Cangalha, a voz do Brasil profundo, das composições sensíveis e fortes

Ao mesmo tempo que ela roda a saia com uma leveza de flutuar, encanta com uma voz de quem traz consigo toda ancestralidade e a força da música brasileira, mas a do Brasil profundo, aquele que não está nas paradas de sucesso. Essa é Railídia Carvalho, a cantora, jornalista, guerreira, que acaba de lançar seu primeiro disco: Cangalha.

Por Mariana Serafini

Railídia Carvalho - Marina Couto

Até escutar o disco pela primeira vez, me parecia impossível compilar uma roda de samba para os fones de ouvido que carregamos na mochila com o objetivo de deixar a vida das grandes cidades mais leve. Mas foi exatamente isso que Rai e a banda que idealizou e concretizou junto com ela Cangalha fizeram.

A dona da voz potente de Cangalha consolidou sua carreira em São Paulo, mas sem deixar de lado em nenhum momento sua origem paraense. O Pará está presente em tudo que ela fala e faz diariamente, e com a música não poderia ser diferente, seu disco traz a potência dos tambores, da música das comunidades negra e indígena com suas expressões de sambas, batuques, temática afro-religiosa e folguedos, como o boi bumbá. As culturas de um Brasil que resiste. “Estamos criando um show que tem diversos timbres, esse batuque do Brasil, coisas do Pará, os sambas dos meus contemporâneos, composições nossas. É um caminho de trabalho de autores, desvendando outros sons, como os da região Norte como o marabaixo. A minha vontade é dividir esses sons com as pessoas e fazer circular por aí falando para o povo do jeito do nosso grupo sentir e perceber a música”.

Cangalha é manifesto, e também é poesia, leveza, e acima de tudo: música, música de raiz de quem canta e toca por amor e por responsabilidade política. Há 17 anos Railídia integra a banda Inimigos do Batente, e há pouco mais de uma década eles embalam as rodas de samba do Ó do Borogodó, na capital paulista. O disco solo dela é resultado deste universo, deste trabalho árduo de quem se divide em dois, três, para conseguir cantar num país onde o artista não é valorizado como deveria.

Parece curioso que, com tantos anos de dedicação à música, só agora Railídia tenha lançado seu primeiro disco. Mas ao conhecer sua trajetória tudo se esclarece naturalmente. A rotina desta sambista, mãe e jornalista, é “a rotina da mulher brasileira que chega do trabalho, faz comida, coloca os filhos para dormir, acorda para fazer o café, lava, passa, cuida da casa” e além de tudo isso “vai cantar na roda, no show, no botequim até a madrugada e no dia seguinte precisa estar inteira para escrever sobre a Reforma da Previdência do [Michel] Temer”.


Foto: Marina Couto

Ao conversar com a Rai, fica claro o respeito e a gratidão que ela tem pelos amigos, mas é na roda de samba que ela revela todo esse carinho e apreço por quem, junto com ela, produziu Cangalha. Ela ri fácil, pega na mão, abraça, faz questão de apresentar um por um, dizer o que faz, de onde veio, porque cada um é fundamental de alguma forma. “A maior influência estética e de tudo que tive, na ciência e no respeito ao samba, foi com o músico e pensador da cultura brasileira Fernando Szegeri., meu parceiro. Tem também o grupo A Barca, que admiro demais desde o trabalho deles inspirado no pensamento de Mário de Andrade”, explica a cantora que não poupa elogios quando o assunto são os amigos.

O primeiro disco de Railídia nasce a partir desta relação com os amigos e a última faixa, Sandália de Prata, é uma ode a amizade: todos se reúnem para cantar juntos e fechar com chave de ouro a obra. “Em 2012 foi o ano em que conheci o violonista Paulo Godoy. Ele abraçou essa ideia de um show, de um CD, organizou o meu repertório, foi o meu porto, meu incentivador. Um cara raro. Depois chegou Ed Encarnação, baiano, baterista, batuqueiro com a linguagem dos batuques e tudo começou. Em 2014 chegou o maestro Felipe Siles, sanfoneiro, pianista e o som se encorpou. Helinho e Koka traziam a sonoridade centenária do samba. Acho que eles também têm cem anos que estão no samba! [brinca]. Eles são do Inimigos do Batente”.

O objetivo, explica Rai, é realmente dar ao disco esta impressão de estar na roda porque “a roda é inclusiva, comunitária, a gente se olha nos olhos e canta incessantemente”. Segundo Fernando talvez as faixas sejam longas porque “tem o traço de roda, que não para”.

