Publicado 17/12/2016 23:53
A jornalista e escritora Christiane Brito assim abriu o meu texto no jornal português Tornado:
“Urariano Mota é um grande escritor do Recife (Pernambuco). É autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil.
Aqui ele apresenta seu novo livro, belíssimo “A mais longa juventude”, que está disponível para leitura gratuita no Kindle. Fala de política, amor e sexo, num tempo que flui na ilógica da memória da ditadura e no resgate da força de uma juventude eternamente indignada contra a opressão..
Bom, Urariano é um brasileiro de Olinda e Recife, tem outra riqueza cultural, linguajar, fiquei muito feliz quando ele quis colaborar com o Tornado”.
A seguir, a breve apresentação que escrevi para o Tornado:
Sobre o meu mais difícil romance ainda não posso falar. Ele fala por si, desde o título. Creio que dele falarão melhor alguns trechos, que copio a seguir:
“Há um pensamento de Goethe, registrado por Eckermann , que fala da puberdade repetida. É um conceito luminoso, sem dúvida. Mas essa juventude ampliada ainda não seria uma ambição desmedida, pois mais adiante, ainda segundo Eckermann, o poeta de gênio insaciável expressou uma crença na imortalidade com estas palavras:
‘A crença em nossa imortalidade vem do conceito de atividade, pois se eu me conservo ativo ininterruptamente até a morte, a natureza vê-se obrigada a conceder-me uma nova forma de existência logo que o meu espírito não possa suportar mais a minha atual forma corpórea’.
Narro com os olhos que não se negam a ver. Atravessamos o tempo como uma flecha cujo alvo é o que canto e conto.
Acompanho os fios brancos de suas cabeças se tornarem frágeis, quebradiços, e me falo e percebo que algumas não piscaram no alto. No píncaro do tempo, não decaíram, como se fossem uma revolta contra a biologia, contra a organização da vida que se desorganiza e se desintegra quando chega ao fim. Parodiando Goethe no poema Um e Tudo, eles foram atravessados pela alma do mundo, e com ela lutaram sem descanso, como se vivos pudessem ter a eternidade. Tomaram outras formas, é certo, mas mantiveram a permanência do ser da juventude. Como? Não sou um filósofo, e assim não posso escrever “uma análise concreta de uma história concreta”, para usar frase dos anos de 1970, que parecem vir de longe. São anos de outro século, de outras vidas, de outros costumes, de outro país. Até de outra humanidade, eu diria. Para os mais jovens, seria como entrar em uma sala do cinema para ver um encantador filme em preto e branco. “Eles eram assim? Meu Deus, que doidos”. E como não sou um filósofo, tenho que falar desses companheiros de jornada como um escritor. E por isso as minhas mãos tremem. Em lugar de gelo ou de as amarrar, livro-as pela crueldade, que pode ser remédio para a ternura que me embaraça. Mas como ser cruel com o objeto que nos assalta e se revela como uma perseguição? Então que sejamos verdadeiros, apenas. Isso é o máximo dos máximos que poderei sonhar.
Há uma raiz que brota e não a cultivamos. Ela é maior que as nossas forças para soterrá-la, vem, cresce e rebenta. É a nossa cara de infância. É a nossa cara de juventude. Nós não somos esses senhores que andam por aí sérios, graves, portadores de condecorações e votos de louvor. Não. Nós somos os anteriores. Nós somos os filhos de Maria, Dagmar, Ana Rita. Não passamos de filhos sem mãe que nos metemos nessa cara de importantes senhores na superfície. Essas roupas, bens, cargos, lustres e lixos não nos dizem respeito. Falamos grosso e somos frágeis. Levantamos cacetes, falos, coxas e seios, mas não passamos de crianças que perderam seu colo e remédio. O melhor de nós é o que sobrevive a essa pele de rugas. E volta à tona em irrupção súbita, vulcão silencioso e ativo. Ainda que sentimento, não é sentimental. É alma fina alma, que sempre houve e se ocultava. E retorna em ataque vitorioso de guerrilha. Em lugar de derrotados, aqui nos subjugamos para melhor honra.
Pergunto ao novo dono do prédio onde morei se existe acima de nós uma água-furtada. Ele me olha como os cidadãos saudáveis olham os assaltantes ou loucos. Corre sobre mim, de alto a baixo, a sua diferença e me responde: ‘Eu não sei’. E não posso nem devo lhe dizer que procuro Selene, Zacarelli, Batráquio, Luiz do Carmo e o jovem que fui ali.
‘Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente’
Assim escreveu Manuel Bandeira ao evocar a casa do avô na Rua da União, que fica na esquina. Mas isto não é o poema de Bandeira. Isto é uma narração de revolta, que exige o retorno do que fomos. E por isso desço e procuro a água-furtada onde um dia me escondi. O lugar onde à noite ouvi Ella Fitzgerald sem vitrola. Aquele, onde ouvi Ella somente ao alisar a capa do disco, que girava em mim. E por isso vou ao muro do Parque 13 de Maio e nele subo, eu, este senhor que não pula mais de qualquer altura, eu, este senhor que deseja a vida de antes retornada, com esforço vou à grade sobre o muro e busco o pássaro da juventude. E o encontro numa pequena elevação do telhado, oculto da vista do público, das pessoas que na calçada estranham um senhor obeso arfando. Eu te achei, nós te achamos, pássaro…
– Nós estamos no XXI. Temos informações que antes não existiam. Isso quer dizer, por exemplo: a ciência caminha para a descoberta da imortalidade. É claro, é tudo muito rudimentar ainda. Mas pode ser alcançada ainda em nossa geração – Zacarelli me fala.
Mas o que faremos da imortalidade? O que plantaremos no lugar do que é efêmero, que retira do próximo fim o seu gozo? Como teremos a saciedade sem a fome? Seria a imortalidade o paraíso sem o seu contrário, uma duração eterna do que é fluido e fugaz?
O que não é mais Luiz do Carmo está entre flores. O que foi, eu sei. O que não é, é este sobre o qual os amigos têm os olhos com lágrimas. Então, não sei de onde me vêm palavras que digo a ele me dirigindo a seus filhos. Não sei bem o que falei, apenas possuo imagens que destaquei sobre o escritor. O jornalista. O homem de partido. Mas acima de tudo o companheiro de geração. Olho para o corpo de Luiz do Carmo, olho para os filhos, e só me vem o mais íntimo, o que não posso falar. Eu sei e não posso, não devo, para não cair no mais lamentável espetáculo que um homem pode cair. “Como escutar Ella Fitzgerald? Você não tem vitrola”, ele me disse. O mais nu e mais íntimo, que fala da entrega da alma ao melhor, à fruição da arte, ao espírito mais belo e rebelde da juventude. Engasgo, e por estar engasgado sei que devo sair do velório. A minha mulher me dá o braço. Me atormenta, mas não falo a pergunta que escrevo agora:
– Para onde vamos?
Saio carregado”.
O personagem sai carregado. Mas assim não acabo o livro. Até mesmo a cópia do fim me dói no peito. Eu só espero que o romance A mais longa juventude alcance o coração de todo humano, porque do meu ele saiu.