Realismo mágico colombiano: a paz é uma miragem?
O sonho da paz se tornou pesadelo. Somente 36,37% dos colombianos foram votar no plebiscito para ratificar os acordos de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), após 52 anos de conflito: 51.21% votaram pelo não, 49.78% em favor do sim. A pequena cifra de votantes, porém, permitiu superar o mínimo de 13% estabelecido como requisito para a legalidade da consulta. Foram 63% os colombianos que se abstiveram.
Por Aram Aharonian
Publicado 05/10/2016 16:59
Após a divulgação dos resultados, o presidente Juan Manuel Santos e o máximo líder das Farc, Rodrigo Londoño [Timoleón Jiménez] – codinome Timochenko – ratificaram, cada um desde sua sede, a vontade de se manter no rumo em favor da paz, respeitando o histórico acordo assinado há quase uma semana, para acabar com uma guerra de mais de 50 anos, e que foi rejeitado no plebiscito.
O resultado de domingo [2], não foi somente uma vitória do “Não”, mas também do abstencionismo, uma cultura da indiferença que se impôs, como se este não fosse um problema de todos os colombianos.
Houve excesso de confiança? Ganhou a onda de desinformação? Que influência teve a religião? Os problemas de Santos em outros aspectos do seu governo influenciaram na votação? São essas as perguntas levantadas pelo jornal colombiano El Espectador, que sustenta que muitos recomendaram a Santos descartar um plebiscito para referendar os acordos, precisamente porque a decisão soberana de conseguir a paz com as Farc estava tomada quando os colombianos votaram por sua reeleição.
O governo colombiano manteve a postura de que uma renegociação seria uma via praticamente impossível. César Gaviria, ex-presidente e chefe da campanha pelo “Sim” aos acordos, declarou que não há certezas sobre isso, e que, se for possível, deveria ocorrer no próximo governo. “Não é verdade que os acordos de paz podem ser renegociados: se este não foi aprovado no plebiscito, voltaremos à guerra, por mais que seja duro dizer”, afirmou.
Humberto de la Calle, chefe da equipe negociadora do governo, enumerou fatores jurídicos e históricos para que, sem a aprovação do acordo, o tempo que deverá transcorrer até uma nova mesa de negociações deve ser de uns dez anos.
“O cessar fogo continua vigente. Não me renderei, e continuarei buscando a paz, até o último dia do meu mandato, porque esse é o caminho para deixar um país melhor para os nossos filhos”, disse Santos no domingo, admitindo não ter um “plano B” para o caso de uma derrota no plebiscito. Porém, nesta terça-feira (4), o presidente estabeleceu uma data limite para o cessar fogo: 31 de outubro. Enquanto isso, os negociadores de ambas as partes voltaram a Havana para buscar esse plano B. Timochenko, por sua vez disse que lamenta profundamente que o poder destrutivo dos que semeiam o ódio e o rancor tenha influído na opinião da população colombiana.
Nesse sentido, a Corte Constitucional estabeleceu que o acordo deve ser renegociado, e o presidente poderá tentar uma nova aproximação. Para os analistas, uma das poucas saídas possíveis é a convocação de uma assembleia constituinte, com participação de todos os setores sociais, como foi solicitado, desde o princípio da negociação, tanto por parte das Farc como até mesmo pelos representantes da ultra direita, aliados do ex-presidente Álvaro Uribe.
Tudo parece indicar que, neste momento, a responsabilidade política passou a ser no “Não”. Nesta quarta-feira (5), o presidente Santos se reuniu com os dois ex-presidentes que defenderam a negativa ao acordo, Álvaro Uribe e Andrés Pastrana. Os defensores dessa postura têm a obrigação de explicar qual será a alternativa institucional, num cenário no qual os representantes do acordo aparecem debilitados, tanto por parte do governo quanto por parte das Farc.
Uma renegociação dentro dos termos do uribismo seria inaceitável para as Farc, a não ser que a oferta seja a convocação de uma assembleia constituinte. Ainda assim, a coalizão Centro Democrático (defensora do “Não”) carece de capacidade institucional para negociar um acordo, não tem a legitimidade do Estado para tanto.
A Colômbia possuiu 34,9 milhões de eleitores, que foram convocados para aprovar ou rejeitar o acordo assinado em Cartagena, no dia 26 de setembro, para encerrar um conflito que já deixou 220 mil mortos, 45 mil desaparecidos e 6,9 milhões que tiveram que fugir de suas terras de origem. A alta abstenção talvez tenha sido influenciada pelas chuvas em várias regiões do país, mas também revelou certa apatia, apesar de ser de um dos temas mais importantes do país nos últimos cem anos.
O mercado da guerra
Mesmo entre regiões, a Colômbia se mostrou dividida entre as duas opções. Nas zonas costeiras e limítrofes – nos povoados onde a guerra se sentiu sem trégua, como Bojayá, Cauca, Nariño e San Vicente del Caguán –, o “Sim” ganhou majoritariamente. No interior do país, onde se concentram os maiores colégios eleitorais, houve predominância do “Não”. Das grandes cidades, somente Barranquilla, Cali e Bogotá deram apoio majoritário à aprovação dos acordos, enquanto Bucaramanga, Medellín, Cúcuta e Pereira rejeitaram os acordos de forma avassaladora.
