Publicado 05/10/2016 14:56
A literatura é vasta em retratar e discutir o funcionamento das agências reguladoras em sua missão institucional no mundo contemporâneo. Esse modelo de organização das novas funções do Estado consolidou-se, em especial, no período posterior ao processo generalizado de privatização das empresas estatais. Em quase todos os países que optaram por esse processo de transferência do patrimônio público ao setor privado, a figura da agência reguladora se consolidou como alternativa de regulamentação, fiscalização e controle de áreas sensíveis do ponto de vista político, econômico e social.
No caso brasileiro, vivemos a profusão de organismos que passaram a ser conhecidos por suas siglas, em uma verdadeira confusão de sopa de letrinhas. É o caso da ANP, ANEEL, ANATEL, ANVISA, ANS, ANA, ANTAQ, ANTT, ANAC e tantas outras que passaram a se responsabilizar por áreas que antes eram ocupadas por empresas ou órgãos públicos que ofereciam bens e/ou serviços públicos à sociedade. A crescente mercantilização do conjunto das relações de nossas vidas fez que com os antigos bens públicos fossem transformados em meras mercadorias. A lógica passou a ser a das regras do mercado, com preços e contratos a definirem as relações entre empresas fornecedoras e os usuários dos sistemas.
Um dos aspectos recorrentes nos estudos de caso em todo o mundo, e também por aqui, diz respeito ao fenômeno da “captura” das agências pela lógica do capital e ao afastamento de sua missão institucional primordial, qual seja, a defesa dos interesses das partes mais frágeis na relação comercial. O comportamento das direções de tais organismos tem se pautado, de forma sistemática, pela defesa dos interesses das empresas oligopolistas que operam pelo lado da oferta e pouco se preocupam com os indivíduos, as famílias e demais usuários dos sistemas. Isso vale para derivados de petróleo, energia elétrica, telecomunicações, vigilância sanitária, planos de saúde, transportes de todos os tipos, água, etc.
BC não regula o financismo
Ocorre que muitas vezes escapa à maioria das pessoas uma instituição da administração pública federal que deveria cumprir também com missão semelhante em sua área particular de atuação. Refiro-me ao Banco Central, que tem por atribuição um conjunto de incumbências típicas de uma agência reguladora junto ao sistema financeiro. Para além da definição da política monetária e creditícia, o BC deveria operar como órgão regulador e fiscalizador dos bancos e de suas instituições irmãs no coração do financismo.
Ocorre que aquele que também é conhecido como “banco dos bancos” está muito longe de cumprir com tal missão de forma adequada. O fenômeno da captura é claro e se manifesta de forma evidente quando da nomeação de seus dirigentes. Do ponto de vista simbólico, nada pode ser mais escandaloso do que a presidência da instituição ser ocupada por um diretor do maior banco privado do país – Ilan Goldfajn é dirigente do Itaú-Unibanco. Em um passado recente, por outro lado, o então presidente internacional do Bank of Boston havia sido nomeado por Lula para o posto e permaneceu 8 longos anos à frente do BC. Atualmente, o mesmo Henrique Meirelles ocupa o cargo de Ministro da Fazenda.
Uma das tarefas do BC deveria ser a de controle e regulação dos ganhos excessivos praticados pelo punhado de grandes bancos em sua relação com dezenas de milhões de correntistas. É evidente o caso de assimetria de poder na relação comercial. Assim para além das tarifas e preços abusivos cobrados pelos serviços oferecidos aos correntistas, as instituições financeiras praticam “spreads” impressionantes em suas operações. O BC divulga, inclusive, de forma regular o relatório com tais distorções. O diferencial entre as taxas oferecidas pelos depósitos e aquelas cobradas pelos empréstimos é imenso. Apenas a título de exemplo, vale a comparação entre os 14,25% anuais da SELIC e os 475% ao ano cobrados nas operações com cartão de crédito.
O órgão que deveria regular e fiscalizar fecha os olhos a essa prática extorsiva e faz de cara de paisagem a respeito do tema. Não determina que os bancos reduzam as margens de ganho absurdas e muito menos aplica multas ou outras punições por esse tipo de comportamento que rompe com qualquer critério de modicidade ou razoabilidade. O BC se comporta como se banco comercial fosse. E esse quadro leva a situações inusitadas, como a fala do Presidente Lula em 2005, com uma interpretação completamente equivocada sobre o assunto:
“O brasileiro não levanta o traseiro do banco, ou da cadeira, para buscar um banco mais barato. Reclama toda noite dos juros pagos e no dia seguinte não faz nada para mudar".
Parece óbvio que não existe o menor espaço de negociação do cliente pessoa física com uma mega corporação do porte dos grandes agentes do financismo. Exatamente pela existência desse descompasso de poder entre as partes que o Estado mantém as agências reguladoras sobre setores estratégicos de nossa economia.
Qual regulação? Qual controle? Qual fiscalização?
Por outro lado, o BC tampouco cumpre de forma razoável seu papel de agente executor da política monetária e cambial. No dia 4 de outubro, o Presidente Goldfajn compareceu à Comissão Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal. Ali, repetiu pela enésima vez a conhecida cantilena a respeito da suposta necessidade de se manter a política de juros arrochada, com a SELIC em níveis estratosféricos. O argumento surrado do risco de retorno da inflação foi de novo utilizado para tentar convencer a respeito de nossa permanência com o título de campeão mundial da taxa de juros.
“O Banco Central também contribuirá para a recuperação da confiança e, portanto, para a retomada do crescimento. A melhor forma de fazer isso é por meio do controle da inflação, um bem público do qual a sociedade brasileira não aceita mais abrir mão.”
Por outro lado, o dirigente banqueiro demonstrou a sua disposição em manter a política de taxa de câmbio flutuante, bem ao espírito do liberalismo chinfrim que vige aqui em nossas terras. Com esse compromisso de atender exclusivamente aos interesses do financismo, o governo estende por mais tempo ainda a criminosa política de valorização artificial de nossa moeda frente ao dólar norte-americano e demais moedas do mundo. Esse fato converte-se no principal fator que provoca a desindustrialização do Brasil, uma vez que as indústrias que operam por aqui não conseguem competir com os produtos semelhantes no exterior e o nosso mercado interno se vê inundado de mercadorias importadas.
“O Banco Central contribuirá também para a recuperação econômica respeitando o regime de câmbio flutuante, que tantas vezes mostrou seu valor no papel de estabilizador frente a choques.”
Goldffajn termina com uma bela dose de “enrolation” para cima dos senadores, uma vez que todos sabem que um banqueiro privado nunca vai cumprir com sua missão verdadeiramente pública à frente do BC. Ele chega a afirmar que estão sendo tomadas medidas para reduzir o custo do crédito. Mero blá-blá-blá.
“Para além da solidez, afirmo a Vossas Excelências que o Banco Central está centrando esforços no sentido de tornar o sistema financeiro cada vez mais eficiente. Estudos e iniciativas para a redução prudente e sustentável do custo do crédito no Brasil estão em andamento. Do mesmo modo, estamos preparando ações concretas com vistas à redução de distorções que diminuem a eficiência do sistema.”
Ora, espero ter deixado claro pelas linhas acima que o Banco Central tem servido sistematicamente aos interesses da banca privada. As tarefas para recuperar suas funções de agente democrático, popular e republicano no universo financeiro passam por amortecer a rigidez da política monetária (SELIC reduzida), buscar metas de crescimento econômico (ao lado de metas de inflação) e estabelecer limites para a exploração do diferencial da taxa de juros de captação e de empréstimo.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.