores estrategistas ocidentais, já em plenos anos 1960, era que o exemplo do desenvolvimento soviético estava ameaçando desmontar todo o sistema mundial americano, porque a Rússia estava de fato indo tão bem. Por exemplo, sujeitos como John Foster Dulles [secretário de Estado norte-americano] e Harold Macmillan [primeiro-ministro britânico] estavam se borrando de medo com o sucesso desenvolvimentista da Rússia – e era um sucesso [8]. Isto é, notem que hoje em dia ninguém se refere à Rússia como um país “do Terceiro Mundo”, é chamada de país “de desenvolvimento deficiente” ou algo desse gênero – em outras palavras, ela realmente se desenvolveu, embora, em última análise, não tenha dado certo, e agora podemos ir em frente e começar a reintegrá-la de volta ao Terceiro Mundo tradicional.

[…] As chamadas “reformas econômicas” que andamos instituindo nos países do antigo bloco soviético foram uma absoluta catástrofe para a maior parte de suas populações – mas investidores ocidentais e uma elite clássica de super-ricos do Terceiro Mundo estão fazendo fortunas imensas, em parte pilhando boa parte da “ajuda” que é mandada para lá, de vários modos [9]. De fato, o UNICEF [Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância] divulgou um pequeno estudo, pouco tempo atrás, avaliando só o simples custo humano, como mortes, do que eles chamam de “reformas capitalistas” na Rússia, na Polônia e nos demais (e, aliás, eles aprovaram as reformas) – e, para a Rússia, calcularam que houve cerca de meio milhão de mortes extras em um ano, só como resultado dessas reformas. A Polônia é um país menor, portanto o número foi menor, mas os resultados foram proporcionais por toda a região. Na República Tcheca, a porcentagem da população vivendo na pobreza passou de 5,7% em 1989 para 18,2% em 1992; na Polônia, os números são algo como de 20% para 40%. Então, se vocês caminharem agora pelas ruas de Varsóvia, é claro, vão encontrar um monte de coisas muito legais nas vitrines das lojas – mas é o mesmo em qualquer país do Terceiro Mundo: um monte de riqueza, muito exiguamente concentrada; e pobreza, fome, morte e imensa desigualdade para a vasta maioria [10].

[…]

Então, o fato de que a Rússia safou-se da tradicional área de serviço ocidental terceiro-mundista e estava se desenvolvendo em um rumo independente era realmente uma das principais motivações por trás da Guerra Fria. Isto é, a conversa típica que sempre se escuta a respeito disso é de que estávamos nos apondo ao terror de Stalin – mas isso é uma total conversa fiada. Em primeiro lugar, não deveríamos poder sequer repetir essa conversa, sem um senso de auto-ironia, dados os nossos antecedentes. Nós nos opomos ao terror de mais alguém? Opomo-nos ao terror da Indonésia em Timor Leste? Opomo-nos ao terror na Guatemala e em El Salvador? Opomo-nos ao que fizemos no Vitnã do Sul? Não, nós apoiamos o terror o tempo todo – na verdade, nós o pomos no poder.

* Extraído do Capítulo 5 (“Dominando o Mundo”) do livro Para entender o poder – o melhor de Noam Chomsky, editado por Peter R. Mitchell e John Schoeffel (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, pp. 194-198).

** As notas de rodapé sinalizadas no texto referem-se às notas originais do livro, que podem ser acessadas em: http://understandingpower.com/files/AllChaps.pdf entre as páginas 163 e 168 do arquivo em PDF.