Do bullying ao mobbing político – a mídia ao serviço da violência
Uma capa da revista Veja com uma imagem do ex-presidente Lula (num quase-plágio da revista Newsweek quando, em 2013, publicou uma imagem do ex-presidente líbio Muammar Kadafi¹) convida a uma reflexão sobre o papel da mídia nas crises políticas.
Por Alexandre Weffort*
Publicado 21/09/2016 11:09
As duas imagens colocam o rosto da personalidade visada em alto contraste, a preto, sobre fundo vermelho, com o efeito de tinta escorrendo. O resultado gráfico presta-se a interpretações várias, a que não será alheia a morte de Kadafi, torturado e assassinado pelos seus captores.
A mensagem (da Veja repetindo a Newsweek), contempla vários níveis de conteúdo, tanto explícito como implícito, de sugestão do fim trágico do líder líbio, numa associação que foi já caracterizada como um “linchamento induzido de Lula²” . Mas também procura sugerir um paralelo entre a chamada “primavera árabe” e a situação hoje vivida na América Latina, nomeadamente, no Brasil.
À agressão noticiosa, sistematicamente realizada contra Lula, não é alheia a estratégia do poder judicial – como ficou evidente no modo como os procuradores da Lava Jato realizaram a publicitação da denúncia do ex-presidente do Brasil, Lula da Silva – onde os meios publicitários foram utilizados ao extremo, excesso que acabou por debilitar a imagem do poder judiciário e colocar em causa a própria consistência da acusação.
Temos, assim, a configuração de duas formas de agressão tipificadas: o bullying, onde o visado é vítima de agressão insidiosa e sistemática, e o mobbing, pela inserção dessa agressão em ambiente institucional. Este último conceito, o mobbing, refere-se às práticas de assédio moral (sendo uma forma específica de bullying). No caso em análise, da forma como a imprensa tem tratado sistematicamente a Lula da Silva, o bullying é político. Nele, a ameaça à privação da liberdade vem sendo produzida com o mesmo sinal de regozijo com que a atual candidata à Casa Branca, Hillary Clinton, se manifestou quando soube do assassínio de Kadafi³ , rindo.
Os paralelos são muito sugestivos, tanto no que diz respeito à ingerência estado-unidense na vida de outras nações, como no modo como a mídia serve de instrumento de legitimação da violência.
No caso líbio, a intervenção da Otan foi decisiva no desfecho da guerra, mas as razões mais profundas foram escamoteadas pela mídia. Hoje já se reconhece que, tal como na guerra do Iraque, as razões alegadas foram fruto de distorções e manipulações dos serviços de informação (o caso britânico subiu agora à ribalta com um relatório de um comité parlamentar que aponta sérias críticas ao então premier David Cameron 4).
Mas, se as causas mais profundas da guerra, ou as apreciações sobre a personalidade de Kadafi (que, até pouco tempo antes do eclodir da guerra, era aparentemente bem quisto de políticos europeus, como Sarkozy) continuam obscuras, já as consequências da fragmentação do Estado líbio começam a tornar-se evidentes, com a transformação do território da Líbia num suporte ao Daesh (o auto-proclamado “estado islâmico 5) .
É também a esse nível, da geo-política global que podemos considerar a correlação entre a imagem de Kadafi na Newsweek e a imagem que revista Veja publicou de Lula da Silva. A violência sugerida pela associação das imagens, acompanha os mesmos padrões de conduta midiática.
Vemos avançar, na América Latina, um processo de transformação política à escala regional desenvolvido com base em ingerências, em campanhas intensivas de manipulação da opinião pública e na “diabolização” dos principais líderes dos movimentos políticos progressistas.
Dando crédito às palavras do líder máximo da Igreja Católica, Papa Francisco, quando afirma estarmos a viver uma situação de guerra mundial fragmentada 6 , não podemos deixar de impressionar-nos com a manifestação, simultaneamente grotesca e pueril, de Hillary Clinton em 2011 perante morte de Kadafi e questionar-nos porquê os editores da Veja idealizaram aquela capa de revista, em que a morte é projectada na figura de Lula.
Neste quadro mais complexo, porque global, o bullying da imprensa ou o mobbing do aparelho judiciário sobre Lula – ganham significações mais profundas. É, também, nesse quadro que podemos entender as palavras de Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito da Diocese de Blumenau, quando diz: “Sem provas, acusar Lula é uma leviandade 7” . Mas não apenas no plano jurídico.
Devemos considerar também a hipótese de aquela leviandade ser, ela própria conscientemente assumida e intencional nas suas mais extremas consequências, de promoção da instabilidade sócio-política no Brasil.
Podemos considerar também nesse quadro a agressividade com que se procede à implantação de políticas neo-liberais na América Latina, fortemente penalizadoras dos estamentos sociais mais desfavorecidos (como vemos ocorrer, por exemplo, na Argentina e no Brasil).
São políticas que se revelam não apenas numa leitura financista, do lucro como móbil imediato numa lógica capitalista, mas como parte de uma estratégia de desmantelamento dos Estados, promovida mesmo no sentido daquela que foi publicitada como a “primavera árabe” e que hoje é expressão do pesadelo europeu.
O bullying e o mobbing são formas de violência que existem também à escala global, e as suas consequências medem-se à mesma escala. Em 1932, prestes a eclodir da Segunda Grande Guerra, perante a ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, escrevia o matemático português Bento de Jesus Caraça:
“O mundo está, como estava em 1914, governado por homens inferiores, caricaturas de homens, e o que eles governam não é uma sociedade humana – é uma caricatura da sociedade humana. E será assim, enquanto homens novos não tomarem a direcção do mundo para fazer dele uma sociedade de homens livres. Que todos se apercebam bem disso – no momento que passa, a trincheira da luta da Humanidade é a trincheira da luta contra a guerra 8” .
1-http://europe.newsweek.com/perverse-nostalgia-gaddafi-takes-hold-west-63137?rm=eu
2- http://www.m.vermelho.org.br/noticia/286852-1
3- http://youtu.be/Fgcd1ghag5Y
4-http://pt.euronews.com/2016/09/14/libia-relatorio-dos-deputados-britanicos-critica-cameron
5-http://expresso.sapo.pt/internacional/2016-09-14-Cameron-acusado-de-abrir-caminho-ao-Daesh-na-Libia
6-http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN0H80ET20140913
7-http://www.m.vermelho.org.br/noticia/286868-35
8- Caraça, Bento de Jesus. Conferências e outros escritos. Lisboa: 1978. P. 217.
*Alexandre Weffort, residente em Portugal, é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura
(Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho)