Justificativa de Doria para mudar Virada criminaliza população pobre
Em um manifesto sobre a Virada Cultural lançado por 55 organizações sociais, a maioria ligada às periferias, integrantes de coletivos culturais, pesquisadores, artistas e militantes de direitos humanos consideraram que as declarações usadas pelo futuro secretário de Comunicação de São Paulo, Fabio Santos, para justificar a mudança de local e perfil do evento, criminalizam os moradores das periferias.
Publicado 09/12/2016 11:06
O prefeito eleito João Doria (PSDB) anunciou nesta semana que a Virada será transferida para o Autódromo de Interlagos, na zona sul, a mais de 20 quilômetros da região central da cidade.
Após o anúncio, Santos chegou a afirmar que o evento mudaria de local por causa “da galera que vem da periferia” que seria responsável por arrastões. “O problema da Virada é que a Polícia Militar não tem capacidade de controlar os pontos de acesso (às estações), que são os mais variados”, disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
“É inadmissível que um secretário municipal (…) nos criminalize e veja nossos bairros como depósitos daquilo que não se quer mais, e não como cidadãos”, afirma o manifesto.
Santos, que é vice-presidente da agência de comunicação CDN, disse: “O que acaba acontecendo – me perdoe a crueza – é que você tem uma galera que vem da perifa, alguns organizados para fazer isso”.
“Falas como a de Doria e de seu escolhido para a Comunicação incentivam a ação violenta das polícias e o extermínio simbólico promovido pela mídia. Por décadas e décadas, nossos bairros foram roubados e nós fomos levados a ser mão de obra barata a ser explorada na ‘cidade’, construindo parques que não podíamos entrar, morrendo em obras de metrô longe de nossas casas. Apesar de tudo, estamos aqui, vivões, escrevendo nossa história, e não toleraremos a intolerância, a ignorância e a covardia”, diz a nota, assinada por organizações como Academia Periférica de Letras, Mães de Maio, Movimento Ocuparte, Sarau do Binho, Uneafro e Associação de Educadores da Universidade de São Paulo (USP).
As organizações reforçaram que concentrar a Virada em um único local, como ocorreu sobretudo nas primeiras edições, quando a programação ocorria no centro da cidade, não interessa aos moradores das periferias, mas rechaçam ser criminalizados, “especialmente para justificar mudanças que representarão mais catracas, portas giratórias a selecionar quem participa ou não do evento”.
Nesta sexta-feira (8), o secretário nomeado para a Cultura, André Sturm, afirmou em entrevista que a Virada ocorrerá também na região central da cidade, mas sem os grandes palcos, que tradicionalmente se concentravam no centro. “O que nós não queremos mais são os grandes palcos e as grandes concentrações de público no centro da cidade”, disse.
Strum confirmou, no entanto, que pelo menos 170 equipamentos da Prefeitura serão utilizados no evento, inclusive na região central, como o Teatro Municipal e a Sala São Paulo.
Ontem (7), o plenário da Câmara Municipal aprovou em primeira votação o projeto de lei que institucionaliza a Virada Cultural, apresentado pelo vereador Andrea Matarazzo (PSD) em 2013. O texto obriga a Prefeitura a ter como “referência principal” e não exclusiva na realização do evento o centro da cidade. O texto deve ir à segunda votação na semana que vem e depois segue para sanção do prefeito Fernando Haddad.
Veja a nota na íntegra:
As periferias de São Paulo, articuladas por meio de movimentos e coletivos, reivindicam há anos a descentralização de recursos públicos, já que a maior parte deles está concentrada, historicamente, em poucos bairros da cidade. Esses investimentos são fruto do trabalho de todos, especialmente dos mais pobres que, proporcionalmente, pagam mais impostos do que ricaços daqui e de todo o país.
Com a Virada Cultural não é diferente. Concentrar em uma única região e em um único dia tantas atividades, escolhidas muitas vezes sem a atenção à diversidade de gêneros e expressões, sempre foi alvo de nossas críticas. A descentralização do evento e pulverização do investimento ao longo do ano, respeitando os fazeres culturais de artistas que vivem e bebem das margens, é o óbvio. É uma reivindicação de vários movimentos e coletivos desde sempre, e a futura gestão encabeçada por João Doria Jr. não escapará da cobrança e da luta pela descentralização do orçamento para as áreas de alta vulnerabilidade social.
Levar o evento para o Autódromo de Interlagos, no extremo sul, um dos raros equipamentos públicos localizados fora da região central da cidade, já nos soa como uma tentativa de cercar o evento, criando barreiras para que ele não seja frequentado por quem não é bem-vindo nos “rolês de gente diferenciada”, já que o espaço é murado, com portões que historicamente impedem que vizinhos do lugar o acessem, podendo apenas ouvir os roncos dos motores. Mas o simples deslocamento do evento para um lugar perto da casa de muitos de nós periféricos pareceu, para eles, a sua sentença de morte.
Mas o maior descalabro partiu do futuro (não, se depender de nós) secretário de Comunicação. Antes mesmo de assumir a pasta, Fábio Santos já criminaliza os moradores das “perifas”, atribuindo a nós arrastões e outros crimes. Além disso, nos responsabiliza por levar a Virada Cultural para o Autódromo, longe da cidade dos descendentes de escravocratas barões de café.
É inadmissível que um secretário municipal, cujo salário sai dos impostos que pagamos a cada quilo de feijão, a cada chiclete comprado no shopping trem, a cada R$ 3,80 de busão, nos criminalize e veja nossos bairros como depósitos daquilo que não se quer mais, e não como cidadãos.
Cabe a um secretário de Comunicação pautar estratégias que impeçam a discriminação, o racismo – mesmo o institucional sofrido diariamente em espaços públicos como escolas e hospitais -, a segregação espacial e a desvalorização simbólica dos nossos fazeres.
A cidade escolheu mal João Doria, que se mostrou péssimo administrador de pessoal ao escolher seu secretariado. Mas isso não foi por acaso. O próprio prefeito eleito classificou os pancadões como “cancro que destrói a sociedade”. Os bailes funk são manifestações da juventude periférica, que espontaneamente ocupa espaços públicos em quebradas com pouco ou nenhum investimento do Estado em cultura – e o pouco que há, como as casas de cultura, podem ser terceirizadas e assumidas por organizações privadas.
O que ocorre nos pancadões é o mesmo que ocorre no entorno das universidades frequentadas pela burguesia de São Paulo. Mas lá, a polícia faz vista grossa para o tráfico e protege os jovens, como deveria ser sempre, independente do lugar. Nos nossos bairros, ela protagoniza os genocídios o da juventude negra, indígena, periférica, pobre.
Falas como a de Doria e de seu escolhido para a Comunicação incentivam a ação violenta das polícias e o extermínio simbólico promovido pela mídia. Por décadas e décadas, nossos bairros foram roubados e nós fomos levados a ser mão de obra barata a ser explorada na “cidade”, construindo parques que não podíamos entrar, morrendo em obras de metrô longe de nossas casas. Apesar de tudo, estamos aqui, vivões, escrevendo nossa história, e não toleraremos a intolerância, a ignorância e a covardia.
Não nos interessa a concentração de recursos em um só lugar da cidade, como sempre foi a Virada Cultural. Mas não aceitaremos ser criminalizados, especialmente para justificar mudanças que, no fundo, representarão mais catracas, portas giratórias a selecionar quem participa ou não do evento.
Esse futuro secretário Fábio Santos, já é ex. Não nos representa, não nos merece.