Colômbia: Farc realizam primeira conferência pública em 50 anos
Pela primeira vez em mais de 50 anos de conflito as Farc (Forças Armadas Revolucionárias – Exército do Povo) fazem uma conferência aberta. Esta será a última grande reunião da organização, que depois de referendado o acordo de paz com o governo colombiano, deve reintegrar seus guerrilheiros à vida civil, sem armas.
Publicado 20/09/2016 16:37
Há relatos de que o evento parece uma grande festa de esquerda. O clima leve e amistoso permite que a população local se aproxime (apesar das dificuldades de se chegar ao lugar) para ver de perto e participar das atividades que acontecem em meio à savana colombiana, na região de Llanos de Yamarí.
Jornalistas de todo o mundo encararam as longas horas de viagem em caminhonetes desconfortáveis para chegar ao local, é um evento histórico. Segundo a repórter Carmem Rivera, enviada pela Opera Mundi, os profissionais da imprensa ao chegar recebem um kit com lençóis e mantas novos e limpos e são autorizados a fazer imagens e entrevistas. Pela alimentação, serviços extras e internet, ele “pagam o justo”.
É neste encontro que as lideranças das Farc, junto à base da guerrilha, vão definir o futuro. Os porta-vozes garantem que os homens e mulheres combatentes estão aptos a assumir funções laborais que podem ir desde a agricultura à vida acadêmica e muitos desejam se especializar em profissões que possam contribuir para o desenvolvimento dos povoados mais pobres.
Timoleón Jiménez participa das atividades
Assim que o acordo de paz for assinado pelo comandante em chefe das Farc, Timoleón Jimenez, e pelo presidente colombiano Juan Manuel Santos, no dia 26 deste mês, ele será submetido à votação popular em 2 de outubro. Só depois de ser referendado em urna é que começa a transição dos guerrilheiros para vida civil. De imediato a guerrilha terá asseguradas três cadeiras no Congresso, e depois das eleições de 2018, 10.
A jornalista Carmem fez um relato sobre sua experiência no encontro, que termina na próxima sexta-feira (23). Logo no dia que chegou para começar a cobrir as atividades, ela quebrou um dente e precisou ser atendida lá mesmo, devido à dificuldade de voltar para a cidade mais próxima. A experiência, segundo ela, foi bastante positiva.
Leia um trecho do relato:
Mike
Os guerrilheiros das Farc, que até há poucas semanas estavam mobilizados para o conflito armado contra o Estado colombiano, estão dedicados a dar a melhor atenção aos participantes do evento. Na cabana de primeiros socorros, Mike é quem faz o atendimento dentário num consultório improvisado. Quando subi os quatro irregulares degraus de madeira que levam à porta da cabana suspensa, desejava apenas que um dentista revisasse um dente que havia quebrado no dia que cheguei ao acampamento, véspera do início dos trabalhos. Confesso que não me havia dado conta que o rapaz humilde e tímido que me recepcionou e me conduziu à maca já era o próprio “dentista”.
Mike vestia calças jeans, camiseta polo azul de manga longa com listras brancas. Sem jaleco, vestiu as luvas de silicone e pôs o protetor de boca e nariz. Fui orientada a tirar as botas pantaneiras, as únicas adequadas para tanta lama e terreno irregular e pedregoso. Já deitada numa maca, recebi um guardanapo de papel. Mike avisou-me que a cuspidora era um balde ao lado da maca. E haja pontaria para não acertar o pé do dentista, que usava sandálias de borracha.
Após examinar-me e usando termos técnicos, Mike observou que haviam feito algo equivocado no último tratamento do molar em questão. Sugeriu uma intervenção para substituir a restauração e eu o autorizei. Durante o procedimento, ofereceu-se para refazer também a restauração do dente contiguo, muito antiga e ainda de amálgama. “Isso já não se usa mais. Em meia hora a gente deixa tudo novo e você fica tranquila”.
O consultório inprovisado de Mike no acampamento | Foto: Carmen Rivera
Profissional de mão leve, Mike me explicava cada etapa da intervenção, para a qual usava instrumentos idênticos aos que se vêm em qualquer consultório particular. Utilizou material descartável e me ofereceu um espelho para conferir o resultado. Aliviada com o tratamento rápido e eficiente, investigo o meu dentista.
Mike, há 16 anos na guerrilha, nunca foi à universidade. “Aprendi odontologia lendo livros, observando outros dentistas que nos atendiam nos acampamentos”. Originário da região do Yari, explica-me que migra de unidade guerrilheira de tempos em tempos, para poder atender a maior quantidade possível de “camaradas”. Mas também fica à disposição da população civil das zonas de influência, carentes de atendimento odontológico do Estado. Faz o mesmo durante a conferência, atendendo não só aos jornalistas, como pequenos comerciantes e suas famílias, que estão na área do evento vendendo itens de higiene pessoal, roupas, artigos legais derivados da coca, bijuterias, comes e bebes.
Pergunto a Mike por que entrou para a guerrilha? “A vida era cheia de dificuldades…”, resume encabulado.
Na transição para a vida civil, que estará autorizada após a provável aprovação dos Acordos de Paz em plebiscito nacional em 2 de outubro, os planos de Mike são prioritariamente acadêmicos, mas seguem ideológicos: “Quero ir à universidade e ter um diploma para poder ajudar mais gente… o serviço público não dá essa atenção e os consultórios cobram muito caro”.
A boa fama de Mike se difunde entre os jornalistas e, no dia seguinte a meu tratamento, outra jornalista internacional pede que ele revise um tratamento recente. Mike então detecta que minha colega tem uma mancha num dente frontal. “Mami, tenho um creminho aqui para isso”. Na saída, a jornalista, feliz com o branqueamento relâmpago, tem chance ainda de conhecer a acupuntura elétrica, também disponível na cabana de primeiros socorros. “O rapaz chegou sem mexer a mão e em alguns minutos já havia recuperado os movimentos”, conta.