A ultra direita colombiana, sob a liderança de Álvaro Uribe e a ativa participação da Igreja Católica ultramontana e das igrejas evangélicas, afirmou que os acordos eram generosos demais com as Farc, porque não contemplam penas de prisão nem sanções mais pesadas a delitos considerados graves. Muitos empresários foram movidos pelo temor a que o país terminasse sendo governado por um ex-guerrilheiro. “A paz é ilusionante, os textos de Havana decepcionantes”, disse Uribe, para quem o acordo outorgava impunidade aos rebeldes, e encaminhava o país ao castrochavismo de Cuba e da Venezuela.
Junto com Uribe e com a campanha do “Não” estavam todos os grandes e tradicionais setores da oligarquia: pecuaristas, fazendeiros e até os narcotraficantes. Durante décadas, a guerra suja foi o que mais ajudou os negócios desses grupos.
Milhares de mentiras sobre os acordos se espalharam pelas redes sociais e nos meios de comunicação hegemônicos, e não foram explicadas nem desmentidas pelos partidários do “Sim”. Terror midiático com mensagens falsas mas eficazes, num país onde a figura do inimigo interno está instalada há décadas no imaginário coletivo. O velho regime de tradição, família e propriedade se expressou com toda a sua força: a mensagem do papa Francisco não chegou a esses cristãos.
O “Não” impôs o medo dizendo que o país estava caindo nas mãos da guerrilha, que os acordos implementavam os abortos e se instalou a ideia de que se era o início de um “Estado de impunidade”. Além disso, o recém nomeado Promotor Geral da Nação (cargo equivalente ao do Procurador Geral da República no Brasil), Néstor Humberto Martínez, empreendeu uma campanha pública de debate sobre alguns pontos dos acordos, difundindo o temor a respeito do Tribunal da Verdade, ocultando a verdadeira vontade de paz da guerrilha.
Um dos argumentos dos opositores é que as Farc não pediram perdão, ou que embora tenham demonstrado esse arrependimento (e não poucas vezes), esperaram até o último minuto para fazê-lo: somente em meio ao evento que concretizou a assinatura dos acordos, o líder Timochenko máximo chefe das Farc, ofereceu desculpas às vítimas do conflito.
A reparação às vítimas também é um fator importante neste cenário. As Farc asseguram que declararão até o último peso de suas economias e que os recursos servirão para reparar as vítimas. Outro dos fortes argumentos da oligarquia a favor do “Não” é que nada os obrigaria a colocar um peso de suas fortunas em indenizações para reparação das vítimas por parte do Estado.
O senador liberal Armando Benedetti denunciou a “campanha mentirosa” do Centro Democrático, que viralizou mensagens falsas sobre supostos acordos que não estão no papel e que encheram os colombianos de medo e ódio, para que a paz não de tornasse realidade de forma imediata, “pois ela ameaça seus redutos de poder, suas terras, suas empresas familiares e seu futuro político, já que muitos deles – uma ampla lista de empresários – teriam que prestar contas sobre sua participação no conflito, em atividades quem incluem a promoção e o financiamento de grupos ilegais e narcotraficantes”.
A ex-senadora Piedad Córdoba considerou que “o triunfo do `Não´ no plebiscito de domingo revela que há um setor da cidadania com medo e desconfiança”, e se pronunciou a favor de uma assembleia constituinte. Jorge Restrepo, diretor do centro de análises políticas Cerca, disse que “o ódio ganhou, o ódio contra as Farc. Isso nos levará a uma profunda crise política, cujas consequências econômicas serão bastante negativas”.
O diretor do partido Cambio Radical (Mudança Radical), Rodrigo Lara, que forma parte da coalizão governista, qualificou a derrota como um verdadeiro desastre. “É uma oportunidade perdida para que o país finalmente deixasse de viver sua mais trágica guerra”, expressou à organização Anistia Internacional.
O vencedor desta jornada foi Álvaro Uribe. Com o resultado, ele obrigou os negociadores a pensar na possibilidade de reformular os acordos e abriu um espaço para o seu grupo ultraconservador nas discussões de Havana, apesar de Santos ter rechaçado sua intenção de diálogo.
O significado da paz continua em disputa, num país com uma assentada cultura de conviver com a guerra. Virão dias de reflexão e elaboração do plano B, hora de embaralhar e dar as cartas de novo, algo que Santos evitava ter que fazer, mas que já está fazendo.
Existe a chance de tudo terminar aqui e voltarmos à estaca zero, ou ao mesmo triste cenário de antes do início da negociação. Em mensagem difundida por seu Twitter, Timochenko perguntou a Santos o que acontecerá depois do dia 31 de outubro, o prazo final recém estipulado pelo presidente: “daí para frente, a guerra continua?”. Em outra mensagem via Twitter, o líder das Farc fez um chamado para que “o povo colombiano respalde decididamente o Acordo Final, através da mobilização”.
Tudo isso é muito triste, porque a paz na Colômbia também é a paz na América Latina.