Um projeto com “a cara e a coragem”

Railídia não é produto de nenhuma grande gravadora, não estampa as capas de cadernos culturais e para gravar seu primeiro disco precisou se desdobrar em duas, como muitos artistas contemporâneos fazem. Parte do projeto foi custeado com a ajuda de pessoas que contribuíram através de um site de financiamento coletivo, outra foi ela quem bancou com seu trabalho de jornalista.

Amigos e admiradores do trabalho da Rai também ajudaram de outras formas para que Cangalha ganhasse vida. “A dificuldade maior é a grana mesmo. Paira sobre o sambista, sobre a cultura popular, um preconceito de que é uma arte menor, talvez porque o conhecimento não se construa formalmente, na escola, Ou talvez porque é o universo daqueles que sempre foram excluídos de tudo no Brasil. O negro, o pobre, o marginalizado, da favela, da periferia, do subúrbio. É tudo o que os privilegiados que mandam no país querem esconder. Hoje o samba virou moda ou talvez esteja saindo de moda, dai é mais difícil escancarar esse preconceito que falo, mas ele está presente quando você oferece, por exemplo, um cachê menor e condições de trabalho ruins para o sambista”, denuncia.

Todos os músicos tocaram sem cobrar cachê e a produção também foi feita por amigos. “Não acho que seja certo, mas os amigos foram muito, extremamente generosos”. Rai destaca o trabalho de Stefânia Gola e André Magalhães, responsáveis pela produção executiva e musical. “Estiveram ali ao meu lado nessa concretização desse som, que eu ouvi durante muito tempo na minha cabeça”.

Como nasce de um processo coletivo, Cangalha já está disponível na internet em sites de música por demanda (Spotify e Deezer), além de lojas de música online. Mas Rai é “das antigas”, como ela mesma diz, e faz questão de ter o CD físico. Este em breve estará disponível para ser comprado no Ó do Borogodó e pela internet através do contato com a vocalista por e-mail railidia@gmail.com. “Eu posso mandar pelos Correios. Canto, danço, produzo e também envio”, brinca. Tudo isso, por R$20 reais!

Música desde o berço, para as próximas gerações

Railídia vem de uma família de pessoas completamente apaixonadas por música e traz essa paixão nas veias. “A música vem mesmo da minha família. Eu me lembro bem pequena a gente ouvir de tudo. Mamãe é festeira, meu pai adorava Nelson Gonçalves e Noite Ilustrada. Mamãe gostava de Beth Carvalho e Alcione. Também sempre ouvíamos muito brega, a música para dançar do Pará, que é diferente desse technobrega de hoje”.

Quando pequena, Rai ainda não podia imaginar que seu primo Derny [autor da faixa O Amanhã] seria a primeira pessoa a lhe ensinar o caminho da música. A imagem que ela guarda é deste familiar querido participando de festivais e lhe ensinando o repertório da MPB. “Sempre gostei de cantar e no Pará até dava canja em barzinho! Uma vez, quando criança, participei de um show de calouros e ganhei o troféu abacaxi”, conta aos risos.


Foto: Marina Couto

 

A foto que ilustra o encarte do disco traz todo o valor que Rai dá aos ancestrais. É um retrato de família onde está seu avô, João Valente, um músico que construía instrumentos na região do baixo Amazonas, na cidade natal da cantora, Almeirim.

“Um fato que me impressiona muito é que vovô João Valente, a quem eu dedico o CD, sabia tocar uma música do Pixinguinha, como Urubu Malandro, que é do repertório do choro e os irmãos da minha mãe, meus tios Dudu e Didi sabiam músicas do repertório do 4 Ases e um coringa, sambas sincopados. Tudo chegava no norte (e nas cidades ribeirinhas) através da Rádio Nacional. Os primos do meu avô, da família Brasão, eram músicos de sopro. Mamãe lembra que era bonito ouvir o tio Pedro Brasão tocando clarinete. Eu não vivi essa época mas ela está entranhada em mim”, conta.

Com toda esta bagagem familiar, Rai parece levar consigo a responsabilidade de passar o amor pela música para as próximas gerações, por isso conta com orgulho sobre a filha Iara. “Fico feliz demais porque o que eu sinto que o samba encantou a minha filha. Ela adora a roda, canta vários sambas”.

Apesar de não integrarem esta família de apaixonados por música, Rai faz questão de cumprimentar os colegas da redação do Vermelho. “Faz um ano que estou com eles e as reflexões diárias sobre o universo do trabalhador brasileiro, o movimento sindical e social me aproximam de algo que eu sempre admirei: a vocação para a batalha, resistência e para a celebração que o povo desse país tem”.

Serviço

Lançamento do disco Cangalha

Disponível: Deezer e Spotify
Compra online: iTunes
CD físico: railidia@gmail.com